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Anteprojeto de lei de regulamentação da relevância da questão federal no recurso especial: observações iniciais

O texto objetiva analisar as modificações pretendidas no anteprojeto de lei que visa regulamentar o instituto da relevância da questão federal.

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Atualizado às 13:45

O presente ensaio objetiva apresentar reflexões acerca de alguns aspectos ligados ao Anteprojeto de Lei (APL) que visa regulamentar (apenas) o §2º, do art. 125, da Constituição Federal (CF), com a redação advinda da Emenda Constitucional (EC) 125, que acrescentou dispositivos ao art. 105, da CF, e passou a consagrar a necessidade de demonstração da relevância da questão de direito federal infraconstitucional (RQF) no Recurso Especial (REsp).

Vale, inicialmente, fazer duas observações e uma crítica:

  1. Apesar da EC 125 ter incluído os §§2º (relevância com demonstração no caso concreto - subjetiva) e 3º (relevância presumida- objetiva), apenas o primeiro parágrafo foi objeto do APL;
  2. A versão final do APL foi entregue ao Senado Federal no início do mês de dezembro de 20222;
  3. Na justificativa do APL consta a passagem de que a norma pretende reafirmar a superposição do Tribunal como órgão que visa "uniformizar a jurisprudência e dar a última palavra sobre a legislação federal". Contudo, de duas uma: ou as hipóteses contidas no art. 105, III, c, da CF (divergência interpretativa da norma federal entre as Cortes locais) possuem relevância presumida e estão incluídas no próprio §3º, do art. 105, da CF, ou nos casos declarados sem relevância pela Corte Superior, a "última palavra" ocorrerá no âmbito local.

Dito de outra forma: considerando a função uniformizadora da Corte da Cidadania, bem como a própria previsão do art. 105, III, c, da CF, a relevância não estaria objetivamente  presente (art. 105, §3º, V, da CF) em caso de interpretação de lei federal de forma divergente entre tribunais locais, nas questões em que o próprio STJ afirmar que não há relevância?

É razoável afirmar, pela leitura da EC e do APL, que a RQF objetivamente prevista no art. 105, §3º, V, da CF alcança apenas a contrariedade entre o acórdão recorrido e a jurisprudência dominante do Tribunal Superior, não atingindo, pelo menos de início, a divergência entre tribunais locais, especialmente nos casos em que a interpretação da lei federal envolver questão que o próprio STJ já tenha declarado a inexistência de relevância. Idêntico raciocínio está presente nos casos de ausência de Repercussão Geral (RG) no Recurso Extraordinário (RE), onde a última palavra da interpretação constitucional para os casos posteriores é de competência dos próprios Tribunais Locais.

Aliás, é evidente que este novo requisito de admissibilidade faz parte de um tema maior e dialoga diretamente com a RG no RE e com a ampliação, de um lado, dos filtros recursais e, de outro, da força dos precedentes qualificados firmados pelos Tribunais Superiores. A justificativa do APL afirma expressamente que o instituto da RG: "inspirou a criação da relevância da questão federal para o recurso especial".

É possível, portanto, apresentar a seguinte premissa: a regulamentação da EC deixa clara a aproximação sistemática entre a RG e a RQF, no que respeita à fixação do padrão decisório e as consequências processuais relacionadas ao recurso afetado e a multiplicidade de demandas diretamente atingidas.

Neste sentido, o APL pretende incluir o art. 1035-A, ao CPC, com nítida inspiração no art. 1035, do Código (que trata da RG), trazendo a operacionalização do instituto da relevância e o papel do novo instrumento de gestão de processos pelo STJ. A proposta legislativa trata:

  1. Da irrecorribilidade da decisão que não conhecer do REsp quando não houver relevância;
  2. Dos parâmetros da relevância da questão do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do caso concreto;
  3. Da necessidade de demonstração da RQF em tópico específico e com a necessária fundamentação, visando a apreciação exclusiva pelo próprio STJ, sob pena de inadmissão recursal;
  4. Da presunção de relevância objetiva nos casos previstos no art. 105, §3º, da CF (e não enfrentados diretamente pelo APL);
  5. Da possibilidade de manifestação de terceiros;
  6. Da necessidade da manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do Órgão competente, para o não conhecimento do recurso em razão da ausência de relevância;
  7. Da possibilidade de suspensão do processamento dos casos concretos pendentes, individuais ou coletivos, em caso de reconhecimento da relevância e antes da fixação da Tese decorrente da resolução meritória (o que irá gerar a aplicabilidade imediata - como será tratado a seguir).

Aliás, a pretendida redação do art. 1035-A, do CPC vai além do que o próprio art. 1035, do CPC, no que respeita à exigência de tópico próprio contendo a demonstração da relevância; mas não trata do prazo para julgamento do REsp afetado, do cabimento de recurso de agravo interno nos casos de indeferimento da manifestação de terceiro, bem como das hipóteses da exclusão do sobrestamento.

Da mesma sorte, o APL não enfrenta duas importantes questões:

  1. Qual seria o Órgão competente para a deliberação acerca da existência ou não da relevância? Nestes meses entre a entrada em vigor da EC 125 e a norma que está sendo aqui analisada, foi muito discutido se a inexistência da relevância poderia ser declarada por uma das seis Turmas (que seriam inicialmente competentes para a análise do REsp), das três Seções ou apenas pelo Órgão Especial do STJ;
  2. A possibilidade de análise da ausência de relevância apenas para o caso concreto, o que está previsto no Regimento Interno do STF para os casos de ausência de Repercussão Geral (art. 326, §§ 1º a 4º do RISTF).

Muito provavelmente, estes e outros aspectos sensíveis entre a RQR e RG, incluindo os pontos de contato entre o REsp e RE (necessidade de simetria entre os arts. 1.032 e 1.033, do CPC -quanto à necessidade de demonstração da relevância antes da remessa do RE para o STJ) devem ser posteriormente tratados no Regimento Interno do STJ, o que está em consonância com o próprio art. 96, I, a, da CF e com ressalva expressa no art. 6º, do APL.

Ademais, em razão da omissão do APL, outro aspecto que também deve ser enfrentado posteriormente em norma interna é a situação tratada no art. 987, §1º, do CPC: será que o REsp interposto contra acórdão em IRDR local terá presunção de relevância, em simetria ao tratamento dado à RG?

De outro prisma, acredito que uma das principais indagações a ser feita e que será respondida com o efetivo funcionamento do novo filtro no futuro, é a seguinte: qual será o futuro dos REsp repetitivos? É bem possível que, assim como ocorreu no STF nos casos de RE repetitivos, o instituto da RQF e sua técnica de formação de precedente acabe por absorver a sistemática prevista nos arts. 1.036 e seguintes, do CPC.

Aliás, após a proposta de inclusão do art. 1035-A, ao CPC, o APL pretende modificar outros dispositivos da legislação processual, com o objetivo de compatibilizá-la com o rito da relevância, com técnica de formação do precedente qualificado e com a chamada estadualização da interpretação da lei federal .

Com efeito, o APL pretende incluir o inciso III-A, ao art. 927, do CPC, visando a consagração do acórdão proferido no REsp paradigma submetido ao regime da relevância como precedente qualificado e de observância pelos demais magistrados. No ponto, penso que o sistema de obrigatoriedade de aplicação (com todas as críticas existentes e necessárias) ocorre tanto para os casos em que o STJ concluir pela inexistência de relevância (inclusive com novos poderes de negativa de seguimento pelos Tribunais locais e esvaziamento do Agravo em Recurso Especial - AREsp), como naqueles em que, além da declaração da existência de relevância, ocorrer a apreciação meritória, com indicação de Tema e fixação de Tese - à semelhança do que ocorre nos casos de RG e na sistemática dos repetitivos.

Aliás, consequência natural desta percepção é a alteração pretendida no art. 932, IV, b e V, b, do CPC, que passará a consagrar, dentre os poderes ou incumbências dos Relatores, a negativa de provimento ou o próprio provimento monocrático dos recursos que desafiam questões já objeto de análise anterior da RQF pelo STJ.

Importante também a previsão de alteração do art. 998, parágrafo único, do CPC, deixando claro que os casos de RG e RQR devem ser tratados de forma objetiva, pelo que havendo desistência recursal ou outro fator subjetivo (como, por exemplo o falecimento de umas das partes envolvidas no caso concreto), não há  impedimento ao julgamento da questão de direito federal infraconstitucional4.

Penso que uma das modificações mais importantes visando atender ao objetivo pretendido para a RQF e a ampliação do filtro recursal, seja a proposta de alteração dos arts. 1.030 (juízo de conformidade) e 1.042, do CPC, o que, ratificando o que já foi aqui mencionado, esvaziará (ainda mais) as hipóteses de cabimento de AREsp (art. 1.042, do CPC), tendo em vista que o REsp que pretende discutir questão infraconstitucional federal à qual o STJ não tenha reconhecido a relevância, bem como quando o recurso foi interposto contra acórdão local em conformidade com Tese firmada pela Corte Superior no regime de relevância, desafiarão o manejo de Agravo Interno no próprio Órgão local.

Importante afirmar novamente: o tratamento legislativo pretendido para a RQF é o mesmo para os casos envolvendo a RG, esvaziando a hipótese de recorribilidade por Agravo do art. 1.042, do CPC. É possível ocorrer a seguinte hipótese: caso o apelo especial tenha o seguimento negado pela redação proposta para o art. 1.030, I, c, do CPC, o interessado deverá manejar Agravo Interno (art. 1.030, §2º, e proposta de redação nova ao art. 1.042, do CPC) e, em seguida, é discutível o cabimento de Reclamação, seguindo padrão decisório advindo da própria Corte Especial do Tribunal (Reclamação - RCL 36.4765).

A propósito, é importante ressaltar que o APL não pretende alterar o ambiente de cabimento da RCL. A norma em comento não inclui qualquer modificação no art. 988, §5º, II, do CPC (cabimento de RCL proposta para garantir a observância de padrão decisório advindo da RQF, após o exaurimento da instância local).

É razoável afirmar, quanto ao ponto, que deverá ocorrer um paulatino aumento (ainda mais) do número de Reclamações no STJ, desta feita visando discutir a aplicação do padrão decisório advindo da RQF, quem sabe gerando uma futura revisitação do que foi decidido na RCL 36.476.

Em última análise: o STJ, ao declarar o que tem e o que não tem relevância, escolherá o que irá apreciar, num claro ambiente de gestão de processos e de acervo, passando a deslocar para o ambiente local a massificação da interpretação do padrão decisório para os casos concretos.

A propósito, três outras propostas de alteração merecem destaque:

  1. Art. 1.039, parágrafo único, do CPC - com a negativa de RQF no recurso afetado, os REsp sobrestados serão automaticamente inadmitidos, à semelhança do que ocorre com a RG;
  2. Indicação do tópico específico e fundamentado referente à RQF apenas para os recursos interpostos contra acórdãos publicados após a entrada em vigência da lei (art. 4º, do APL);
  3. Incidência em todos os processos em andamento no STJ e nas instâncias origem (art. 5º, do APL)6.

Em decorrência do objetivo pretendido pela EC e pelo APL, duas consequências claras podem ser afirmadas antes de encerrar estas breves reflexões: de um lado amplia-se a competência jurisdicional dos órgãos locais quanto aos casos sem relevância ou mesmo na controle e aplicação da Tese a ser fixada no julgamento do caso afetado e, de outro, haverá o natural esvaziamento do número de AREsp, passando o STJ a atuar de forma qualificada na escolha das questões federais infraconstitucionais que serão objeto de padrões decisórios obrigatórios.

Por fim, o art. 7º da proposta prevê 30 (trinta dias) de vacatio legis, período importante para os jurisdicionados e também ao próprio STF (especialmente em relação aos aspectos tecnológicos e às alterações necessárias em seu Regimento Interno).

Estas são algumas anotações acerca do APL remetido ao Senador Federal no início do mês de dezembro de 2022.

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1 Pós-doutor (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), doutor e mestre (Universidade Federal do Pará), Professor do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA) e do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), procurador do estado do Pará e advogado.

2 https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2022/05122022-STJ-entrega-ao-Senado-proposta-para-regulamentar-filtro-de-relevancia-do-recurso-especial.aspx . Acesso em 09.12.2022 7h15.

3 No tema: ARAÚJO, José Henrique Mouta e NERY, Rodrigo. Questões sem "relevância": jurisdição cooperada e redefinição de competência. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-ago-22/araujo-nery-ultima-palavra-questoes-relevancia. Acesso em 09.12.2022, às 7h10.

4 Em outra oportunidade, analisei a aproximação entre os controles difuso e concentrado de constitucionalidade, partindo da declaração de RG pelo STF: ARAÚJO, José Henrique Mouta. A supremacia constitucional e a aproximação dos instrumentos de controle difuso e concentrado em decorrência da repercussão geral no recurso extraordinário. Disponível em https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/cadernovirtual/article/download/3935/1712. Acesso em 09.12.2022 às 7h00.

5 ARAÚJO, José Henrique Mouta. Se reclamação não é admitida, como recorrer de decisão sobre precedente qualificado? Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-jun-11/artx-jose-mouta-mandado-seguranca-reclamacao-instrumentos-visando-aplicacao-precedentes-qualificados. Acesso em 09.12.22 - 7h05.

6 No STF, ver QO AI 715.423 (Rel. Min. Ellen Gracie).

José Henrique Mouta

VIP José Henrique Mouta

Mestre e Doutor (UFPA), com estágio em pós-doutoramento pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professor do IDP (DF) e Cesupa (PA). Procurador do Estado do Pará e advogado.

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