MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. O futuro pede desenvolvimento com sustentabilidade: notas sobre o cotidiano do Direito Ambiental brasileiro

O futuro pede desenvolvimento com sustentabilidade: notas sobre o cotidiano do Direito Ambiental brasileiro

O Direito Ambiental Brasileiro, por fim, se debruça diuturnamente sobre tais temas cotidianos por intermédio de seus operadores técnicos e jurídicos, os quais merecem obviamente atenção, assim como as grandes discussões sobre mudanças climáticas e acordos internacionais, dentre outros temas de suma relevância.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Atualizado às 15:50

Recentemente foi noticiado que a Advocacia-Geral da União (AGU) obteve decisão judicial autorizando a demolição de parte de empreendimentos localizados na orla da praia de Jurerê Internacional, em Florianópolis (SC). De acordo com a decisão da 6ª Vara Federal de Florianópolis, as construções consideradas irregulares, construídas após o ano de 2005, deverão ser demolidas até o próximo dia 18 de dezembro. Além disso, o juízo também estabeleceu o prazo de 30 dias para a AGU apresentar valores de multas e indenizações que serão cobradas em virtude da ocupação irregular1. As principais questões estão relacionadas com a supressão de vegetação de restinga e com a dificuldade de acesso à praia por parte da população.

Nesse contexto, sem adentrar nas minúcias relativas ao caso concreto e longe de exaurir o tema, o presente artigo pretende trazer reflexões sobre o importante e necessário diálogo entre o desenvolvimento socioeconômico e a manutenção do meio ambiente equilibrado em todas as suas formas.

É inegável que a ocupação humana impõe maiores impactos ambientais aos recursos naturais. A construção das cidades, a urbanização, o adensamento populacional acabam por afetar a fauna, a flora e principalmente os próprios elementos humanos2. Os recursos naturais não são inesgotáveis, de modo que as atividades econômicas não podem se desenvolver descoladas dessa realidade. É preciso que se busque a coexistência da preservação ambiental e do desenvolvimento econômico, de modo que um não anule o outro3. Não há espaço para extremismos ou concepções maniqueístas do fenômeno ambiental, especialmente quando o desenvolvimento sustentável está amparado por três pilares centrais: o econômico, o social e o ambiental4.

Paulo Affonso Leme Machado chama a atenção para o fato de que, durante muito tempo, os aspectos ambientais foram desatendidos em detrimento dos aspectos econômicos, atribuindo a estes um peso muito maior do que àqueles. Segundo o autor, "a harmonização dos interesses em jogo não pode ser feita ao preço da desvalorização do meio ambiente ou da desconsideração de fatores que possibilitam o equilíbrio ambiental"5.

O constituinte de 1988, atento a esses fatos, previu na nossa lei Fundamental a possibilidade de se adotar uma série de mecanismos para mitigação desses impactos.

O art. 225 da Constituição Federal, ao dispor sobre o meio ambiente ecologicamente equilibrado, prevê em seu § 1º um extenso rol exemplificativo relativo aos deveres de proteção ambiental que, caso não observados, podem acarretar práticas inconstitucionais ou antijurídicas aptas a atrair responsabilização por danos causados6.

Por sua vez, o art. 170 do texto constitucional estabelece que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, deverá atender aos ditames da justiça social, impondo respeito ao princípio da defesa do meio ambiente (inciso VI).

Constata-se, portanto, que "caminham lado a lado a livre concorrência e a defesa do meio ambiente, a fim de que a ordem econômica esteja voltada à justiça social"7. Nessa ambiência, o Ministro Edson Fachin, em voto na ADI 5.547, entendeu que essa disciplina:

[...] conduz justamente à conformação do amálgama que busca adequar a proteção ambiental à justiça social, que, enquanto valor e fundamento da ordem econômica (CRFB, art. 170, caput) e da ordem social (CRFB, art. 193), protege, ao lado da defesa do meio ambiente, o valor social do trabalho, fundamento do Estado de Direito efetivamente democrático (art. 1º, IV, da CRFB), e os objetivos republicanos de 'construir uma sociedade livre, justa e solidária' e 'erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais' (Art. 3º, I e III).

Como bem pondera Celso Antônio Pacheco Fiorillo, para que haja um ponto de equilíbrio entre o desenvolvimento social, o crescimento econômico e a utilização dos recursos naturais, deve haver um adequado planejamento territorial que observe os limites da sustentabilidade, lançando mão dos instrumentos adequados, previstos na legislação em vigor8.

O crescimento desordenado das cidades, a falta de controle preventivo por parte do Poder Público e o arcabouço legal muitas vezes confuso e aparentemente contraditório, comportando diversos entendimentos, acabou por trazer uma série de problemas e insegurança jurídica. Reflexo disso é a questão que envolvia a lei de Parcelamento do Solo Urbano (lei federal 6.766, de 1979) e o "Novo Código Florestal"9 (lei federal 12.651, de 2012).

A lei de Parcelamento do Solo Urbano previa uma faixa non aedificandi de no mínimo 15 (quinze) metros de cada lado ao longo dos cursos hídricos, ao passo que o "Novo Código Florestal" prescrevia no mínimo 30 (trinta) metros, o que levou a se autorizar a realização de obras em empreendimentos em patamar menor do que o previsto na norma ambiental.

Face às discussões acerca de qual legislação deveria ser observada, o STJ buscou resolver a controvérsia, ao julgar o Tema Repetitivo 1010, fixando a seguinte tese:

Na vigência do novo Código Florestal (lei 12.651/12), a extensão não edificável nas Áreas de Preservação Permanente de qualquer curso d'água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que disciplinado pelo seu art. 4º, caput, inciso I, alíneas a, b, c, d e e, a fim de assegurar a mais ampla garantia ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade.

Em evidente reação legislativa, o Congresso Nacional aprovou projeto de lei, posteriormente convertido na lei federal 14.285, de 2021, que alterou o "Novo Código Florestal", atribuindo competência aos municípios para definir faixa marginal diferente da estabelecida no inciso I do caput do art. 4º, desde que ouvidos os conselhos estaduais e municipais de meio ambiente10. Também foi alterada a redação do inciso XXVI do art. 3º, que trata da área urbana consolidada.

Além disso, na lei de Parcelamento do Solo Urbano foi suprimida a menção aos 15 (quinze) metros (art. 4º-A), harmonizando a redação ao que dispõe o "Novo Código Florestal".

Outro ponto envolve as restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues, também consideradas áreas de preservação permanente (art. 4º, VI, do "Novo Código Florestal"). A exemplo do caso citado no início deste artigo, muitos empreendimentos foram construídos sobre essas áreas, com ou sem anuência do Poder Público, e que posteriormente foram contestadas por entidades voltadas à proteção do meio ambiente e/ou pelos órgãos de controle, como Ministérios Público Estadual e Federal. Situações assim geram enorme insegurança jurídica a quem deseja empreender.

Recentemente ainda, uma nova construção de condomínio de luxo fora suspensa pela Justiça Federal em Florianópolis. A situação ocorrera no bairro Córrego Grande e tem por base um laudo de vistoria do Ibama que relata uma série de irregularidades para contenção de danos ambientais. Abaixo as declarações da prefeitura e da construtora, de acordo com o Portal G111:

Construtora: "O Grupo D'Agostini esclarece que até o momento não recebeu nenhuma notificação judicial referente ao empreendimento Brisas da Ilha. A empresa se mantém à disposição de todos os órgãos competentes e seguirá cumprindo todas as decisões judiciais, prática exercida à risca pela empresa".

Prefeitura de Florianópolis: "A Prefeitura de Florianópolis, por meio da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, esclarece que a Floram autorizou regularmente o empreendimento Brisas da Ilha, no Córrego Grande, que apresentou todas as documentações necessárias para gerar a autorização. A instalação do projeto e supressão de vegetação são regulares, mediante compensação ambiental. Ressalta-se também que todas as características ambientais da área do loteamento foram rigorosamente avaliadas ao longo do processo de licenciamento ambiental. A área de intervenção não é considerada área de preservação permanente"

Cotidianamente se percebe que tais conflitos envolvendo a temática ambiental se repetem e as versões que emergem são as mais diversas e semelhantes possíveis. Há por vezes, e não obrigatoriamente nessa ordem,  omissão na fiscalização, boa-fé e má-fé do empreendedor, excessivo discurso protecionista ambiental, judicialização de demandas que poderiam ser resolvidas extrajudicialmente, os conflitos são os mais variados possíveis.

Caso semelhante ocorrera recentemente também no Paraná. A Justiça Federal do Paraná suspendeu licença de construção de resort, nos termos do apontado pelo Ministério Público Federal (MPF), que conclui12:

"Além das irregularidades já apontadas, a construção do resort vai de encontro a diversos documentos técnicos do ICMBio, contrários à implantação das estruturas do empreendimento em APP no interior da APA. A autorização do ICMBio é etapa necessária já que o imóvel está inserido integralmente na APA Federal de Ilhas e Várzeas do Rio Paraná"

A realidade é que tais impasses carecem de observância daquilo que já fora predito desde o Relatório Bruntdland de 1987, ou seja, a execução do conceito de Desenvolvimento Sustentável13, esse que visa justamente equalizar14 os anseios do desenvolvimento com a sustentabilidade.

Ademais, não se pode sopesar um desses valores como sendo de maior valor em detrimento de outro, por vezes assim ocorre, notadamente quando se analisa em uma visão transnacional esse dilema, entretanto chegar a uma convergência entre ambos os fatores nos parece ser a medida mais acertada, e para isso, não se pode haver ideologismos, é preciso compreender a versão divergente até que a convergência surja preponderantemente como sendo a definitiva e arrematadora solução do impasse.

O Direito Ambiental Brasileiro, por fim, se debruça diuturnamente sobre tais temas cotidianos por intermédio de seus operadores técnicos e jurídicos, os quais merecem obviamente atenção, assim como as grandes discussões sobre mudanças climáticas e acordos internacionais, dentre outros temas de suma relevância.

Embora possa se parecer temas comuns, se realmente estivessem estes superados, não se teria no noticiário tais manchetes conforme ora relatadas acima. Logo, o debate e a conscientização ambiental de desenvolvimento com sustentabilidade será sempre uma pauta recorrente, em nome de um futuro melhor.

-----------------------

1 https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/beach-clubs-erguidos-de-forma-irregular-em-jurere-terao-que-ser-demolidos-ate-18-de-dezembro-confirma-agu-na-justica. Acesso em 6.12.2022.

2 BRUNA, Gilda Collet; PHILIPPI JR, Arlindo. Políticas Públicas e Sustentabilidade no Meio Ambiente. In Direito ambiental e sustentabilidade, org. Arlindo Philippi Jr, Vladimir Passos de Freitas & Ana Luiza Spínola. Barueri: Editora Manole, 2016. E-book).

3 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 13ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 94.

4 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ambiental: constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente. 3ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 54.

5 MACHADO. Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 21ª ed. rev. atual. e ampl., de acordo com as Leis 12.651, de 25.5.2012 e 12.727, de 17.10.2012 e com o Decreto 7.830, de 17.10.2012. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 74. 

6 Ibid., p. 55.

7 FIORILLO, op. cit., p. 95.

8 FIORILLO, op. cit., p. 94.

9 Utilizou-se as aspas pois, na verdade, não se trata de um código, como era na vigência da Lei federal nº 4.771, de 15 de setembro de 1965. No entanto, optou-se por manter a nomenclatura, em razão de ser assim muito referenciada.

10 Art. 4º [...]

§ 10. Em áreas urbanas consolidadas, ouvidos os conselhos estaduais, municipais ou distrital de meio ambiente, lei municipal ou distrital poderá definir faixas marginais distintas daquelas estabelecidas no inciso I do caput deste artigo, com regras que estabeleçam:

I - a não ocupação de áreas com risco de desastres;

II - a observância das diretrizes do plano de recursos hídricos, do plano de bacia, do plano de drenagem ou do plano de saneamento básico, se houver; e

III - a previsão de que as atividades ou os empreendimentos a serem instalados nas áreas de preservação permanente urbanas devem observar os casos de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental fixados nesta Lei.

11 BIKEL, Diane; PACHECO John. Construção de condomínio de luxo é suspensa pela Justiça em Florianópolis; entenda. G1 Globo. Disponível em: https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2022/12/14/construcao-de-condominio-de-luxo-e-suspensa-pela-justica-em-florianopolis-entenda.ghtml

12 DANTAS, Claudio. Justiça Federal suspende licença de construção de resort. O ANTAGONISTA. Disponível em: https://oantagonista.uol.com.br/brasil/justica-federal-suspende-licenca-de-construcao-de-resort-da-familia-toffoli/amp/. Acesso em: 18 dez. 2022. 

13 "O desenvolvimento sustentável é o maior desafio do século 21. A pauta da cidade é, no planeta urbano, de maior importância para todos os países, pois: a) dois terços do consumo mundial de energia advêm das cidades, b) 75% dos resíduos são gerados nas cidades e c) vive-se um processo dramático de esgotamento dos recursos hídricos e de consumo exagerado de água potável. A agenda Cidades Sustentáveis é, assim, desafio e oportunidades únicas no desenvolvimento das nações". LEITE, Carlos; AWAD, Juliana di Cesare Marques. Cidades sustentáveis, cidades inteligentes: desenvolvimento sustentável num planeta urbano. Porto Alegre: Bookman, 2012, p. 8.

14 [...] a necessidade de conciliar desenvolvimento econômico com a proteção ao meio ambiente está de forma adequada expressa no conceito de desenvolvimento sustentável''. BOSSELMANN, Klaus. Princípio da Sustentabilidade: transformando direito e governança. Tradução de Phillip Gil França. São Paulo: Revista dos tribunais, 2015. p. 96

Maykon Fagundes Machado

VIP Maykon Fagundes Machado

Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI - SC. Pós-Graduado em Jurisdição Federal pela Escola da Magistratura Federal do Estado de Santa - ESMAFESC. Advogado.

Nathan M. Wasserberg

Nathan M. Wasserberg

Advogado. Especialista em Direito Público pela Faculdade Metropolitana. Assessor Técnico na Consultoria Jurídica da Secretaria do Desenvolvimento Econômico Sustentável de Santa Catarina. Presidente da Terceira Câmara Recursal e membro da Câmara Técnica de Assuntos Jurídicos do Conselho do Meio Ambiente de Santa Catarina. Membro Consultivo da Comissão de Direito Ambiental da OAB/SC.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca