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O direito ao esquecimento em contraponto ao direito à informação

Uma linha tênue entre o direito de "ser deixado em paz" e o direito constitucional à liberdade de imprensa.

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Atualizado às 14:33

A princípio, o direito ao esquecimento, também conhecido como "direito de ser esquecido" corresponde ao direito de não ser relembrado por atos cometidos no passado. Isto é, após a prática de um fato criminoso, com o transcurso do tempo, autores de crimes - e muitas vezes as próprias vítimas - desejam que a ocorrência seja esquecida, a fim de não serem mais julgadas pelo evento que ocorreu no passado.

Nesse interim, a respeito de tal prerrogativa, diversos estudiosos apontam a existência do direito ao esquecimento amparando-se em dispositivos legais presentes em nosso ordenamento jurídico, onde estabelece, ipssis litteris:

CC/Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

CF/Art. 5°, X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;  

Ademais, o referido direito também foi alvo de dissertação na VI Jornada de Direito Civil do CJF/STJ em 2013, onde dispõe em seu Enunciado 531 que (BRASIL, 2013) "A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento", tal afirmativa foi justificada com o agravo dos danos que a tecnologia da informação vem causando atualmente na vida das partes envolvidas no fato criminoso, especialmente no que concerne à ressocialização do ex-detento. Em outras palavras, a aludida jornada previu que os ex-presidiários tinham direito a ter seus crimes esquecidos e serem reintegrados a sociedade, concomitantemente.

Indubitavelmente, a temática ainda é objeto de muitos debates, onde há quem acredite no direito ao esquecimento se contrapondo aos que não acreditam na aplicação do referido direito. Deste modo, é relevante levantar uma análise trazendo à cerne da questão dois casos pertinentes ao assunto: o caso Guilherme de Pádua e o caso Aída Curi.

Sinteticamente, Guilherme de Pádua foi um ator responsável por assassinar brutalmente sua companheira de trabalho, a atriz Daniella Perez, em dezembro de 1992. Na ocasião, o autor do crime, em conjunto com sua esposa, desferiu diversos golpes perfurantes em regiões vitais da vítima. Em decorrência do crime, Guilherme foi condenado a 19 anos de reclusão por homicídio qualificado pelo motivo torpe.

Por conseguinte, em virtude do crime de extrema reprovabilidade cometido por Guilherme, os ataques pessoais ao ex-detento sempre foram presentes, e ao longos dos anos foram intensificando-se. Por certo, o caso Daniella Perez sempre foi alvo de discussão, entre estudiosos da área jurídica, a respeito a aplicabilidade do direito ao esquecimento em face do autor do crime.

Entretanto, apesar da incidência de todas as normas acima expostas, o direito ao esquecimento não é previsto de modo expresso em nosso ordenamento jurídico. Com efeito, as normas supramencionadas sequer declaram explicitamente a existência do direito ao esquecimento.

Nesse hiato, nos é pertinente trazer à tona o caso Aída Jacob Curi, considerado o evento emblemático que firmou tese de repercussão geral do STF a respeito do direito ao esquecimento. Na ocasião, em julho de 1958, Aída Curi foi vítima de tentativa de estupro e violência seguida de morte por três rapazes, dentre eles, um menor de idade.

A princípio, a vítima sofreu tentativa de violência sexual que, restando frustrada a tentativa, os criminosos espancaram a vítima e a jogaram do apartamento. Além disso, o julgamento da morte de Alda foi abarcado de decisões esdrúxulas e indescritivelmente hostis que não nos é pertinente citá-las de forma profunda nesse momento, como por exemplo a absolvição de um dos autores do crime.

Assim, anos após o crime, no ano de 2000, o programa "Linha Direta: Justiça" transmitiu reportagem relembrando o caso Aída Curi, exibindo a imagem da vítima morta - tal imagem já havia repercutido em todos os meios de transmissão à época do crime. Em vista disso, os irmãos de Aída ajuizaram ação indenizatória de reparação em face da TV Globo, que, ao chegar na esfera do Supremo Tribunal Federal, em sede do Recurso Extraordinário n° 1010606/RJ, entendeu pela incompatibilidade do referido direito perante a Constituição Federal/88, afirmando em tese:

"É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral - e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível" (BRASIL, RE 1010606/RJ, 2021).

De modo assertivo, o referido órgão levantou a problemática que seria impedir divulgações jornalísticas de cunho verídico, apontando tal conduta como abuso ao princípio da liberdade expressão, como consta em um trecho da decisão:

"A previsão ou aplicação do direito ao esquecimento afronta a liberdade de expressão. Um comando jurídico que eleja a passagem do tempo como restrição à divulgação de informação verdadeira, licitamente obtida e com adequado tratamento dos dados nela inseridos, precisa estar previsto em lei, de modo pontual, clarividente e sem anulação da liberdade de expressão. Ele não pode, ademais, ser fruto apenas de ponderação judicial". (BRASIL, RE 1010606/RJ, 2021).

Desta maneira, como resta demonstrado, independemente dos debates a respeito do tema, prevalece a tese do STF fixada no sentido de que o direito ao esquecimento não é abarcado pelo ordenamento jurídico brasileiro, em respeito ao princípio da liberdade de expressão e de informação.

Mediante o exposto, como considerações complementares, reconhece-se que, além da sublime tese firmada pelo STF, de fato não deve haver espaços para o ingresso do direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro em virtude de dois pontos específicos: a configuração de censura prévia e o conhecimento histórico através da eventual lembrança de casos pertinentes.

Em um primeiro momento, obstar qualquer espécie de informação e divulgação jornalística de casos verídicos é uma ação de extremo perigo para a democracia, uma vez que tal impedimento configuraria censura prévia à atividade da imprensa, tal como já ocorreu no país no período da ditadura militar, com a implementação do AI-5.

Por fim, a inaplicabilidade do direito ao esquecimento se sustenta uma vez que o conhecimento histórico é a ferramenta que contribui para a análise e compreensão de um fato ocorrido no passado, mediante todo o contexto em que ele ocorreu e quais foram as lacunas jurídicas que possibilitaram tal acontecimento, com o objetivo de, reconhecendo a natureza cruel e reprovável de tal conduta, levantar debates a respeito do tema e evitar que essas ações se repitam - ou ao menos amenizar suas incidências.

Ora, na medida em que uma história não relembrada cai no esquecimento, ser favorável ao "direito de ser esquecido" é uma tentativa inadequada de, através do decurso do tempo, apagar a história de quem pode não estar mais aqui para contá-la.

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BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 1010606/RJ. Tema: 786 - Aplicabilidade do direito ao esquecimento na esfera civil quando for invocado pela própria vítima ou pelos seus familiares. Relator(a) Min. Dias Toffoli. Julgamento: 11/02/2021. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur446557/false. Acesso em: 19/11/2022. 

BRASIL, VI Jornada de Direito Civil. Brasília/DF, 2013. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej/vijornadadireitocivil2013-web.pdf. Acesso em: 19/11/2022.

Victória C. Gomes

Victória C. Gomes

Graduanda em Direito - 10° sem. Estagiária da Advocacia-Geral da União. Certificada em Relações Étnico-Raciais e Direitos Humanos pela Escola Nacional da Administração Pública.

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