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Cuidados paliativos e a valorização do indivíduo frente à doença

O artigo aborda a importância dos cuidados paliativos como instrumento de valorização do indivíduo e manutenção da dignidade humana frente à doença.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Atualizado às 09:17

Na leitura do livro A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, acompanhamos o fim de vida do personagem principal, um influente funcionário do Tribunal de Justiça que, após anos de realizações profissionais e conquistas pessoais, é acometido por uma grave enfermidade, que lhe causa muita dor. Com boas condições financeiras, a família de Ivan consulta inúmeros médicos de São Petersburgo, mas nenhum é capaz definir um diagnóstico, nem de lhe reduzir o sofrimento físico e psíquico, repercutindo em uma crescente angústia. O leitor é conduzido, por meio da minuciosa narrativa, a sentir o enorme desconforto e desespero de um doente nessas condições que, além de não encontrar alívio para suas dores físicas, é abandonado para lidar sozinho com seus medos.

Infelizmente, a situação ambientada na Rússia do século XIX é frequente no Brasil de hoje, apesar de tantos avanços da ciência, capazes de melhorar a qualidade de vida do paciente. O manejo dos sintomas físicos e psíquicos, característicos dos pacientes com doenças crônicas, costumam ser postergados, aumentando suas dores e impactando todos aqueles que os acompanham neste processo. Mas a solução deste problema não é tão simples, por envolver fatores culturais, técnicos e informacionais.

Na sociedade contemporânea, que glorifica a juventude, enquanto tenta camuflar a velhice de tantas formas, falar em terminalidade da vida ainda é tabu. Grande parte dos pacientes, familiares e equipe médica fica desconfortável em abordar o assunto, como se, omitindo esta possibilidade, ela não venha a se materializar.

Por vivenciarmos avanços extraordinários da medicina, frequentemente a morte é compreendida como fracasso. Entretanto, é importante refletir sobre esta concepção e relembrar que o exercício da medicina originalmente não compreende apenas salvar ou prolongar vidas, mas oferecer o cuidado e bem-estar, mesmo quando não há possibilidade de cura.

Ao levar às últimas consequências o tratamento de uma doença com quadro clínico irreversível, retira-se o foco do indivíduo e perde-se a oportunidade de se iniciar um planejamento de cuidados que, quando realizado com antecedência, permite uma melhor qualidade de vida para o paciente e maior tranquilidade a todos os envolvidos, incluindo a família e a equipe médica.

Os cuidados paliativos - eventualmente denominados cuidados ativos ou integrativos - objetivam prevenir ou aliviar o sofrimento humano, seja ele físico, psíquico, espiritual e até existencial e podem ser caracterizados como um "processo de discussões entre profissionais da saúde e pacientes que permite a tomada de decisão compartilhada quanto a objetivos e cuidados de saúde atuais e/ou futuros, com base nos desejos e valores do paciente e em questões técnicas do cuidado"1.

Costumam envolver o alívio de sintomas existentes, a prevenção da ocorrência de novos problemas e a promoção de oportunidades para experiências significativas e valiosas, crescimento pessoal e espiritual, além da autorrealização, por meio da atuação sensível aos anseios daquela pessoa.

Diante de recentes estudos que demonstram seus benefícios, inclusive evidenciando aumento na expectativa de vida, atualmente os cuidados paliativos são preconizados para todos aqueles indivíduos que possuem doenças que ameacem a continuidade da vida, mesmo que a longo prazo. Eles podem complementar um tratamento de determinada doença ou podem se tornar o foco total do cuidado. Não se tratam, portanto, de cuidado exclusivamente de fim de vida, como ocorria no passado.

O grande diferencial é que o centro de todo o processo passa a ser o ser humano e não a doença, de forma que ele possa manter sua autonomia e dignidade, exercendo papel principal nas decisões a serem tomadas no decorrer do tempo, até mesmo quando estiver inconsciente - elegendo um representante ou documentando suas diretivas antecipadas de vontade2.

A equipe multidisciplinar que acompanha o paciente deve envolver não apenas médicos, mas enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas, assistentes sociais, conselheiros espirituais, e outros que se fizerem necessários para aumentar o seu bem-estar geral.

Apesar da sua importância, apenas em 2011 a medicina paliativa foi considerada uma área de atuação pelo Conselho Federal de Medicina, a ser associada às especialidades já reconhecidas de clínica médica, cancerologia, geriatria e gerontologia, medicina de família, pediatria e anestesiologia3 (posteriormente incluídas as especialidades de medicina intensiva e cirurgia de cabeça e pescoço), promovendo mais visibilidade e permitindo a melhor formação médica.

Ainda hoje, porém, é comum observarmos nos profissionais de saúde em atividade uma reduzida ou nenhuma familiaridade e experiência prática sobre a condução do processo de terminalidade da vida. Normalmente, consideram a medicina como ofício para salvar ou prolongar vidas, qualificando a morte como um fracasso e não como um evento natural. Este entendimento equivocado precisa ser combatido, porque negar a morte é negar a condição de ser humano. Devemos retomar a formação do profissional médico voltada para o indivíduo e não apenas para a doença.

Se a medicina é uma ciência em que não existem certezas e todos os tratamentos envolvem riscos, é fundamental que os médicos sejam honestos e informem ao paciente, a partir das evidências científicas mais atuais, o seu prognóstico e as possibilidades terapêuticas, com os respectivos riscos e probabilidade de cura. E isso deve ser feito em cada fase do tratamento.

Quando o médico não informa as reais chances de sucesso do tratamento, especialmente quando são muito reduzidas, e submete o paciente a longos, exaustivos e dispendiosos tratamentos que comprometem ainda mais sua saúde e autonomia, ele infringe um dos mais importantes princípios bioéticos, o da não-maleficência, causando mais mal do que bem, além de impactar negativamente um grupo de pessoas envolvidas neste processo.

Omitir é desrespeitar o direito do indivíduo de decidir livremente sobre a execução de seu tratamento, inclusive previsto no artigo 31 do Código de Ética Médica. O artigo 34 do mesmo documento estabelece que o paciente deve conhecer os prós e contras de todas as opções disponíveis e viáveis para seu caso, de maneira que ele possa refletir e decidir de forma autônoma sobre qual ele considera como sendo a melhor.

Por outro lado, vale notar que igualmente existem os pacientes que se afastam do profissional que lhes apresenta um prognóstico indesejado, buscando uma segunda, terceira ou quarta opinião, desde que esta última apresente uma opção com maior possibilidade de sobrevida, independentemente do custo físico, emocional e financeiro que a acompanhe. Esta obstinação terapêutica - que excede os limites do razoável - deve ser desencorajada e os pacientes com esta conduta precisam de aconselhamento sobre as consequências que tal atitude pode repercutir na sua saúde, autonomia e dignidade.

Urge, portanto, que o conhecimento sobre os benefícios dos cuidados paliativos produza uma mudança de comportamento na sociedade, resgatando o olhar para o ser humano em sua totalidade. E esta transformação deve ser guiada pelo médico que, por meio da sua capacidade técnica e da confiança nele depositada, poderá promover o envolvimento da equipe de cuidados, paciente e familiares na busca pelas melhores decisões que respeitem e dignifiquem o indivíduo na condição de paciente.

Neste sentido, o Conselho Nacional de Educação reconheceu, através da Resolução CNE/CES de 3 de novembro de 20224 (em vigor a partir de 10 de dezembro do mesmo ano) que alunos de graduação em medicina devem receber formação e treinamento sobre competências específicas em cuidados paliativos, incluindo critérios de indicação para cuidados paliativos precoces (ao diagnóstico de doença ameaçadora de vida) e indicação e manejo de cuidados de fim de vida incluindo, além do controle de sintomas de sofrimento físico, a abordagem de aspectos psicossociais, espirituais e culturais dos cuidados e também identificando riscos potenciais de luto complicado.

Espera-se que o aprimoramento na educação médica seja o catalisador da mudança de cultura de uma sociedade em relação à morte, trazendo o evento para o debate público, a fim de propiciar o planejamento ou ao menos uma reflexão a respeito de parte significativa de nossas vidas. Afinal, de tudo que já se filosofou sobre a finitude nos últimos séculos, existe quase um consenso, no sentido de que, quando enxergamos a vida pela perspectiva da morte, passamos viver melhor, priorizando nosso real propósito.

É evidente que nunca foi e continua não sendo fácil compreender e aceitar o fim. Também não é saudável ficar obcecado pela ideia, nem aguardar diariamente pelo evento fatal, mas devemos manter no horizonte a realidade inexorável que, cedo ou tarde, nos aguarda. Enquanto isso, nunca teremos lido todos os livros e ainda conseguiremos sonhar, sofrer, sorrir ou aprender, seja verdadeiramente, ou por meio do legado dos grandes escritores que já sentiram as mesmas aflições tipicamente humanas. Emprestando o conselho do "imortal" Ariano Suassuna: "Tenho duas armas para lutar contra o desespero, a tristeza e até a morte: o riso a cavalo e o galope do sonho. É com isso que enfrento essa dura e fascinante tarefa de viver."

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1 DIAS, Laiane Moraes; BEZERRA, Mirella Rebello; BARRA, Williams Fernandes; NUNES, Rui; REGO, Francisca. Planejamento antecipado de cuidados: guia prático. Revista Bioética, [S.L.], v. 30, n. 3, p. 525-533, set. 2022. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422022303546pt.

2 Brasil. Resolução CFM Nº 1995, de 9 de agosto de 2012. Dispõe sobre  as  diretivas  antecipadas  de  vontade  dos pacientes.

3 Brasil. Resolução CFM Nº 1973, de 14 de julho de 2011. Dispõe sobre a nova redação do Anexo II da Resolução CFM Nº 1.845/08, que celebra o convênio de reconhecimento de especialidades médicas firmado entre o Conselho Federal de Medicina (CFM), a Associação Médica Brasileira (AMB) e a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM). 

4 Resolução CNE/CES nº 3, de 3 de novembro de 2022. Altera os Arts. 6º, 12 e 23 da Resoluc¸a~o CNE/CES no 3/2014, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduac¸a~o em Medicina.

Gisele Machado Figueiredo Boselli

VIP Gisele Machado Figueiredo Boselli

Advogada, formada pela PUC de Campinas, SP, pós graduada em Direito Médico e da Saúde pela PUC do Paraná e em Direito da Economia e da Empresa pela FGV,SP, membro da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB de São Paulo, capital.

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