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Os deslizamentos no Paraná e a emergência do direito dos desastres

A tragédia no Paraná na última semana chama atenção para um campo jurídico pouco explorado pela doutrina, o direito dos desastres, que busca regulamentar a atuação estatal relativa a esses eventos.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Atualizado às 13:47

Na segunda-feira da semana passada (28/11), um deslizamento de terra na BR-376 soterrou 10 carros e 6 caminhões em um trecho de serra de Guaratuba, Paraná. Ao menos 30 pessoas desapareceram. Algumas horas antes, um deslocamento menor já havia ocorrido. A concessionária responsável pelo trânsito, porém, apenas interditou um lado da pista e liberou o tráfego no restante. Quando a tragédia ocorreu, as vítimas estavam paradas em um engarrafamento, sem escapatória.

O acontecimento no Paraná é trágico, mas comum. Em todo o país, desastres naturais e antropogênicos vitimam milhares de pessoas todos os anos. Somente no primeiro semestre de 2022, mais de 500 brasileiros morreram em virtude de chuvas.1 Adicione-se a isso as tragédias antropogênicas como as de Brumadinho e Mariana. Esses casos ganham ampla repercussão midiática. Os governos prometem reconstrução, responsabilização e mudanças para prevenir novos eventos. Pouco muda, e as tragédias ocorrem novamente.

É necessário formular estratégias para lidar com esses eventos. Em primeiro lugar, deve existir parâmetros e procedimentos bem definidos para as políticas de prevenção e mitigação de riscos. Em segundo, estruturas e estratégias para responder eficientemente aos acontecimentos. Em terceiro, políticas para reparar os danos e compensar as vítimas.

Essas são as questões com as quais se ocupa o direito dos desastres - campo jurídico que busca estruturar a forma como o poder público deve evitar e lidar com tragédias como as ocorridas no Paraná, no Rio e em Pernambuco. O seu estudo é cada vez mais relevante, sobretudo tendo-se em vista que as mudanças climáticas e a degradação ambiental tendem a agravar sempre mais o problema.

Neste pequeno ensaio, pretendo analisar a tragédia no Paraná a partir da ótica dessa vertente do direito, ao mesmo tempo em que exponho algumas de suas principais características.

O diferencial do direito dos desastres com relação às outras áreas jurídicas envolvidas é a importância que confere à prevenção. Esta recebe o mesmo foco das medidas emergenciais, reconstrutivas e compensatórias. Nesse contexto, ganha especial relevo a necessidade de se promoverem obras estruturais, regulamentos eficazes e políticas públicas constantes para eliminar ou mitigar riscos.2

Assim, esse ramo do direito se caracteriza por uma ação encadeada ao longo de todo o ciclo dos desastres: prevenção de riscos, resposta emergencial, compensação e reconstrução. Todo esse caminho deve ser trilhado sob uma perspectiva de gestão de riscos. Ou seja, mesmo as ações posteriores à ocorrência devem ter por norte a prevenção de que ela se repita, tomando-se em conta o caráter circular desses eventos.3

Desastres são inesperados, mas não imprevisíveis. É muito provável que ocorram novas enchentes no litoral carioca, novos deslizamentos na serra paranaense, novos vazamentos de petróleo no oceano atlântico e assim por diante. Pode não ser possível prever com firmeza quando isso acontecerá, mas o poder público deve estar preparado para esses momentos, que certamente chegarão.4

Essa realidade foi reconhecida pela lei 12.608/12, que instituiu a Política Básica de Defesa Civil. A legislação estabeleceu a obrigação do poder público de dar enfoque ao controle de riscos, por meio de atuação conjunta das autoridades públicas e com entrelaçamento dos mais diversos campos do direito. É questionável, contudo, se suas disposições vêm efetivamente sendo observadas pelos gestores.

Analisemos cada uma das fases desse ciclo, remetendo-nos ao caso paranaense.

Prevenção e mitigação de riscos

Como dito, esse é o principal objetivo das instituições do direito dos desastres. Aqui, o papel do direito é implementar políticas de gestão de riscos. Isso compreende impor e regular a adoção de medidas estruturais e não-estruturais para conhecê-los e prevenir a sua concretização. Exemplo das primeiras são obras públicas e políticas de preservação ou restauração ambiental. Das segundas, estudos de impacto ambiental, matrizes de risco e planos de atuação.5

Deve-se considerar que a destruição e a própria ocorrência dos desastres não escapam por completo do controle humano. Com planejamento e infraestrutura adequadas, seus efeitos podem ser mitigados ou até evitados. Frequentemente, os problemas derivam ou são ampliados em virtude de proteção ambiental insuficiente e infraestruturas e construções impróprias.6

O Estado do Paraná é referência em programas de gestão de riscos e desastres ambientais. Há uma ampla rede de pesquisa e monitoramento que congrega órgãos públicos, municípios e instituições de pesquisa, bem como programas para oferecer medidas preventivas e respostas rápidas aos eventos.7 O que deu errado?

É cedo para afirmar com certeza. Como a rodovia é federal, e o trecho não estava em perímetro urbano, é possível que o problema tenha derivado da divisão de tarefas entre o poder público e a concessionária. O contrato de concessão é lacônico quanto à gestão de riscos de acidentes como o que ocorreu - embora eles não sejam incomuns - mas atribui à empresa o dever de zelar pela preservação ambiental e a responsabilidade por eventuais acidentes na estrada.8

Realmente, a companhia afirmou em nota que realiza análises periódicas nas encostas e não havia constatado riscos no local. Conforme a Defesa Civil, todavia, a "vulnerabilidade técnica" do trecho era conhecida, sobretudo em virtude do aumento nas chuvas.9

O fato é que a gestão de riscos não foi adequada. Se a possibilidade de deslizamento era conhecida, mas não se fez nada para impedir a sua concretização, falhou-se em mitigar o problema. Se não era conhecida, tanto pior, pois significa que a concessionária e as autoridades públicas nem sequer compreendem a magnitude das contingências - e que possivelmente haja outros pontos sensíveis desconhecidos.

Para evitar novos casos semelhantes, seria importante ao menos definir com clareza no contrato de concessão as responsabilidades da concessionária com relação ao tema. Deve-se especificar no mínimo como e com que frequência o monitoramento será feito, qual o nível de risco aceitável e qual a medida a ser tomada caso se verifique um possível deslizamento.

Resposta de emergência

Mesmo com boas políticas preventivas, é impossível impedir que todos os desastres ocorram. Nesse caso, é necessário agir com eficiência para resgatar as vítimas e conter os danos.

Quanto a isso, o papel fundamental do direito é manter uma estabilidade normativa dinâmica e fornecer parâmetros de atuação para que se evite a atuação ao largo da ordem jurídica. Deve haver normas claras que balizem as respostas estatais à tragédia, bem como definam as competências de cada órgão.10

Tudo isso, porém, deve ser feito com máxima atenção para que os regulamentos não se tornem um entrave à atuação emergencial. Ao contrário, o direito deve servir como facilitador da atuação pública, estipulando um plano de ação claro que sirva de base para uma atuação eficiente e ordenada.11 Para isso, é preciso tomar em conta as peculiaridades geográficas e sociais de cada local, o que torna imprescindível a coordenação regulatória entre todos os entes federativos, com enfoque no âmbito municipal.

Na BR-376, semana passada, chama atenção o fato de que houve um deslizamento menor no meio da tarde, o qual bloqueou metade da pista. Apesar disso, a concessionária não interditou a rodovia e, aparentemente, nem mesmo procurou de algum modo verificar se havia risco de outro evento. O que poderia ser um incômodo médio tornou-se um desastre: quando o deslizamento maior veio, os motoristas estavam presos no engarrafamento que se formou nas proximidades do anterior.

Isso ilustra a necessidade de se agir com velocidade, preferencialmente antes que o problema adquira caráter tão trágico. Não é necessário esperar que a tragédia ocorra por completo para começar a adotar as medidas para impedir o agravamento da situação.

Em casos mais graves, como o de Petrópolis, é preciso providenciar, entre outros, socorro aos sobreviventes, abrigo a quem perdeu sua casa, suprimentos para evitar desabastecimento e medidas para conter maiores danos socioambientais. Em situações como a paranaense, é necessário ao menos socorrer as vítimas, encontrar os corpos e retirar os demais transeuntes da área de risco.

Aqui, é essencial que exista pessoal capacitado e órgãos especializados com competências bem estabelecidas para identificar o problema e agir o quanto antes. Para tanto, a existência de planos bem estruturados mas flexíveis para orientar a atuação da administração pública é de grande importância.

Possivelmente, se houvesse normas claras sobre como a concessionária deveria agir após o primeiro deslizamento ou se esta tivesse a obrigação de acionar a Defesa Civil já nesse momento, seria possível avaliar melhor a situação, isolar a área, e evitar as dezenas de mortes pelo fato posterior. A falta dessa estrutura normativa levou à letargia, e esta ocasionou a tragédia.

Compensação e reconstrução

Após o desastre, é preciso compensar as vítimas e reparar os danos. No que toca à compensação, entra em cena o direito da responsabilidade civil entre particulares e do Estado, bem como o securitário.

Nesse campo, a responsabilidade civil encontra severas dificuldades. Primeiro, pela grande dispersão dos danos, que atingem de formas diversas uma coletividade significativa e o próprio meio ambiente. Segundo, pelos problemas relativos à comprovação dos prejuízos e do nexo de causalidade, sobretudo quanto aos efeitos secundários, que não decorrem diretamente do evento. Terceiro, pela complexidade de se definir o responsável pela indenização e de se demonstrar a ilicitude da sua conduta.12

Some-se a isso, ainda, a dificuldade que grandes camadas da população brasileira têm para acessar a Justiça de forma eficaz. Nesse contexto, é importante utilizar as práticas de processo civil estrutural, levadas adiante seja pelo Ministério Público e Defensoria, seja por associações civis. Ações coletivas podem tutelar com mais coordenação e racionalidade os direitos difusos envolvidos nesses casos, além de propiciar a todas as vítimas uma prestação jurisdicional de maior qualidade.13

No caso do Paraná, não há dúvida que as vítimas do deslizamento e seus familiares têm direito a ser indenizados pelos danos materiais e morais causados pela tragédia. Nesse passo, a responsabilidade não deve recair apenas sobre a concessionária, mesmo que haja uma cláusula contratual vaga nesse sentido. O poder público é também responsável, uma vez que deixou de estipular de modo suficiente a maneira como a prestadora do serviço preveniria, avaliaria e responderia a situações como a que ocorreu. Essa omissão, sem dúvida, deve ensejar a sua responsabilização.

De seu lado, a reconstrução deve sempre levar em conta o caráter cíclico dos desastres. Não se pode simplesmente recolocar tudo no lugar anterior e torcer para que não venha novamente abaixo. É preciso realocar, com dignidade, as pessoas em locais de risco e reconstruir as estruturas já com a implementação de medidas preventivas para impedir ou mitigar os efeitos de novo evento semelhante.14

Conclusão

Tragédias ambientais naturais e antropogênicas já são comuns e tendem a se agravar com a degradação do meio ambiente e a mudança climática. O deslizamento no Paraná pode ser pequeno quando comparado com as enchentes de Petrópolis e a devastação de Brumadinho, mas reforça a urgência de se dar atenção ao direito dos desastres.

Esse campo jurídico entrelaça várias outras áreas do direito e abrange todo o ciclo dos desastres: prevenção e mitigação de riscos, resposta de emergência, compensação e reconstrução. O fio condutor de tudo isso é a gestão de riscos e o fortalecimento da governança, com enfoque preventivo.

Neste artigo, procurei fazer uma introdução singela ao tema, com a esperança de chamar a atenção à sua urgência. Ao mesmo tempo, tive por finalidade homenagear as vítimas da tragédia no Paraná, para que o seu sofrimento não deixe de ser correspondido pela adoção de medidas para que o fato não se repita.

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1 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61651974. Acesso em 01/12/2022.

2 FREIRIA, Rafael Costa. Prefácio. In: BRASIL, Deilton Ribeiro et al. A emergência do direito dos desastres na sociedade de risco globalizada. Belo Horizonte: Conhecimento, 2020, p. XIV. 

3 DE CARVALHO, Délton Winter. As mudanças climáticas e a formação do direito dos desastres. Novos Estudos Jurí¬dicos, Itajaí¬ (SC), v. 18, n. 3, 2013. p. 409-410.

4 FARBER, Daniel. Disaster Law and Emerging Issues in Brazil. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, 4(I), Porto Alegre, 2012, p. 3.

5 DE CARVALHO, Délton Winter. Op cit, p. 406-407.

6 FARBER, Daniel. Op cit, p. 4.

7 Ilustrativamente, cf. PINHEIRO, Eduardo Gomes; PEDROSO, Frederico (org.). Construindo um Estado Resiliente. Curitiba: CEPED/FUNESPAR, 2016. Disponível em http://www.ceped.pr.gov.br/arquivos/File/ContruindoEstadoResiliente.pdf

8 Contrato disponível em https://www.arteris.com.br/wp-content/uploads/2020/08/Contrato-de-Concessa%CC%83o-Litoral-Sul.pdf. Acesso em 01/12/2022. Cf: cláusulas 4.1, 16.6, j, 16.15.

9 https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2022/11/30/deslizamento-na-br-376-prf-diz-que-cabia-a-concessionaria-decidir-sobre-fechamento-da-rodovia.ghtml. Acesso em 01/12/2022.

10 FARBER, Daniel. Op cit, p. 6.

11 DE CARVALHO, Délton Winter. Op cit, p. 406-407.

12 BRASIL, Deilton Ribeiro; SOARES, Sandro Eduardo Roussin. A responsabilidade civil por dano ambiental futuro na atividade minerária sob a ótica dos direitos fundamentais. In: BRASIL, Deilton Ribeiro et al. A emergência do direito dos desastres na sociedade de risco globalizada. Belo Horizonte: Conhecimento, 2020, p. 93.

13 Sobre o tema, vide ARENHART, Sérgio Cruz; OSNA, Gustavo. Curso de Processo Coletivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

14 DE CARVALHO, Délton Winter. Op cit, p. 409.

Matheus Gomes Setti

Matheus Gomes Setti

Advogado no escritório Cid Campêlo. Mestrando em Direito do Estado na Universidade Federal do Paraná e formado na mesma instituição, com extensão em Direito Econômico pela Humboldt Universität zu Berlin

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