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Caso Cuca mostra que, em crimes sexuais, fatos são tratados como factoides

Após forte reação de grande parte da torcida, que exigiu sua demissão, ao final da partida entre Corinthians e Remo, pela Copa do Brasil, na noite desta quarta-feira, 26, Cuca anunciou que deixaria a equipe.

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Atualizado às 13:24

Há uma semana, o Sport Club Corinthians Paulista anunciava a contratação de Cuca (Alexi Stival) como técnico da equipe principal do futebol masculino. Tal fato, isoladamente, seria só mais uma movimentação no eterno vai e vem do mercado de treinadores dos clubes de futebol brasileiro, com chamadas jornalísticas elogiando ou criticando o histórico profissional do recém-contratado (como inclusive já ocorreu, visto sua passagem por diversos clubes brasileiros). Cuca, no entanto, possui uma condenação criminal. A vítima, à época, tinha 13 anos de idade.

Após forte reação de grande parte da torcida, que exigiu sua demissão, ao final da partida entre Corinthians e Remo, pela Copa do Brasil, na noite desta quarta-feira, 26, Cuca anunciou que deixaria a equipe.

Ainda em campo, quando o Corinthians venceu o Remo nos pênaltis, Cuca foi ovacionado pelos jogadores, em uma clara resposta às críticas que o técnico vinha recebendo há dias. No entanto, é impossível analisar a contratação de Cuca apenas pelo seu histórico profissional como técnico e ignorar o ato repugnante cometido extracampo por ele e por mais três companheiros quando atuavam como jogadores do Grêmio: o estupro coletivo de uma menina de 13 anos.

Para que se tenha uma ideia da gravidade dos fatos, de acordo com os registros da época do jornal suíço Der Bund, em 30 de julho de 1987 o Grêmio fazia uma excursão pela Suíça e, após uma partida contra o Benfica de Portugal, os jogadores Cuca, Eduardo, Henrique e Fernando, segundo relatos das testemunhas e da vítima, encontraram a adolescente de 13 anos e mais dois amigos em frente ao hotel. A menina e seus amigos queriam uma camisa do Grêmio. Enxergando a oportunidade, os atletas disseram que dariam, mas não ali. Teriam que subir para o quarto. 

Maiores detalhes não serão fornecidos aqui, bastando dizer que a situação culminou no estupro coletivo desta menina. Na mesma noite, os quatro foram presos e assim permaneceram por cerca de um mês, quando, soltos, puderam retornar ao Brasil.

Ainda de acordo com os registros do jornal suíço, em um primeiro momento, os acusados negaram os fatos, afirmando que sequer encontraram a vítima. Dias depois, em novos depoimentos, os jogadores, com exceção de Fernando, assumiram a relação e disseram haver consentimento, afirmando: "Ela se divertiu com tudo" e "essa menina não é normal". No exame pericial, foi encontrado sêmen de Cuca e de Eduardo no corpo da vítima.

Com base nestes elementos, o Tribunal de Berna considerou Cuca, Eduardo e Henrique culpados, sendo condenados pela prática dos crimes de coação e de atentado ao pudor com uma criança. Pela legislação brasileira, a conduta de Cuca configuraria, em tese, o crime de estupro de vulnerável. Curiosamente, os condenados nunca cumpriram a pena, pois retornaram ao Brasil e o crime prescreveu em 2004.  

É importante destacar que não foi permitido acesso à íntegra dos autos, visto que o processo é sigiloso, de modo que só seria possível a consulta com ordem judicial ou autorização expressa da vítima, de acordo com a lei suíça. Todas as informações constantes neste texto relativas aos autos do processo foram retiradas do jornal suíço Der Bund, cujas informações contidas na reportagem foram validadas pelo Tribunal de Berna.

Assim que o Corinthians anunciou a contratação de Cuca, tanto a torcida quanto a mídia se dividiram, parte repugnando a contratação de um condenado por estupro em clara afronta a todos os valores que levaram à fundação do clube, e grande parcela defendendo a contratação com argumentos que relativizam a sentença condenatória: "a vítima não o reconheceu", "quem sou eu pra condenar?", "não dá pra condenar, ninguém leu o processo", "isso foi há 30 anos".

Tais considerações, porém, não são capazes de modificar a realidade fática. Houve crime, houve condenação, as penas não foram cumpridas, a vítima, à época, tinha 13 anos. Não é questão de opinião. São dados concretos e é necessário falar sobre eles.

Obviamente, e principalmente pelo fato de as autoras deste texto serem advogadas criminalistas, não se pretende aqui defender o fim da prescrição de crimes nem apontar que condenados devem ser isolados da sociedade e proibidos de trabalhar ou, ainda, ignorar a importância da presunção de inocência e outras garantias fundamentais inerentes a qualquer cidadão, mas, sim, questionar o que faz pessoas, físicas e jurídicas, relativizarem crimes tão graves cometidos contra mulheres.

O futebol ainda é predominantemente masculino (e machista). O caso Cuca, portanto, não é uma notícia isolada (vide casos do goleiro Bruno e do atacante Robinho). O que conecta esses casos? Todos possuem vítimas mulheres e seus crimes são amplamente relativizados por homens (torcedores, jogadores, jornalistas, conselheiros, diretores e presidentes, por exemplo), sendo vistos como delitos de pouca importância diante da trajetória profissional dos envolvidos. Nada nos tira da cabeça que isso não ocorre por acaso.

Cuca, Robinho e outros tantos não são peças destacadas da sociedade, não são exceções, estando inseridos em uma estrutura muito maior do que as posições que ocupam. Infelizmente, são regra, ainda que seja difícil encarar tal fato. De acordo com o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o Brasil possui cerca de 822 mil casos de estupro por ano. São dois por minuto. Tais números deveriam ser o suficiente para que os clubes de futebol assumissem suas responsabilidades sociais e realizassem trabalhos de conscientização com todos seus jogadores, das categorias de base às categorias profissionais.

Principalmente em um clube como o Corinthians, que é um dos maiores clubes do Brasil e que usa ativamente o slogan "respeita as minas". A abordagem de que a indignação de grande parte da torcida pela contratação de um condenado por estupro é uma "polêmica" ressalta a cultura do estupro, o quanto esse crime é visto como irrelevante e banal e como o discurso politizado não passa, muitas vezes, de mero marketing e de mais um produto na prateleira do mercado. 

O que importa, aparentemente, é apenas o avanço do time nos campeonatos. Quem liga para a mensagem que isso vai passar para os torcedores? Quem liga se a contratação de um condenado por estupro e a completa ausência de debate sobre o tema passará a mensagem de que tudo bem se isso acontecer para a sociedade? Quem liga se 53% da torcida corinthiana é formada por mulheres (segundo pesquisa do Ibope Repucom)?

Como advogadas, estamos acostumadas a acompanhar e criticar matérias jornalísticas tendenciosas que tratam como culpados meros investigados. Contudo, chama a atenção como casos de violência sexual que já tiveram o procedimento judicial concluído e resultaram na condenação dos envolvidos são abordados pela mídia como polêmicas ou fofocas em uma eterna disputa de narrativas, invertendo os papéis e colocando o condenado como vítima da opinião pública. 

Perde-se a oportunidade de realizar um debate qualificado sobre o tema "como evitar que ocorram novos casos envolvendo jogadores?", "como proporcionar uma mudança estrutural no machismo que envolve o futebol?", "como conscientizar torcedores?" e adotar medidas restaurativas.

Enquanto continuarmos tratando crimes de violência contra a mulher como meros "erros", "polêmicas" e "fofocas", colocando pessoas condenadas por esses crimes em posições de poder sem uma profunda reflexão, mais vulneráveis serão as mulheres e a sociedade como um todo.

Evelyn Massetti

Evelyn Massetti

Advogada criminalista. Bacharel em Direito (Mackenzie), pós-graduada em Direito Penal e Criminologia (PUCRS) e especialista em Processo Penal e Direito Penal Econômico (IBCRIM-Coimbra) e corinthiana.

Giulia de Felippo Moretti

Giulia de Felippo Moretti

Advogada criminalista. Bacharel em Direito (Mackenzie), pós-graduada em Direito Penal Econômico (FGV), pós-graduanda em Direito Digital (FGV) e corinthiana.

Júlia Minchillo

Júlia Minchillo

Advogada criminalista. Bacharel em Direito (Mackenzie), pós-graduada em Direito Penal Econômico (FGV) e corinthiana.

Luiza Pitta

Luiza Pitta

Advogada Criminalista e sócia do escritório L Pitta Advocacia. Formada em direto pela PUC/SP, pós-graduada em Direito Penal Econômico (FGV), mestranda em Direito Penal e Ciências Criminais (Universidad de Sevilla-Espanha) e corinthiana.

Marcela Tolosa Sampaio

Marcela Tolosa Sampaio

Advogada criminalista. Bacharel em Direito (Mackenzie). Integrante da Comissão de Política Criminal e Penitenciária, membra do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IBCCRIM e corinthiana.

Marília Scriboni

Marília Scriboni

Advogada criminalista. Bacharel em Direito (Mackenzie) e em Jornalismo (Cásper Líbero), especialista em Direitos Fundamentais (IBCCRIM - Coimbra) e corinthiana.

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