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A restituição de obras de arte expropriadas durante o horror nazista

Raul Murad Ribeiro de Castro

Nota-se que a restituição de obras de artes plásticas expropriadas durante regime nazista demanda, até hoje, afinamentos no tratamento jurídico da questão.

quinta-feira, 2 de março de 2023

Atualizado em 3 de março de 2023 07:51

Recentemente, chamou a atenção a notícia de que os herdeiros do marchand Ambroise Vollard, após um debate de quase dez anos, farão jus à restituição de quatro pinturas que se encontravam no acervo do Museu d'Orsay1. Cuidam-se de um quadro de Paul Gauguin ('Natureza Morta com Bandolim'), um de Paul Cézanne ('Sous-Bois'), bem como dois de Pierre Auguste Renoir ('Marine, Guernsey' e um estudo em técnica sanguínea de 'O Julgamento de Paris'). O contexto de restituição destas obras remonta a expropriação de bens ocorrida dentre os horrores do regime nazista e, novamente, traz a lume um debate, infelizmente, ainda sem solução definitiva no cenário internacional e especialmente no Brasil.

 (Imagem: Divulgação)

(Imagem: Divulgação)

Do que se relata, quando do falecimento de Vollard e em meio à disputa judicial entre seus irmãos pelo acervo de cerca de 6.000 obras, estas quatro obras teriam sido desviadas por um dos irmãos, então inventariante, postas à disposição de dois negociadores de artes - Étienne Bignou e Martin Fabiani -, os quais posteriormente as alienaram a museus e colecionadores alemães3. Com o fim da 2ª Guerra Mundial, as obras foram recuperadas, devolvidas ao governo Frances e, então, mantidas no acervo do museu. Em 2012, herdeiros do galerista pleitearam sua restituição, mas obtiveram inicial recusa, sob o fundamento de que (a) Ambroise Vollard não integrava a comunidade judaica, não sendo aplicável, assim, legislação própria para esta hipótese; (b) as circunstâncias da alienação não estavam claras e; (c) não indicavam serem fruto de saques realizados pelo regime nazista. Entretanto, em 2023, os herdeiros foram agraciados por decisão favorável às suas pretensões, por meio da qual se concluiu que é devida a restituição de todas as obras recuperadas da Alemanha no pós-guerra, independentemente de o proprietário ser de determinada religião e/ou terem sido expropriadas por meio de pilhagem4.

Em que pese este imbróglio tenha sido resolvido apenas nos dias atuais - e favoravelmente aos herdeiros, esta discussão não é nova e costuma ser permeada por particularidades que, nem sempre, levam à restituição das obras. Por exemplo, em 2018, causou intenso debate a decisão do Comitê Holandês de Restituições sobre a pintura 'Painting with Houses', criada por Wassily Kandinsky, então de propriedade do Município de Amsterdam e exposta no Museu Stedelijk5.

 (Imagem: Divulgação)

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O requerimento foi feito em 2013, por um herdeiro de um dos proprietários da obra pré-alienação ao museu - em específico, o herdeiro da senhora Irma Klein. A investigação pelo Comitê determinou que a obra vendida pela família Lewenstein, em 1940, cuidava de bem alienado por família judia inseria no contexto de potencial perseguição do regime nazista, mas que a alienação não foi forçada; e, neste contexto, a aquisição pelo museu teria se dado por meio de legítimo leilão. Após estas considerações, o Comitê 'ponderou interesses' e concluiu pela impossibilidade de devolução, tendo asseverado que: (i) a alienação da obra não teria sido dada necessariamente por conta do regime nazista; (ii) a aquisição de obras de judeus, mesmo no período nazista, não induziria necessariamente à uma compra de má-fé; (iii) a proprietária possuía boa relação com o museu e não reivindicou a restituição da obra após o fim da 2ª Guerra Mundial; (iv) assim como o herdeiro não teria demonstrado vínculo emocional com a obra7. Nota-se que a decisão é polêmica. Recentemente, em fevereiro de 2022, a municipalidade de Amsterdam manifestou que era um 'dever moral'8 restituir a obra aos herdeiros e assim o fez, a despeito de ter decisão definita do Comitê em seu favor, em aparente conformidade com a lição extraída em Coríntios 6:129.

No Brasil, esta situação ganha contornos ainda mais indefinidos. Há relatos na imprensa10  e em trabalhos acadêmicos11  de disputas de herdeiros de um marchand (não identificado) e do banqueiro Oscar Wassermann contra o Museu de arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP). Não se sabe se estas disputas são judiciais, tendo em vista a ausência de maiores detalhes quanto a eventuais demandas ajuizadas perante o Poder Judiciário. O objeto das disputas contempla, respectivamente, cinco esculturas de bailarinas do artista Edgar Degas e à tela 'O casamento desigual' de autoria atribuída a um dos pupilos de Quentin Metsys.

 (Imagem: Divulgação)

(Imagem: Divulgação)
 

As histórias são semelhantes às relatadas anteriormente, com herdeiros de famílias judias que reivindicam a propriedade das obras, cuja titularidade se desconectou de seus donos durante e/ou por conta do regime nazista. A diferença está no desfecho, ao que parece. Em consulta à base de dados do MASP, verifica-se que tanto as esculturas13, quando a pintura14 continuam em seu acervo. Esta informação indica que ou houve alguma espécie de consenso entre herdeiros e o MASP; ou as reivindicações não foram atendidas. Parece ser a última hipótese, tendo em vista a declaração do MASP de que não haveria provas que dessem suporte às reivindicações15.

Adicionalmente, em termos jurídicos, pleitos desta ordem tendem a ter um caminho tortuoso no território pátrio. De início, verifica-se que o Brasil é signatário dos 'Princípios da Conferência de Washington sobre Obras de Arte Confiscadas por Nazistas', firmada em 199816. Este documento traz onze princípios, por meio dos quais é incentivado que os proprietários originais tenham acesso a uma solução justa e de boa-fé, o que compreende a restituição, mas pode alcançar outras propostas17. Entretanto, estes princípios não são vinculantes - conforme introdução da própria carta - e demandariam internalização pelo país signatário, o que não ocorreu no Brasil18.

Mas não só. Antes mesmo desta carta, o então presidente Fernando Henrique Cardoso instituiu a 'Comissão Especial de Apuração de Patrimônios Nazistas', no ano de 1997, tendo por fim 'apurar o ingresso e a existência, no Brasil, de patrimônio ilicitamente confiscado às vítimas do regime nazista' (art. 1º, I do Decreto n. 07/1997). Este diploma, porém, sequer previa as consequências da dita apuração - seja eventual devolução das obras ou indenização. Ademais, pouco se tem notícia sobre os trabalhos da Comissão. Colhe-se material da imprensa do ano de 1998, em que é relatado que obras de Picasso e Monet teriam sido espontaneamente entregues pelos, então, proprietários à Comissão. Não obstante, após terem tido notícia de que tais telas seria fruto de saque da 2ª Guerra, a Comissão não saberia, até então, o que fazer com as mesmas19.

No mais, os últimos relatos mais marcantes sobre a Comissão são justamente sobre a ausência de preservação do material elaborado. Em 2016, em atenção a um requerimento de acesso à informação, o Governo Federal informou que "[...] não dispõe de servidores para esse tipo de pesquisa e nos demandaria um enorme esforço para realiza-la"20. Por sua vez, em 2018, jornalista Lauro Jardim fez a mesma pesquisa21, tendo recebido a resposta que "[...] o referido processo em meio físico não foi localizado no acervo sob custódia da Divisão de Arquivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública e que não possui imagens digitalizadas nos sistemas legados"22.

Assim, na hipótese de eventual pleito perante museu, galeria ou marchand no território nacional, restará aos herdeiros, então, apenas os institutos da legislação cível, os quais não foram pensados para esta hipótese e poderiam a representar um óbice às demandas restitutórias.

Por oportuno, é possível que se alegue a incidência da prescrição, pois, passaram-se quase oitenta anos desde o fim da 2ª Guerra Mundial, ao passo que o maior prazo prescricional na legislação cível conta com hiato de pretensão de dez anos (art. 205 do Código Civil - CC). Lembre-se, por sinal, que o Tribunal da Cidadania reconheceu a incidência da usucapião em bem móvel mesmo quando objeto de crime (REsp 1.637.370/RJ, Min. Bellizze, J. 10.09.2019). Não obstante, poder-se-ia desenvolver uma interpretação em analogia à compreensão sedimentada da Corte Cidadã23 quanto à imprescritibilidade de pretensões relativamente a violações de direitos humanos durante o regime militar; uma vez que o patrimônio cultural é compreendido como direito fundamental constitucional (art. 215 e 216, CF)24, assim como a perda da propriedade deu-se em regime de perseguição militar.

Em complemento, tem-se a previsão do art. 1.268, CC sobre alienação a non domino de bens móveis e prestígio do terceiro de boa-fé. Por este, o terceiro de boa-fé mantém a propriedade, desde que a aquisição se dê em estabelecimento comercial ou leilão e em circunstâncias que indicassem que o alienante era proprietário do bem. Esta hipótese, porém, tenderia a comportar interpretação especial para a aquisição de obras desta espécie - de significativa relevância econômica. Como a proteção da boa-fé é calcada na teoria da aparência, "[...] lastreada em fatores que imputam ao alienante a qualidade de dono [...]"25, neste caso o terceiro de boa-fé não seria um sujeito incauto, mas experimentado neste mercado e ciente em potencial de certos riscos que possam envolver obras desta qualidade, de modo que está aparente propriedade do alienante poderia não se materializar.

Neste contexto, nota-se que a restituição de obras de artes plásticas expropriadas durante regime nazista demanda, até hoje, afinamentos no tratamento jurídico da questão. Em países onde a discussão ocorreu de forma profusa, embora haver debate até os dias atuais, parece estar se estabelecendo um consenso sobre a facilitação dos modos de realização de tais demandas restitutórias. Alhures, o direito e as condutas das partes envolvidas parecem prestigiar a ética às discussões sobre formas de aquisição de propriedade. No Brasil, porém, o cenário pareceu não ter se desenvolvido, cabendo aos interessados buscar a adaptação dos mecanismos legais existentes.

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1  Disponível em https://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/noticia/2023/02/justica-obriga-museu-dorsay-a-devolver-telas-de-renoir-cezanne-e-gauguin-a-herdeiros-de-galerista.ghtml. Acesso em 24.02.2023. 

2 Disponível em https://news.artnet.com/art-world/musee-dorsay-to-restitute-four-paintings-stolen-from-ambroise-vollard-world-war-ii-2257748. Acesso em 24.02.2023.

3 Ibid.

4 Disponível em https://www.theartnewspaper.com/2023/02/16/paris-court-orders-musee-dorsay-to-return-four-nazi-looted-masterpieces-by-renoir-cezanne-and-gauguin. Acesso em 24.02.2023. 

5 Disponível em https://www.lootedart.com/U1VFME260961. Acesso em 24.02.2023. 

6 Disponível em https://www.restitutiecommissie.nl/en/recommendation/bild-mit-hausern-by-wassily-kandinsky/. Acesso em 24.02.2023.

7 Ibid. 

8 Disponível em https://www.nytimes.com/2022/02/28/arts/design/kandinsky-painting-returned.html. Acesso em 24.02.2023. 

9 "Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas convêm. Todas as coisas me são lícitas; mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas." BIBLIA SAGRADA: ANTIGO E NOVO TESTAMENTO, São Paulo: POETEIRO EDITOR DIGITAL, 2014, p. 1834.

10 Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/03/1753433-herdeiros-de-marchand-querem-reaver-obras-de-edgar-degas-hoje-no-masp.shtml e https://oglobo.globo.com/cultura/familia-judia-tenta-reaver-pintura-que-faz-parte-do-acervo-do-masp-11861277#:~:text=RIO%20e%20S%C3%83O%20PAULO%20%E2%80%94%20Uma,Masp%20desde%201965%2C%20por%20doa%C3%A7%C3%A3o. Acesso em 24.02.2023. 

11 MEDEIROS, Diane Adelaide. Restituição de obras de arte saqueadas durante a 2a Guerra Mundial: uma análise jurídica e comparativa e a sua aplicação em casos brasileiros. TCC (graduação) - UFBB/CCJ, João Pessoa, 2020, p. 53 ss. 

12 Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/03/1753433-herdeiros-de-marchand-querem-reaver-obras-de-edgar-degas-hoje-no-masp.shtml. Acesso em 24.02.2023. 

13 Disponível em https://masp.org.br/acervo/obra/bailarina-de-catorze-anos. Acesso em 24.02.2023. 

14 Disponível em https://masp.org.br/acervo/obra/o-casamento-desigual. Acesso em 24.02.2023. 

15 Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/03/1753433-herdeiros-de-marchand-querem-reaver-obras-de-edgar-degas-hoje-no-masp.shtml. Acesso em 24.02.2023. 

16 Disponível em https://www.lootedartcommission.com/Washington-principles. Acesso em 24.02.2023. 

17 Disponível em https://www.state.gov/washington-conference-principles-on-nazi-confiscated-art/. Acesso em 24.02.2023. 

18 FRANCISCO, Fabiana Aiolfe "Arte Degenerada" no MAC-USP: estudos de proveniência de obras de artistas condenados pelo Terceiro Reich. Orientadora Ana Gonçalves Magalhães. - São Paulo, 2020, p. 33. 

19 Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft16099804.htm. Acesso em 24.02.2023. 

20 Disponível em http://www.consultaesic.cgu.gov.br/busca/dados/Lists/Pedido/Item/displayifs.aspx?List=0c839f31%2D47d7%2D4485%2Dab65%2Dab0cee9cf8fe&ID=1458367&Web=88cc5f44%2D8cfe%2D4964%2D8ff4%2D376b5ebb3bef. Acesso em 24.02.2023. 

21 Disponível em https://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/documentos-de-investigacao-de-patrimonio-nazista-no-brasil-desaparecem.html. Acesso em 24.02.2023. 

22 FRANCISCO, Fabiana Aiolfe "Arte Degenerada" no MAC-USP: estudos de proveniência de obras de artistas condenados pelo Terceiro Reich. Orientadora Ana Gonçalves Magalhães. - São Paulo, 2020, p. 33.  

23 STJ, AgInt no REsp n. 1.598.402/RS, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 4/5/2020, DJe de 8/5/2020 

24 Sobre a qualificação constitucional fundamental dos direitos culturais, vide SOUZA, Allan Rocha de. Direitos autorais e acesso à cultura. Liinc em Revista, v.7, n.2, setembro, 2011, Rio de Janeiro, p. 416- 436. Disponível em http://www.ibict.br/liinc, acesso em 24.02.2023. 

25 TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, vol. III - 2ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 578.

Raul Murad Ribeiro de Castro

Raul Murad Ribeiro de Castro

Doutor em Direito Civil pela UERJ. Professor de Direito da PUC-Rio. Sócio do Denis Borges Barbosa Advogados.

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