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A decisão de reconhecimento da prescrição e da decadência no CPC/15

Busca-se trazer contornos gerais sobre a prescrição e a decadência e os inconvenientes processuais que pode gerar o reconhecimento de ofício da prescrição.

terça-feira, 1 de novembro de 2022

Atualizado às 14:06

1. A prescrição e a decadência no Direito brasileiro

A prescrição e a decadência são institutos fundamentalmente de direito material, delineados no Código Civil e fundamentados na Teoria Geral do Direito. Ao falar sobre esses institutos é impossível escapar da ideia de fato jurídico, motivo pelo qual traçarei breves comentários a respeito.

De maneira breve, fato jurídico é todo fato (acontecimento) relevante para o Direito (mundo jurídico). Relevante como? A norma jurídica, prevendo certa consequência, atribui a um fato o poder de produzir efeitos jurídicos. Esses efeitos tornam relevante a verificação do fato no mundo da realidade, pois ele se torna apto a produzir os referidos efeitos. E sobre quais destes se fala? Os de criação, modificação ou extinção de direitos e relações jurídicas.

Nas palavras de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, "[...]fato jurídico, em sentido amplo, seria todo acontecimento natural ou humano capaz de criar, modificar, conservar ou extinguir relações jurídicas."1

O decurso do tempo, nesse sentido, é considerado como fato jurídico. Isso porque ele tem o condão de criar direitos (como o de propriedade na usucapião), modificá-los (aquisição de capacidade civil plena) e extingui-los (prescrição e decadência). Essa capacidade é atribuída por lei.

Assentada a ideia de que prescrição e decadência nascem do decurso do tempo e representam uma perda, tratemos de especificar melhor a matéria.

Quando um direito é violado, notadamente patrimonial, nasce ao seu titular o que se chama de pretensão, que é a possibilidade de exigir do violador a reparação do direito violado.

Essa pretensão, ou seja, esse direito de exigir a reparação, não pode ser exercida de maneira indefinida no tempo. Isso porque ela recebe da lei (art. 189, CC) uma limitação temporal (arts. 205 e 206, ambos do CC), de maneira que se não exercida no prazo, o seu titular fica impedido de exigir judicialmente a reparação do direito violado. Essa perda é o que se chama de prescrição.

De outro lado, existem direitos sobre os quais a lei atribui prazo para o seu exercício. São chamados de direitos potestativos. Eles dão ao seu titular a capacidade de influir na esfera jurídica de outrem sem que a outra parte detenha o mesmo poder, criando-se, assim, um estado de sujeição. É o caso, por exemplo, do comprador de um bem, que tenha vício redibitório, de exigir o desfazimento do contrato (art. 445, CC), ou de exercer o direito de preempção ou preferência (art. 516, CC). A perda do prazo extingue o próprio direito potestativo, que não pode ser exercido de nenhuma forma.

É interessante notar, para finalizar, que a perda da pretensão (prescrição) não extingue o direito, de maneira que se entende que a relação se torna uma obrigação natural, entendida como aquela que não é exigível judicialmente, mas que existe e, se cumprida, garante o direito à retenção. De maneira diversa, o não exercício do direito potestativo acarreta a sua extinção, não havendo que se falar em obrigação natural.

É por essa razão que, em matéria processual, a prescrição era tratada como forma de defesa do réu (devedor) e que, se não alegada, não importava em decisão injusta (a condenação ao pagamento da dívida prescrita), haja vista que o direito ao crédito remanescia incólume após a prescrição. É dizer: apesar de ser possível alegar que o credor não pode exigir essa dívida judicialmente, ela mesma existe e, não tendo sido alegada a prescrição pelo réu, é perfeitamente aceitável a decisão que condena ao pagamento.

2. Prescrição e Decadência no Código de Processo Civil de 2015

Ambos os institutos são tratados na legislação processual como matérias que geram improcedência liminar do pedido (art. 332, §1º, CPC), se ocorridas antes da citação, e, se reconhecidas, produzem coisa julgada material (art. 487, II, CPC), pois a sentença resolverá o mérito. Se ocorridas depois da citação, igualmente geram extinção do processo com julgamento de mérito com necessidade de manifestação das partes.

A legislação material impõe o dever ao juiz de reconhecer a decadência legal de ofício (art. 210, CC). Não o faz de maneira expressa, no entanto, para a prescrição, de maneira que, instado a se manifestar, o Superior Tribunal de Justiça, de modo recorrente, entende que a prescrição, sendo matéria de ordem pública, deve ser reconhecida de ofício pelo juiz2. A própria inteligência dos arts. 332, §1º e 487, parágrafo único, ambos do CPC, induz à ideia de que o juiz deverá reconhecê-la independentemente de alegação da parte.

Desta maneira, esses institutos estão inseridos na legislação como causas que extinguem o processo e ensejam a resolução do mérito. Daí se ver o peso que carregam e a importância que representam para as relações jurídicas.

3. Caráter do Código de Processo Civil

O CPC/15, sem dúvida, representa um marco histórico no modo como se vê a relação processual. Trouxe em seu bojo uma pluralidade de princípios que reforçam a proteção dada à dignidade da pessoa humana prevista constitucionalmente e consagra um sistema cada vez mais preocupado com a efetividade da tutela do que com a consagração de formas vazias.

Dentre os referidos princípios, o do contraditório é o que merecerá melhor análise para nosso tema. De maneira geral, como sugere Theodoro Júnior, "O escopo essencial do princípio do contraditório, no processo democrático e justo, deixa de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação do adversário, para passar a ser a influência positiva na resolução do litígio, manifestada por meio do 'direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo'"3.

Esse direito, previsto constitucionalmente (art. 5º, LV, CF), corresponde tanto à possibilidade de reação das partes como a de ciência de todos os acontecimentos relevantes no processo. Essa ciência formal comumente se dá por meio dos atos de comunicação (intimação e citação).

Particularmente quanto à ciência devida às partes, estabelece o art. 10 do CPC que: "O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício."

Isso se dá notadamente para se evitar as chamadas "decisões surpresa"4, nas quais, sem oportunidade de se manifestar, as partes são surpreendidas por decisão que irá influenciar os seus direitos e, não obstante, deverão lutar, se assim o quiserem, nas instâncias superiores para defendê-los.

4. Decisão de reconhecimento da prescrição e decadência

O comando do parágrafo único do art. 487 do Código induz à ideia de que existem dois momentos distintos e com procedimentos diferentes para o reconhecimento da prescrição e decadência: (i) quando elas se consumarem antes da citação, o que gera improcedência liminar; (ii) quando elas de consumarem após a citação, o que exigirá manifestação das partes e poderá gerar sentença de extinção do processo com resolução de mérito.

Não causa grandes problemas a segunda hipótese, haja vista que obedece aos princípios orientadores do processo. Ater-nos-emos à primeira hipótese, que parece gerar os maiores inconvenientes.

O Código de Processo Civil, ao que parece, priorizou a agilidade na resolução das demandas, em prestígio ao princípio da celeridade (art. 5º, LXXVIII, CF), ao tratar da ideia de improcedência liminar do pedido. Ensina a doutrina que "A improcedência liminar do pedido é a decisão jurisdicional que, antes da citação do demandado, julga improcedente o pedido formulado pelo demandante. É decisão de mérito, definitiva, apta à coisa julgada e possível objeto de ação rescisória."5

As hipóteses vêm tratadas no art. 332 da codificação. O parágrafo primeiro, que nos interessa, admite que seja proferida decisão de improcedência liminar em caso do reconhecimento da prescrição. Significa, enfim, que o juiz pode, sem citar o réu, extinguir o processo com resolução de mérito quando verificar que a prescrição se consumou.

Este é o ponto que causa a maior divergência e discussão doutrinárias. Pode realmente o magistrado reconhecer a prescrição de ofício sem dar ao autor ou ao réu a possibilidade de se manifestar?

O Código Civil de 1916 admitia o reconhecimento da prescrição de ofício quando se tratasse de direitos não patrimoniais (art. 166), o que parece inócuo, haja vista que os direitos não patrimoniais não seriam mesmo alvo de prescrição. O Código de Processo Civil de 1973 reforçava essa ideia com a repetição dessa regra (art. 219, §5º). Já o Código Civil de 2002 trouxe uma inovação: só pode o magistrado reconhecer de ofício a prescrição quando beneficiar absolutamente incapaz (art. 194). Até então a regra era a de que a prescrição não se conhecia de ofício. Entendia-se que se tratava eminentemente de exceção, ou seja, de forma de defesa do devedor, que poderia invocar a prescrição para se eximir da responsabilidade pela dívida.

Essa orientação secular foi abruptamente alterada pela lei 11.280/06, que alterou o art. 219, §5º, do CPC/73, para admitir a qualquer hipótese o reconhecimento de ofício da prescrição. Por fim, o atual Código de Processo Civil fez apenas uma ressalva: admite-se a improcedência liminar do pedido em caso de prescrição consumada no momento da apreciação da Inicial, mas, se ela se consumar depois, é obrigatória a manifestação de ambas as partes. Partamos para os problemas.

Na doutrina é possível apontar as seguintes críticas: (i) o reconhecimento de ofício da prescrição, inserta na sistemática de improcedência liminar do pedido, é inconstitucional, pois fere o princípio da isonomia, devido processo legal, contraditório e ampla defesa; (ii) o reconhecimento de ofício da prescrição é uma mudança legislativa drástica e sem lastro histórico; (iii) ela prejudica evidentemente o devedor, pois marca-o, sem que ele possa se defender, como devedor impontual, bem como prejudica-o ao impossibilitar a invocação do art. 940, CC, que permite que ele receba em dobro caso tenha sido cobrado indevidamente por dívida inexistente; (iv) há evidente contradição entre a possibilidade de o devedor renunciar à prescrição (art. 191, CC) e o seu reconhecimento de ofício, haja vista que este não teria tempo de exercer o direito à renúncia se o magistrado a reconhece antes de lhe dar tempo de se manifestar; (v) impede que o autor se defenda da prescrição, alegando, por exemplo, fato suspensivo, interruptivo ou impeditivo da prescrição; (vi) é humanamente inviável que um magistrado seja capaz de reconhecer a prescrição somente com a leitura da peça inicial, pois ela depende de prova de fato que não foi ainda produzida.

Já os argumentos favoráveis dizem respeito à tentativa de diminuir a quantidade de processos no judiciário, garantir a celeridade e economia processuais e, teoricamente, sobre a possibilidade de o legislador determinar o que é prescrição como decorrência jurídica do decurso de tempo.

5. Conclusão

É inegável que a prescrição e a decadência são institutos de limitação que impedem o exercício indefinido de um direito potestativo ou que a pretensão exista ilimitadamente no tempo. São, também, fatos jurídicos que servem de matéria de defesa ao devedor, que poderá eximir-se do pagamento de uma obrigação se provar, por exemplo, a ocorrência da prescrição.

O Código de Processo Civil notadamente se preocupou com o volume de processos no Judiciário, criando diversos mecanismos que diminuem o tempo, dinheiro e a energia gastos com o processo. É o caso, por exemplo, da tutela provisória e da improcedência liminar do pedido.

Procurou, também, reforçar e dar materialidade a princípios constitucionais cujo escopo justamente é robustecer a ideia de dignidade da pessoa humana, como a celeridade, isonomia e o contraditório.

É preciso também salientar, no entanto, que a codificação, ao lado desses princípios, trouxe algumas regras que parecem ser difíceis de compatibilizar. A improcedência liminar do pedido e a possibilidade de reconhecimento de ofício da prescrição pelo magistrado, seguindo a tendência legislativa, são realidades que precisam receber do julgador cuidadosas reflexões.

Diante deste cenário, com a devida vênia aos que pensam diversamente, não me parece, diante do art. 10 do CPC, dos três princípios referidos anteriormente e de todos os problemas que foram apontados pela doutrina, que seja coerente que um magistrado julgue um pedido liminarmente improcedente em razão do reconhecimento da prescrição. Deveria, a meu ver, dar necessariamente oportunidade às partes de se manifestar e defender os seus direitos, abrindo, inclusive, espaço oportuno para a produção de provas, alinhando-se à mentalidade do ordenamento vigente.

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PAMPLONA FILHO, Rodolfo; GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo Curso de Direito Civil: Parte Geral. V.1. 21. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. P. 423. 

2 AgInt nos EDcl no REsp 1.250.171/SP, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 27/4/17, DJe 5/5/17; AgRg no Ag 1.387.352/RS, relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 12/6/12, DJe de 15/6/12.

3 THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo Civil, Processo de Conhecimento, Procedimento Comum. V.1. 60. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. P. 146.

4 GONÇALVES, Marcus Vinicius. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral. V.1. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. P. 71.

5 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo do Conhecimento. V.1. 21. ed. Salvador: Jus Podivm, 2019. p.  691.

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ALVIM, Eduardo Arruda; FERREIRA, Eduardo Aranha; GRANADO, Daniel Willian. Direito Processual Civil. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

ALVIM, E. As modificações ocorridas no instituto da prescrição - como compatibilizar a possibilidade de sua decretação ex officio com a possibilidade de renúncia, prevista no art. 191 do código civil?. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, v. 12. 10 ago. 2015.

BUENO, Cássio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil. 8. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022.

DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo do Conhecimento. V.1. 21. ed. Salvador: Jus Podivm, 2019.

NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade Nery. Código de Processo Civil Comentado. 17 ed. São Paulo: Thomas Reuters Brasil, 2018.

PAMPLONA FILHO, Rodolfo; GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo Curso de Direito Civil: Parte Geral. V.1. 21. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo Civil, Processo de Conhecimento, Procedimento Comum. V.1. 60. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

Alecsander Padula Panachão

Alecsander Padula Panachão

Pós-graduando em Direito Negocial e Imobiliário.

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