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O necessário reconhecimento do valor do serviço público e as jóias da coroa: crimes, falsas declarações e os batedores de carteira (parte 1)

Podemos comemorar a retomada do Estado brasileiro como verdadeira República, não mais como uma República de bananas administradas por "batedores de carteira", mas como nação séria, digna e de todos e todas nós!

sábado, 11 de março de 2023

Atualizado às 10:38

A instauração do inquérito pela Polícia Federal sobre o caso das joias recebidas pela comitiva do Ministro de Minas e Energia em outubro de 2021 provenientes do governo da Arábia Saudita abre um novo debate sobre a ausência total de consciência republicana de determinados servidores públicos brasileiros. Neste momento cabe a nós fazer um importante registro: a postura correta e republicana dos servidores da Receita Federal ao impedir, mesmo diante de autoridades públicas investidas de poder, do assenhoreamento da coisa pública, da prática de crimes e da tentativa perniciosa de burlar a fiscalização estatal com manifestações burlescas para produzir ilegalidades. Parabéns, portanto, aos servidores da Receita Federal!!

Pois bem! A forma com que as joias foram trazidas para o Brasil, foi muito inusitada. Aliás, curioso mesmo foi a forma como a comitiva tentou fazer a narrativa parecer algo comum e sem qualquer ilegalidade, como se fosse uma notícia falsa (fake news) plantada numa rede social qualquer. Esqueceram, aqueles servidores (mulas, na linguagem policial), que a fiscalização não seria feita por pessoas que vivem numa bolha virtual (grupo de WhatsApp), na qual tudo é possível, até mesmo que pode haver "intervenção militar constitucional". Felizmente o estado republicano está presente outra vez no Brasil. Disseram os servidores "sacoleiros" que não sabiam o conteúdo dos pacotes. Imaginemos algumas barras de droga ilícita (cocaína), por exemplo, e o destino um país cuja pena para o tráfico ilícito de entorpecentes fosse o enforcamento? Os servidores seriam presos em flagrante e, seguramente, seriam executados.

É importante dizer isso, pois a narrativa (não sei o conteúdo dos pacotes) é assustadora pela ingenuidade (para dizer o mínimo), mas, mais ainda pela quantidade de crimes escancarados pelo séquito presidencial. Além de existir a possibilidade de configurar crimes contra a administração Pública, tais como peculato e advocacia administrativa, a ação delituosa pode caracterizar também crimes contra a ordem tributária e abuso de autoridade. Este último está configurado nas inúmeras tentativas de exigir dos servidores da Receita Federal o cumprimento de ordens manifestamente ilegais.

Importante lembrar: em que pese a entrada em território nacional ter ocorrido em outubro de 2021, por mais de 14 meses o chefe do executivo, em instante algum, tentou regularizar as joias, nos termos da legislação vigente. Segundo nota divulgada pela Receita Federal, além de não pedir a regularização, o próprio governo do ex-presidente Jair Bolsonaro também não apresentou um pedido fundamentado para incorporar as joias ao patrimônio público, em que pese todas as orientações dadas pela Receita, o que evidencia que o propósito era o ganho pessoal.

Vejam bem!!! A retenção ocorreu no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo e após inspeção por raio-X o ex-Ministro de Minas e Energia teria se valido do cargo para pedir a liberação das joias, alegando serem presentes do governo saudita para a então primeira-dama, tal expediente utilizado pelo ex-ministro também será investigado.

Em resposta à "carteirada" do ministro, os servidores da Receita Federal, corretamente, alegaram que, o procedimento para a entrada desses itens, como presentes oficiais de um governo estrangeiro para o governo brasileiro deveriam obedecer a outro trâmite legal e, por isso, retiveram as joias pelo não pagamento dos tributos.

É bom destacar que pela legislação, todo viajante, seja você ou o ministro, que traga ao país bens pertencentes a terceiros deve declará-los na chegada, independentemente de valor. No caso de bens pertencentes ao próprio portador, devem ser declarados aqueles em valor acima de US$ 1 mil (mil dólares), limite atualmente vigente. Caso não haja declaração de bem, é exigido 50% do valor a título de tributo, acrescido de multa de 50%, reduzida pela metade no caso de pagamento em 30 dias. E nada disso ocorreu.

Porém no caso de agente público que deixe de declarar o bem como pertencente ao Estado Brasileiro, é possível a regularização da situação, mediante comprovação da propriedade pública e regularização da situação aduaneira, o que não ocorreu em momento algum, em que pese todos os esclarecimentos dados pela Receita para regularização.

Uma vez que não houve a regularização, a Receita disse que o bem passa a ser tratado como pertencente ao portador e, não havendo pagamento do tributo e multa, é aplicada a pena de perdimento, cabendo recursos cujo prazo, no caso das joias, terminou em julho de 2022, e que não foi feito.

Em momento algum houve pedido para que as joias fossem incorporadas ao patrimônio da União, com os requisitos legais vigentes, visto que a incorporação ao patrimônio da União exige pedido de autoridade competente, com justificativa da necessidade e adequação da medida, como, por exemplo, a destinação de joias de valor cultural e histórico relevante destinadas a museu, o que não também ocorreu.

O episódio é escandaloso e mostra, em primeiro lugar, total desprezo à coisa pública e, em segundo lugar, a forma mais pueril de avançar no patrimônio alheio (no caso no patrimônio público): o batedor de carteira, o ladrãozinho de esquina, o punguista que se camufla na multidão, aquele sem "eira e nem beira" que prefere o golpe ao esforço do trabalho digno, que prefere se alimentar de "rachadinhas" e mostrar que é patriota e devoto de Deus.

No fim e ao cabo, devemos mesmo é parabenizar os servidores que impediram mais uma série de ilegalidades e, ainda que se mostre que tudo foi um grande mal-entendido, os protocolos foram seguidos e, no mínimo, podemos comemorar a retomada do Estado brasileiro como verdadeira República, não mais como uma República de bananas administradas por "batedores de carteira", mas como nação séria, digna e de todos e todas nós!

Sergio Graziano

Sergio Graziano

Doutor em Direito, advogado criminalista.

Charles Machado

Charles Machado

Advogado e professor no curso de MBA e pós-graduação da ESPM em São Paulo e professor no MBA em Digital Business do IEBS (Innovation & Entrepreneurship Business) em Barcelona.

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