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Sobre o direito à saúde das pessoas que menstruam. Um diálogo com Djamila Ribeiro

Jaqueline Gomes de Jesus, Luanda Pires e Paulo Iotti title=Paulo Iotti

Embora se compreenda a preocupação da autora, entendemos que ela se equivoca gravemente e desconsidera o lugar de fala de homens trans, pessoas intersexo e não-binárias que menstruam e gestam, além de mostrar desconhecer o contexto muito específico em que expressões tais são usadas.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Atualizado às 14:04

A filósofa, feminista e ativista Djamila Ribeiro publicou artigo na Folha dizendo-se incomodada com o termo "pessoas que menstruam" e afins, por entender, em síntese, que criaria um "novo universal", que supostamente desconsideraria e apagaria demandas específicas das mulheres1- ela se referia às mulheres cisgêneras, não abarcando as mulheres trans ou travestis, destaque-se. Cita autoras do feminismo negro para defender que a expressão por ela criticada seria um retrocesso ao feminismo, por restringir a mulher a questões biológicas.

Embora se compreenda a preocupação da autora, entendemos que ela se equivoca gravemente e desconsidera o lugar de fala de homens trans, pessoas intersexo e não-binárias que menstruam e gestam, além de mostrar desconhecer o contexto muito específico em que expressões tais são usadas.

Importante destacar que, enquanto herdeiro do Feminismo Negro, o Transfeminismo também se alimenta dos debates centrais do Feminismo, atualizando-os, inclusive, ao trazer para o contexto das pessoas trans a crítica à biologização das identidades, à redução da categoria "mulher" a uma única identidade e à hierarquização de opressões que desconsidera as interseccionalidades, além de reiterar que faz-se mister uma reconstrução da autorrepresentação dos homens negros fora do modelo de masculinidade hegemônico2.3 Nisso, portanto, temos pleno acordo com Djamila Ribeiro.

Sobre a expressão em debate, não se trata de "pretensa" intenção de incluir homens trans, como a autora disse, pois essa é a intenção explícita da expressão. No mais, ela parece desconhecer que expressões como "pessoas que menstruam" e afins são usadas no contexto específico das políticas de saúde (pública e privada) que consideram, sim, a biologia. Logo, como explica em nota (entre outras) a ABETH - Associação Brasileira de Estudos da Trans-Homocultura4, erra a filósofa porque não se quer substituir a categoria mulheres por outro universal para que se passe a referir às "mulheres" apenas como "pessoas que menstruam" em todos os âmbitos da vida social, pois se pretende apenas pontuar que, nas demandas biológicas comuns, a expressão "pessoas que menstruam" abarca demandas comuns tanto das mulheres cis como dos homens trans e de parte das pessoas intersexo e não-binárias. O que também vale para a expressão "pessoas que têm próstata" para incluir as mulheres trans, pessoas intersexo e não-binárias em políticas de saúde normalmente direcionadas somente a homens cisgêneros, expressão esta que também é usada no mesmo contexto de saúde e a autora mostrou desconhecer ao dizer que o termo "homens" supostamente restaria intocado.

Reiteramos: é sim uma pauta feminista tanto o reconhecimento de que pessoa alguma deveria ser resumida a suas funções orgânicas quanto os direitos sexuais e reprodutivos da população trans, avessa à falsa universalidade da categoria "mulher" quando se refere unicamente às mulheres cis - pois mulheres trans repetem a célebre pergunta retórica de Sojourner Truth: "E eu não sou uma mulher?"5. Igualmente, não se pode ignorar menstruação e gestação como características de alguns homens (os homens trans), sequer reduzir a categoria "homens" apenas a pessoas com pênis ou próstata, como costuma convir a discursos de ódio transfóbico.

Como se vê, em nenhum momento a expressão "pessoas que menstruam" contraria as belas lições do feminismo em geral e do feminismo negro em particular - quanto mais do transfeminismo - sobre o descabimento de vinculação das mulheres unicamente à biologia. Ocorre que não se pode negar que as mulheres cis têm demandas biológicas específicas e que as compartilham com os homens trans, pessoas transmasculinas e parte das pessoas não-binárias e intersexo (da mesma forma que homens cis o têm relativamente às travestis, mulheres trans e parte das pessoas não-binárias e intersexo), de sorte que, especificamente para políticas de saúde que têm como foco a biologia humana, são úteis expressões guarda-chuva que abarquem todas as pessoas que precisam desses serviços de saúde.

Esse é o único contexto que a expressão criticada pela autora se destina, o que comprova o acerto de Hailey Kaas, ativista transfeminista pioneira no Brasil, quando diz que Djamila Ribeiro "confunde alhos com bugalhos e se incomoda com um fenômeno inexistente: [pois] ninguém defende que 'mulheres' sejam substituídas por 'pessoas que menstruam' ou 'pessoas que gestam'", de sorte que: "O texto de Djamila, ao revelar um incômodo com algo inexistente, solapa os esforços do transfeminismo e do movimento trans em sua ação conjunta de coalizão e solidariedade". Isso porque a expressão "pessoas que menstruam" "não surge para substituir o termo mulheres e nem para reduzi-las à biologia simplesmente pelo fato que os dois termos não são mutuamente excludentes e nem intercambiáveis". Nesse sentido, bem pontua, sobre as colocações da autora quanto ao feminicídio, que: "Ninguém está exigindo que passemos a falar 'violência contra pessoas que menstruam. Isso é simplesmente inexistente'".

Logo, é em um contexto muito específico, de saúde, que a expressão contestada por Djamila Ribeiro e a relativa a "pessoas com próstata" são utilizadas. Assim, conclui Hailey Kaas que, embora a autora esteja certa ao dizer que mulheres não são apenas pessoas que menstruam, "ao criar um espantalho, seu texto é prejudicial ao movimento trans que luta por inclusão e por outra visão de mundo que não seja uma fortemente marcada pelas normas que orientam o gênero e por uma visão dimórfica dos corpos" 6 7.

Então, como bem afirmou o IBRAT - Instituto Brasileiro de Transmasculinidades em Carta Aberta a Djamila Ribeiro e à Folha,8  a autora desconsiderou, neste caso concreto, o conceito que ela tanto ajudou a difundir pelo Brasil: o lugar de fala, no caso aquele de homens trans e de parte das pessoas intersexo e não-binárias, pois seu texto, objetivamente considerado, ignorou o lugar de fala epistêmico das pessoas trans e intersexo (cf. infra),9 por sequer abordar o que elas têm produzido acerca do tema. Analisando apenas seu texto, porque mais do que isso é impossível, o IBRAT tem absoluta razão nesta crítica construtiva.

A relevância disso se prova no fato de que, em 2021, o STF, por decisão do Ministro Gilmar Mendes, concedeu liminar na ADPF 787, determinando que o SUS - Sistema Único de Saúde se adapte para respeitar a identidade de gênero das pessoas trans, inclusive para que ginecologistas atendam homens trans, que são homens com vagina, e urologistas atendam mulheres trans e travestis, que são mulheres com próstata, ainda podendo ser pessoas com pênis.10 A discriminação que pessoas trans sofrem, a despeito de sua Biologia demandar tais atendimentos médicos, e que justificou tal ação e decisão, mostra a pertinência do termo "pessoas com vagina/próstata" e afins no âmbito específico de políticas de saúde. Único contexto em que são usadas, reitere-se, donde não têm qualquer efeito de apagar a categoria das mulheres em toda sua interseccionalidade.11 Pelo contrário, têm o mérito de incluir homens trans e parte das pessoas intersexo e não-binárias nas políticas de saúde, algo sequer considerado pela autora em seu texto, que não trouxe alternativas a essa explícita pretensão, inerente ao uso de tais expressões.

Por isso, com todo respeito, entendemos que Djamila Ribeiro se equivocou gravemente no texto com o qual aqui dialogamos e debatemos. E considerando o que ela mesma disse, em Stories de seu Instagram do dia 02.12.22, que quis realizar um debate de ideias, este texto é uma aceitação de tal debate e um convite para que ela reflita acerca do lugar de fala de homens trans, pessoas intersexo e não-binárias - ouvindo suas demandas, lendo e considerando seus textos e argumentos, inclusive pensando sobre o impacto desse debate sobre os corpos de pessoas negras que compõem a maioria da população trans.11 Afinal, para além de acadêmica e acadêmico LGBTI+, somos militantes/ativistas de Direitos Humanos.

Defendemos aqui um lugar epistêmico de fala das pessoas trans, intersexo e não-binárias contra o epistemicídio cissexista, algo certamente caro à autora, visto lutar brilhantemente contra o epistemicídio do pensamento de pessoas negras pelo pacto narcísico da branquitude que tanto assola o Brasil e o mundo - também afetados por um pacto narcísico da cisheteronormatividade que precisa, também, ser combatido com o mesmo rigor. A branquitude e a cisheteronormatividade estão entrelaçadas.

Assim, ratificando integralmente a belíssima Carta Aberta do IBRAT a Djamila Ribeiro e à Folha (já citada), convidamos a autora à reflexão sobre tais temas, que seu texto objetivamente não considerou. Inclusive porque seu texto já está sendo usado por pessoas transfóbicas que querem negar direitos e dignidade a pessoas trans: numa postura de deturpação de quem o faz, temos certeza, até porque a autora defende os direitos das mulheres trans e travestis em sua doutrina e tem, em sua belíssima Coleção Feminismos Plurais, livro específico sobre Transfeminismo13, o que certamente não faria se não tivesse respeito pelos direitos das pessoas trans (Djamila Ribeiro é, certamente, uma aliada, não obstante seu equívoco neste caso). Mas como intelectual tão corretamente preocupada em criticar e condenar também os não-intencionais racismos estruturais contra pessoas negras, precisa estar atenta a que suas manifestações, enquanto intelectual de justíssimo reconhecimento público que é e tem, não tenham efeitos discriminatórios não-intencionais.

Afinal, como o Movimento Negro nos ensinou, a falta de intenção de machucar não afasta a responsabilidade pela dor causada pela fala ou ação em questão, pelo caráter estrutural das opressões, como a transfóbica. Os tweets da ANTRA - Associação Nacional de Travestis e Transexuais sobre este tema14 mostram como as pessoas trans se sentiram menosprezadas em suas demandas e atacadas pelo texto de Djamila Ribeiro, o que ela precisa considerar, em termos de lugar epistêmico de fala dos grupos que seu texto aborda. Pois da mesma forma que não cabe à pessoa branca dizer à pessoa negra o que é ou não racismo (negrofóbico), não cabe à pessoa cis dizer à pessoa trans o que é ou não transfobia, e isso independente da decisão do STF que reconheceu a homotransfobia como forma de racismo (STF, ADO 26 e MI 4733, j. 13.06.2019, que reconheceu, assim, a existência do crime de racismo homotransfóbico).15

Note-se, ainda, que a ANTRA se propôs ao genuíno diálogo com a autora, pois trouxe alternativas que podem constituir-se como um meio-termo comum aos dois lados16 (o que também foi feito, de forma análoga, por Hailey Kaas, no texto já mencionado, e pela ativista travesti Amanda Palha17). Iniciou pontuando que "ninguém está sugerindo que o termo seja usado como identidade universal", destacando em seguida que "o que pessoas trans e nb [não-binárias] propõem é que é para quando falarmos sobre corporalidade, funções reprodutivas e/ou sexuais, entre outras, devemos ir além da identidade (sabiam que 'mulher' é uma identidade?) e focar na condição". Daí que, como propostas para resolver a polêmica, sugere: "1. Quando falarmos sobre mulheridades, iremos pautar questões relacionadas às mulheres", como "violência doméstica em termos da Lei Maria da Penha, feminicídio, violência política de gênero etc. 2. Quando falarmos sobre corporalidades, iremos pautar questões relacionadas a questões específicas", como, no novembro azul, políticas de saúde de cuidado com a próstata de homens cisgênero, das mulheres transexuais, das travestis, das pessoas não-binárias com próstata etc. Conclui o diálogo aduzindo que, "Com isso, para garantir que pessoas trans, nb e intersexo sejam consideradas, podemos pensar em políticas públicas de saúde onde o foco deve ser na condição que se pretende discutir, não se limitando à identidade da pessoa", de sorte que, "Resumindo, menstruação, gestação, lactação, puerpério, por exemplo, não são possibilidades exclusivas de corpos de mulheres cis, mas de todas as pessoas que menstruam ou que têm útero, que podem gestar, que podem amamentar e assim por diante. E lembre-se: ninguém vai sair por aí chamando você de 'pessoa que menstrua', como se essa fosse sua identidade ou de forma descontextualizada". Finaliza com uma crítica, pertinente ante o texto da autora ter desconsiderado aspectos tão basilares do tema que se propôs a debater de forma crítica: "Ler o que pessoas trans têm produzido é um bom caminho antes de reproduzir a desinformação" - algo que temos certeza que Djamila Ribeiro entenderá por ter conclamado a sociedade brasileira, com toda a razão, a ler o que pessoas negras têm produzido, antes de se tirar conclusões sobre o tema do racismo negrofóbico. Logo, espera-se que faça o mesmo, em atendimento à virtude da coerência, quando se dispor a falar sobre demandas e pleitos das pessoas trans: leia o que as pessoas trans têm produzido. Isso certamente teria evitado uma série de mal-entendidos que seu texto gera, mesmo sem intenção.

Pontue-se que, ao mencionar que o termo "mulher" é uma categoria identitária, a ANTRA se referiu à célebre dicotomia entre, de um lado, "macho" e "fêmea", como questões relacionadas a "sexo biológico" e, assim, vinculadas à Natureza, e, de outro, a "homem" e "mulher", como questões relacionadas ao "gênero" e, assim, vinculadas à Cultura. Dicotomia esta tradicionalmente associada à doutrina de Simone de Beauvoir,18 cuja célebre frase "ninguém nasce mulher, torna-se mulher" é a conclusão de uma série de considerações do primeiro volume de sua obra, pela qual, sem desconsiderar a importância do corpo e da biologia para a vida da mulher, recusa-se a que biologia seja afirmada como atribuindo um destino imutável à mulher, nos seguintes termos: "sendo o corpo o instrumento do nosso domínio do mundo, este apresenta-se de modo inteiramente diferente segundo seja apreendido de uma maneira ou de outra. Eis porque o estudamos tão demoradamente; são chaves que permitem compreender a mulher. Mas o que recusamos é a ideia de que constituem um destino imutável para ela. Não bastam para definir uma hierarquia dos sexos; não explicam porque a mulher é o Outro; não a condenam a conservar para sempre essa condição subordinada"19 (grifo nosso).

Destaque-se que isso não significa que a ANTRA discorde de Judith Butler (e nós também não discordamos) de que "o sexo é um conceito generificado", no sentido de que o sexo biológico é entendido a partir das normas culturais de gênero, ou seja, de que há imposições sociais às pessoas pretensamente "em razão" de seu sexo biológico, quando na verdade são por força das normas (culturais) de gênero, sobre aquilo que se espera que homens e mulheres façam.20 Usando célebre expressão de Butler,21 lutamos para que todos os corpos importem em todos os contextos e, neste caso, no contexto das políticas de saúde, sem invisibilizar e menosprezar, neste caso, os corpos das pessoas trans e intersexo que menstruam mesmo sem serem mulheres cis, e que têm próstata mesmo sem serem homens cis.

Seja como for, é a essa discussão que a ANTRA se refere quando fala que a mulher também é uma identidade, algo não contestado pelos feminismos em geral, inclusive o feminismo negro, e que demanda, apenas, que se fale em mulheres, no plural, para que não se crie um "universal" que presuma como "mulher" apenas aquela de determinado grupo social (historicamente, as mulheres brancas, de classe média ou alta etc).

Destaque-se que tanto não se discorda da não-limitação da mulher à sua biologia que o transfeminismo sofre ataques de setores que, estes sim, efetivamente biologizam a pessoa humana e a mulher em especial, a saber, (setores d)o feminismo radical transfóbico,22 que limitam a mulher apenas a seu "sexo biológico" na sua intensa luta de perseguição e ataques às mulheres trans. Afinal, como já apontado, o que as expressões "pessoas que menstruam/têm próstata" e afins defendem é que, nas demandas de saúde (pública e privada), que envolvem a biologia, haja uma expressão que não invisibilize os homens trans, as pessoas intersexo e não-binárias que têm as mesmas demandas de saúde das mulheres cisgênero, no tocante à expressão "pessoas que menstruam/com vagina", e dos homens cisgênero, no caso das "pessoas com próstata" (e afins).

Um ponto central é o seguinte: realmente pessoas trans, intersexo e não-binárias são sujeitos políticos que transcendem em muito a biologia, mas sujeitos políticos que têm demandas biológicas idênticas às das pessoas cis em termos de políticas de saúde que historicamente têm sido invisibilizadas, sendo que é a isso e apenas isso que as expressões "pessoas que menstruam", "pessoas que têm próstata" e afins querem abordar e efetivamente abordam.

Ressalte-se que nada neste texto significa ataques ou agressões a Djamila Ribeiro, que propôs um importante debate público, não obstante, com todo respeito, desconsiderando aspectos basilares da discussão, acima pontuados. Ao se propor a um debate de ideias e criticar expressão criada para incluir homens trans e pessoas intersexo e não-binárias nas políticas públicas de saúde, abriu-se para o diálogo e o debate franco e, assim, à crítica a suas críticas. Sendo que não se desconhecem novos Stories da autora, surpreendendo-se com pedidos de retratação de sua fala, por entender que não ofendeu ninguém e achar isso uma tentativa de intimação (sic).

Ratificamos, assim, a manifestação de Carolina Iara, mulher intersexo negra e Codeputada estadual na ALESP - Assembleia Legislativa de São Paulo, quando disse que as contribuições da filósofa Djamila Ribeiro têm sido enormes à Academia e ao Movimento de Mulheres Negras no Brasil e nada disso é aqui questionado, mas isso também não a exime de erros, neste caso relativos à transfobia estrutural que assola todas as pessoas cisgênero e, consequentemente, também a ela enquanto mulher negra cis. Isso ao pontuar aquilo já aqui desenvolvido, ou seja, que a categoria "pessoas que menstruam/com útero/com próstata/com pênis" e afins nunca visaram nem foram utilizadas para substituir as categorias "mulheres" e "homens"23.

Afinal, com todo o respeito, da mesma forma que a autora disse que não pode ser acusada de "transfobia" apenas por apresentar uma perspectiva distinta daquela dos Movimentos Trans, ela também não pode acusar uma pessoa de "racismo" (negrofóbico) por entender que seu texto desconsidera o lugar de fala de pessoas trans, intersexo e não-binárias, se mostrou insensível às suas demandas de saúde (pois não propôs absolutamente nada para abarcá-las em seu texto) e não analisou questões basilares que são centrais ao debate a que se propôs.

Assim, queremos crer que a autora se referiu a ataques verdadeiros a sua posição, tão deploravelmente comuns nas redes sociais, ou acusações peremptórias de transfobia sem a fundamentação apresentada por entidades como o IBRAT, a ANTRA e a ABETH. Se eventualmente se referiu a estas manifestações após tê-las lido, terá incorrido em profunda contradição, ao defender seu direito de criticar ideias das quais discorda (o qual, à toda evidência, ela tem) sem considerar isso um ataque ou uma ofensa, mas considerar como ataque, ofensa e/ou tentativa de intimidação as críticas à sua crítica. Da mesma forma que a autora tem liberdade de expressão e crítica para expor seu pensamento, as entidades de defesa dos direitos das populações de homens trans, pessoas não-binárias e intersexo também têm o mesmíssimo direito de liberdade de expressão e crítica para criticar a crítica dela. E é apenas disso que trata o presente texto.

Citamos, quanto ao tema, lição da própria Djamila Ribeiro sobre o caráter estrutural das opressões, embora focado no racismo contra pessoas negras, que entendemos que deve(ria) fazê-la refletir sobre o fato de tantas pessoas trans estarem se sentindo atacadas ou, no mínimo, menosprezadas pelo seu texto, ainda que não tenha sido a intenção da autora (e temos certeza que não foi). No capítulo "Perceba o racismo dentro de você" de seu "Pequeno Manual Antirracista", a filósofa ensina com primor que "a maioria das pessoas admite haver racismo no Brasil, mas quase ninguém se assume como racista. Pelo contrário, o primeiro impulso de muita gente é recusar enfaticamente a hipótese de ter comportamento racista. [...] A partir do momento em que se compreende o racismo como um sistema que estrutura a sociedade, essas respostas se tornam vazias. É impossível não ser racista tendo sido criado numa sociedade racista. É algo que está em nós e contra o que devemos lutar sempre. É claro que há quem seja abertamente racista e manifeste sua hostilidade contra grupos sociais vulneráveis das mais diferentes formas. Mas é preciso notar que o racismo é algo tão presente em nossa sociedade que muitas vezes passa desapercebido. [...] Por isso, o combate ao racismo é um processo longo e doloroso. Como diz a pensadora feminista Audre Lorde, é necessário matar o opressor que há em nós, e isso não é feito apenas se dizendo antirracista: é preciso fazer cobranças"24.

Assim, independentemente da transfobia ter sido considerada forma de racismo pelo STF (cf. supra), fato é que a transfobia também é estrutural e estruturante da sociedade (como a homofobia e, assim, a LGBTI+fobia em geral). Usando as palavras da autora, é impossível não ser (homo)transfóbico(a) tendo sido criado(a) em uma sociedade (homo)transfóbica, donde a ausência de intenção dela de ter sido transfóbica (e, reiteramos, acreditamos não ter sido essa a sua intenção) não apaga a transfobia e intersexofobia estruturais que as comunidades trans e intersexo viram em seu texto. Então, da mesma forma que pessoas brancas devem fazer esse longo e doloroso processo de combate ao racismo estrutural negrofóbico como tão bem citado pela autora, as pessoas cis devem fazê-lo para combater a transfobia estrutural (e as pessoas heterossexuais sobre a homofobia/LGB+fobia estrutural). Indaga-se: se uma mesma quantidade de pessoas negras dissesse a uma pessoa branca que o texto desta teria desconsiderado o lugar de fala das pessoas negras, Djamila Ribeiro não ratificaria essa crítica a tal pessoa branca? Temos certeza que sim. Por isso, entendemos que ela, como mulher cis, poderia fazer a mesma coisa sobre as críticas que tem recebido de pessoas trans - no mínimo, as críticas baseadas em debates de ideias, como a da carta aberta do IBRAT, as manifestações da ANTRA e da ABETH, os textos de Hailey Kaas, Amanda Palha e Carolina Iara e, também, deste texto.

Ante o exposto, ratificamos a Carta Aberta do IBRAT e esperamos por nova manifestação de Djamila Ribeiro que considere os elementos ali e aqui expostos, ou, ao menos, complemente sua posição também em outro artigo, que expliquem sua posição de respeito a tais demandas do lugar de fala das pessoas trans e intersexo, porque é papel da intelectualidade efetivamente engajada com os Direitos Humanos ter lugar de escuta para com quem discute com profundidade temas como transfobia e cisheteronormatividade.

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1 RIBEIRO, Djamila. Nós, mulheres, não somos apenas "pessoas que menstruam". Folha Online, 01.12.2022. Disponível em: . Acesso deste e dos demais links citados: 03.12.2022. 

2 JESUS, Jaqueline G. Transfeminismo: Teorias e Práticas, Rio de Janeiro: Metanoia, 2014.

3 SANTANA, Bruno; PEÇANHA, Leonardo M. B.; CONCEIÇÃO, Vércio G. Transmasculinidades Negras: Narrativas Plurais em Primeira Pessoa, São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2021.

4 ABETH - Associação Brasileira de Estudos da Trans-Homocultura. Nota da ABETH em apoio à comunidade transmasculina brasileira. Instagram, 02.12.2022. Disponível em: .

5 TRUTH, Sojourner. Eu Não Sou Uma Mulher? E outros discursos, JESUS, Jaqueline (Org.), Belo Horizonte: Nandyala, 2019. 

6 KAAS, Hailey. Respondendo a Djamila Ribeiro: Eu também sou uma mulher. Transfeminismo, 02.12.2022. Disponível em: .

7 Ao falar em "visão dimórfica de corpos", está se referindo à demanda do Movimento Intersexo pelo direito à diversidade corporal, sem cirurgias compulsórias em bebês para adequá-los ao padrão biológico "macho" e "fêmea", incompatível com seus corpos, já que existem mais de 44 tipos de intersexualidades, sendo assim senso comum simplório falar-se que "só existe XX ou XY" (sic).

8 IBRAT - Instituto Brasileiro de Transmasculinidades. Carta aberta a Djamila Ribeiro e à Folha de SP. 02.12.2022. Disponível em: .

9 RIBEIRO, Djamila. Lugar de Fala, 2ª Ed., São Paulo: Pólen, 2019, p. 24, 28-29, 41, 43, 53, 57-61, 63, 69, 77-78, 85-86. Para a autora, entre outras questões também relevantes, é preciso combater o chamado privilégio epistêmico, segundo o qual os grupos sociais que possuem privilégios sociais acabam tendo o modo de pensar de seu grupo como o adotado em termos de modelo ideal, de sorte que só respeita verdadeiramente o pluralismo social a conduta de descolonizar o pensamento, porque não existe pensamento "neutro", com o que é preciso "construir novos lugares de fala. Sobre o tema, entendemos que a autora não considerou o lugar epistêmico de fala de homens trans e de parte das pessoas não-binárias e intersexo, pelas razões expostas no corpo do texto. 

10 RODAS, Sérgio. Gilmar Mendes manda Ministério da Saúde adotar medidas para trans e travestis. Revista Consultor Jurídico, 28.06.2021. Disponível em: .

11 AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade, 2ª Ed., São Paulo: Ed. Pólen, 2018, p. 20-21, 30 e 43-44. Segundo a autora, a interseccionalidade visa reconhecer que há pessoas que sofrem locus de opressões cruzadas, em um sistema de opressão interligado (Patrícia Hill Collins), de pessoas que se constituem por múltiplas avenidas identitárias, detentoras de subjetividades complexificadas. Mas bem ressalta que "A interseccionalidade impede aforismos matemáticos hierarquizantes ou comparativos. Em vez de somar identidades, analisa-se quais condições estruturais atravessam corpos, quais posicionalidades reorientam significados subjetivos desses corpos, por serem experiências modeladas por e durante a interação das estruturas, repetidas vezes colonialistas, estabilizadas pela matriz de opressão, sob a forma de identidade".

12 JESUS, Jaqueline G. Saúde Mental da População Trans: Apontar a cisnormatividade para interseccionalizar os corpos. In: CUNHA, Neon; OLIVEIRA, Liamar; DIAS, Jussara; PRESTES, Clélia (Orgs.), O Enfrentamento dos Efeitos do Racismo, Cissexismo e Transfobia na Saúde Mental, São Paulo: Dandara/Instituto AMMA Psique e Negritude, 2021. p. 27. Conforme aponta a autora, a relação negativamente sinérgica entre LGBTfobia, adoecimento da população LGBT e apagamento da racialidade quanto à "diversidade sexual e étnico-racial das pessoas trans têm impactado negativamente as pesquisas e intervenções sobre a saúde dessa população, principalmente no que concerne ao acesso pleno aos cuidados em saúde, de forma geral, e reconhecendo as nuances de saúde mental e física por ela vivenciada".

13 NASCIMENTO, Letícia. Transfeminismo. Coleção Feminismos Plurais, São Paulo: Jandaíra, 2021.

14 ANTRA (@antra.oficial). (Resposta a Djamila Ribeiro). Instagram, 02.12.2022. Disponível em: . @AntraBrasil. Tweets (em resposta a Djamila Ribeiro), 02.12.2022. Disponíveis em: e

15 Para o STF: "O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito". Cf. REDAÇÃO. STF enquadra homofobia e transfobia como crimes de racismo ao reconhecer omissão legislativa. Brasília, 13.06.2022. Disponível em: . Para acesso direto à Tese do julgamento: .

16 ANTRA (@antra.oficial). O que faremos diante da questão em torno do uso de "pessoas que menstruam"? Instagram, 02.12.2022. Disponível em: .

17 PALHA, Amanda. Não é "só" sobre Transfobia. Algumas palavras sobre corpos versus identidade. Instagram, 03.12.2022. Disponível em: .

18 BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Vol. II. Tradução: Sérgio Millet. Lisboa: Quetzal, p. 13.

19 BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Vol. I. Tradução: Sérgio Millet. Lisboa: Quetzal, p. 73.

20 BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e Subversão da Identidade. Tradução: Renato Aguiar, 12ª Ed., São Paulo: Civilização Brasileira, 2016, p. 27 e 34.

21 BUTLER, Judith. Corpos que importam. Os limites discursivos do "sexo". Tradução: Verônica Daminelli e Daniel Yago Françoli, 2ª reimpr., São Paulo: N-1 e Crocodilo, 2020.

22 Esperamos que nem todas as vertentes do feminismo radical queiram negar direitos e dignidade às mulheres trans, por isso falamos em feminismo radical transfóbico.

23 IARA, Carolina. Pessoas que Menstruam. Instagram, 03.12.2022. Disponível em:

24 RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista, São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 37-39.

Jaqueline Gomes de Jesus

Jaqueline Gomes de Jesus

Doutora em Psicologia Social do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília, com Pós-Doutorado pela Escola Superior de Ciências Sociais e História da Fundação Getúlio Vargas/RJ. Professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro e da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da FIOCRUZ. Presidenta da ABETH - Associação Brasileira de Estudos da Trans-Homocultura.

Luanda Pires

Luanda Pires

Especialista em Direito Contratual, LGBTI+ e de Gênero. Pós-Graduanda em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS). Presidenta da ABMLBTI - Associação Brasileira de Mulheres Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos; Diretora do Me Too Brasil; Diretora-Tesoureira do GADvS - Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero. Líder da pauta LGBTI+ no Movimento Advogadas do Brasil.

Paulo Iotti

VIP Paulo Iotti

Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e em Direito Homoafetivo. Advogado e Professor Universitário. Diretor-Presidente do GADvS - Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero. Integrante da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OABSP. Sócio do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Famílias.

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