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Teoria dos grandes números e direito do consumidor - Racionalidade dos serviços públicos

Não se desconhece que exista grande empenho de juízes e serventuários do sistema judicial, mas a grande falta de estrutura judicial, cortes orçamentários, excesso de serviços, levam a um quadro de dificuldade de respostas rápidas e satisfativas por parte do Poder Judiciário em relação aos lesados - isso estimula os maus fornecedores a fazerem contas.

segunda-feira, 24 de abril de 2023

Atualizado às 14:54

Não se desconhece que exista grande empenho de juízes e serventuários do sistema judicial, mas a grande falta de estrutura judicial, cortes orçamentários, excesso de serviços, levam a um quadro de dificuldade de respostas rápidas e satisfativas por parte do Poder Judiciário em relação aos lesados - isso estimula os maus fornecedores a fazerem contas.

Ou seja, se eu sou um mau fornecedor, por exemplo um operador de plano de saúde, posso ser tentado a recusar tratamentos de saúde que seriam cobertos, apenas e tão somente partindo da perspectiva de que, se atender a todos gastarei, digamos, um milhão de reais, mas se não atender nenhum, gastarei nada, ao menos neste momento.

O mesmo se aplica mutatis mutandi a empresas de telefonia, cursos de idiomas e vários outros que tem sido recordistas de reclamações nos Procons (há sites que estabelecem rankings de grandes empresas que são campeãs de reclamações, inclusive bancos) . 

Estatisticamente, se metade dos não atendidos se conformar, eu, como mau fornecedor, no exemplo acima, já economizei meio milhão de reais, o que será muito mais que a sucumbência devida à outra metade que for judicializar a questão, o mesmo vale para aqueles que irão pedir danos morais. Isso não leva em conta que, dos que irão judicializar, muitos irão com advogados que não são especialistas no tema e que poderão perder as demandas, outros irão aceitar acordos em valores pífios ou muito desvantajosos por falta de segurança no sistema (segurança jurídica) ou por simples premência (preciso de dinheiro HOJE, ou mais vale um pássaro na mão que dois voando e por aí vai), muitos irão ganhar, mas serão vítimas de recursos que demorarão a ser julgados (o que fará com que aumente o número de pessoas que aceitará acordos desvantajosos na execução).

Há péssimas práticas, inclusive, eis que existem empresas que acompanham os processos, e quando veem que os consumidores já ganharam, sem o conhecimento de seus advogados, começam a ligar com propostas com deságios grandes e violando honorários conseguidos com dificuldades (patronos não podem fazer isso, esse contato direto com o cliente ex adverso - mas se usam pessoas jurídicas ou robôs cujas dificuldades de responsabilização são imensas - tudo se faz apostando na impunidade - a vista de todos).

De igual modo, tem-se ai um percentual que não ganhará indenizações por danos morais, afinal embora não se reconheça mais ser indecente cobrar pelo pretium doloris (Súmula 37 STJ) ainda se fala em indústria do dano moral e enriquecimento sem causa em casos de mero aborrecimento e, indenizações, quando vem, o vem em patamar pífio - não se aplica com vigor o fator de desestímulo - a exemplary damages theory do sistema jurídico da Common Law, do direito anglo-saxão em que a jurisprudência se preocupa com aspectos de prevenção geral no direito indenizatório.

Haveria que se tomar o cuidado de aprimorar a legislação, sobretudo em situações de massa (contratação por adesão) no sentido de responsabilizar automaticamente os gestores - isso porque, pense-se no setor de transporte público - indenizações por danos morais que se fixem no decorrer do ano, por lesões ocasionadas a consumidores, são repassadas como custo do serviço ao final daquele período e isso impacta o custo do serviço sendo transferido ao usuário e não ao gestor - não há fator pedagógico nisso - há que se pensar em formas de responsabilizar diretamente os sócios para que estes determinem causas que eliminem os problemas tornando menos tentador ganhar tempo para ficar esperando sanções pífias".

No entanto, a despeito de haver a formação de grande evolução doutrinária e jurisprudencial no sentido de que valores existenciais comportem indenização e que não possam ser lesados impunemente, e, a despeito da afirmação importante de que, malgrado não exista tarifação deva-se cumprir um critério bifásico  no cálculo do valor de uma indenização por dano moral, o fato é que grande parte dos magistrados não cumpre tal regra, como pode ser observado por quem atua nesse nicho da advocacia. 

Por vezes há sensação de fixação lotérica ou por mero "achismo" se permitida a expressão por analogia - penso que três mil reais seria valor adequado (por que - indaga-se, se vários tribunais fixam dez ? Essa a pergunta que não quer calar para quem acredita no critério bifásico ). 

Outras vezes se escutam comentários no sentido de arroubos de jurisprudência defensiva - ora, se for fixada indenização de cinquenta mil reais ou invés de dois mil reais, milhares de pessoas ingressarão com demandas gerando mais volume processual. 

No entanto, com a maior vênia possível - esse argumento parece não convencer na medida em que, em primeiro lugar, quem começar a demandar de modo sistemático pedindo cinquenta mil reais, além de ser facilmente detectado como litigante habitual num mundo informatizado, terá que recolher custas sobre cinquenta mil reais. 

Mas, ao contrário, em curto prazo, se o Poder Judiciário começar a se respeitar e se impor em termos de fixar, como se dá no sistema da Common Law, pesadas indenizações visando prevenção geral, além da especial em sede indenizatória, a tendência será a queda da judicialização. 

As grandes empresas que dão causa ao maior volume de demandas, ao perceberem que ao invés dos pífios e costumeiros óbulos de dois, três mil reais, costumeiramente distribuídos que seus negociadores tentam baixar, terão que começar a desembolsar cinquenta, cem, duzentos mil reais, deixarão de se fiar nos grandes números - ou seja, nesses cálculos atuariais e estatísticos.

Em jurimetria, quanto uma tese se firmar - por exemplo, ligações insistentes de telemarketing geram dano - se não houver jurisprudência defensiva, e os danos serão por critério bifásico fixados em cem mil reais, as operadoras deixarão de ligar pelo risco. 

Do contrário, se a cada mil consumidores, dez ou vinte se sagrarem vencedores e demorarem dois ou três anos para receberem os três mil reais de indenização, a conduta abusiva continuará a ocorrer - se começarem a haver tendências de recrudescimento da jurisprudência, não será mais recomendável apostar em grandes números.

Se começaria a transformar ciclos viciosos em ciclos virtuosos, eis que toda a sociedade tem que pagar o custo de manter essas demandas - ora, a cada vez que uma empresa má fornecedora dá causa a uma demanda dessas - levando a uma distribuição, citação, contestação (geralmente com jurisprudência de vinte anos atrás - fossilizada na acepção preconizada por Celso Peluzo em feliz expressão para aqueles que querem ressuscitar teses mais que afastadas) - uma pessoa que realmente precisa da jurisdição por um caso mais relevante deixa de ser atendida.

Ora o tempo que um juiz tem para cada feito é escasso - se há vinte novas demandas na Vara por ligações abusivas - o magistrado e seus serventuários terão que dividir o tempo de análise de um pedido de alimentos, ou de recuperação de bens por violência doméstica patrimonial com esses vinte casos que irão repisar matérias de modo indevido apenas e tão só para se ganhar tempo.

E não se pode deixar de atentar para o fato de que qualquer dos Poderes do Estado (o Poder Judiciário exerce de modo atípico funções de Administração) não pode deixar de atuar sem base nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. A propósito, a professora Lúcia Valle Figueiredo conclui, em seu "Curso de Direito Administrativo", pág. 47:

"Em síntese: a razoabilidade vai se atrelar à congruência lógica entre as situações postas e as decisões administrativas. Vai se atrelar às necessidades da coletividade, à legitimidade, à economicidade".

Por seu turno, o princípio da proporcionalidade obriga a permanente adequação entre os meios e os fins, banindo-se medidas abusivas ou de qualquer modo com intensidade superior ao estritamente necessário. O publicista Juarez Freitas assim registra, in "O controle dos atos administrativo e os princípios fundamentais", 2ª. ed., São Paulo, Editora Malheiros, 1999, p. 57):"O administrador público, dito de outra maneira, está obrigado a sacrificar o mínimo para preservar o máximo de direitos"

Bem lembrado, por Márcio Elias Fernando Rosa, em seu "Direito Administrativo", Editora Saraiva, quando leciona: "Assim como o princípio da razoabilidade, o da proporcionalidade interessa em muito nas hipóteses de atuação administrativa interventora na propriedade, no exercício do poder de polícia e na imposição de sanções"

Não se quer, obviamente, dizer que o Poder Judiciário deva se tornar ou converter em órgão essencialmente político e administrativo - aqui a questão é diferente - deve ser vista cum granu sallis - o que se tem aqui é algo diferenciado - em que um grupo de grandes empresas percebeu um gargalo e se organizou para tirar proveito disso. 

Se aproveita de fenômenos como morosidade, grande volume, insegurança jurídica e se organiza para burlar normas jurídicas de modo a tangenciar ao limite a ideia da boa-fé objetiva de modo agressivo - e aí, por prelados de análise de fenômenos diferenciais - distinguishings - como já se entabulou na questão da multa do artigo 42 CDC (em que se deixou de exigir dolo para se contentar com violação da boa-fé objetiva para impor multa em cobranças abusivas ) - nesse modo, por análise da questão em torno das exigências do bem comum e fins sociais a que a lei se destina (ideia de socialidade - enquanto conceito caro a doutrinadores como Miguel Reale e Roberto Senise Lisboa - com previsão no artigo 5º LINDB e para a garantia, por exemplo, da eticidade e da concretude) as indenizações devessem ser mais pesadas - em importes para se fazerem sentir, a fim de que haja cumprimento de prevenção especial e isso desafogue o sistema.

Aqui prelados em torno de neo-constitucionalismo  e pragmatismo se fazem essenciais para a garantia da higidez do sistema judicial - as corporações, ademais, tem gerado o esgarçamento indevido da máquina judiciária com a sobrecarga de demandas que gera sem que o custo disso seja compensado (vejam por exemplo, o exagerado número de ações a que dão causa, sem razão alguma como se tem por golpes de motoboy, ligações excessivas etc, em que preferem correr o risco das demandas ao acordo, por exemplo). 

Os maus fornecedores não são parados com as indenizações deferidas pelos parâmetros atuais (e muitos juízes tem sido extremamente lenientes por terem a ideia equivocada de que indenizações maiores aumentariam demandas - seria justamente o inverso - os fornecedores seriam mais cautelosos e demandas indevidas seriam improcedentes - simples assim) e com isso violam a lei com espertezas que aos seus olhos compensam nesses cálculos atuariais que levam a uma sobrecarga de demandas que torna irracional o uso da máquina judiciária - bem escasso e raro. 

A Lei de Responsabilidade Fiscal, ao contrário, exige que haja uso racional de tais recursos públicos com controle de gastos e investimentos - as custas exigidas são valores de natureza evidentemente tributária (taxas de acionamento que, muitas vezes, consumidores são obrigados a recolher por conta deste sistema perverso que os maus fornecedores criaram), ficando privados de acesso aos mesmos por longos meses e anos até que se tenha um cumprimento de sentença - não poderia haver estímulo em fixação de valores que não se façam sentir nos bolsos e planos destes fornecedores. 

Sem isso não se faz cumprir prelados de concretude enquanto elemento garantidor da ideia de dignidade da pessoa humana e da solidariedade social (por exemplo como previsto no artigo 3º e seus consectários CF) enquanto valores constitucionais - uma vez que não se pode admitir que a boa-fé objetiva seja distorcida e que se aposte no caos do sistema judicial como modo de poupar dinheiro ou de se usar o Poder Judiciário como aplicação financeira.

Indenizações mínimas de danos morais não se prestam de leniente para o sofrimento gerado, não se prestam a tornar indene (por vezes mais ofendem do que resolvem o problema) e ao contrário do que se pensa, não fomentam demandas, mas fazem com que as empresas se sintam menos estimuladas a burlarem a lei ou adotarem estratégias agressivas de legalidade duvidosa a luz da boa-fé objetiva.

Argumentos como livre mercado e livre concorrência que este articulista sempre defendeu por ser um liberal convicto não se prestam, no entanto, a legitimar posturas de abusos de direito que são, essencialmente, atos ilícitos (artigo 187 CC) ainda que replicados aos milhares pelos grandes grupos em relações de consumo - nem prestam a justificar a prática de atos chicaneiros, como apontava José Ascenção Oliveira no direito português - nada disso colabora para a solidariedade social que é imperativo constitucional (artigo 3º e seus consectários CF).

Isso porque, na visão de uma corporação - se os cinco mil reais que podem gerar condenação forem aplicados no primeiro mês do processo, e esse durar quatro, cinco anos até que venha um cumprimento de sentença - o valor poderá cair pela metade somente com os juros da aplicação, por exemplo - esta situação tem que acabar - há prejuízos para a sociedade como um todo . 

O custo social deste tipo de estratagema do qual se valem essas empresas é enorme - há que se revisar esse estado de coisas e passar a elevar a primeira fase de fixação pelo critério bifásico (ou seja, não se fala em punitive  damages  mas em simples mudança de paradigma na primeira fase  - e estabelecer algum tipo de regra repetitiva que amarre a jurisprudência em torno desta ideia pareceria medida adequada).  

Júlio César Ballerini Silva

VIP Júlio César Ballerini Silva

Advogado. Magistrado aposentado. Professor. Coordenador nacional do curso de pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil e em Direito Médico.

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