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Bola na trave (e o cartão) não altera o placar

Parece-nos importante tecer algumas considerações sobre a eventual atipicidade penal das condutas relacionadas aos cartões recebidos durante o jogo.

terça-feira, 23 de maio de 2023

Atualizado às 08:17

Na última semana, o debate público foi recheado de informações sobre possíveis esquemas de fraude em apostas esportivas, muitas delas envolvendo jogadores de futebol de clubes tradicionais da primeira divisão do campeonato brasileiro. Segundo se apurou, alguns jogadores, em tese, criavam situações durante as partidas no intuito de receberem cartões amarelos ou vermelhos.

Em troca, esses atletas receberiam quantias vinculadas ao sucesso em ser sancionado durante o jogo. Nesse quadro, o apostador, sabendo de antemão sobre as punições, poderia realizar sua aposta especificamente em cartões vermelhos e amarelos, lucrando com apostas altas. 

A operação recebeu o nome de "penalidade máxima" e teve como principal consequência o afastamento de diversos jogadores de seus respectivos clubes, haja vista o indício de que teria concorrido para a prática do delito tipificado no artigo 41-C da Lei n. 10.671/2003 (também conhecida como Estatuto do Torcedor). Ou seja, na visão do Ministério Público, esses atletas teriam aceitado vantagem indevida no afã de alterar ou falsear o resultado da competição esportiva ou evento associado.

Apesar da grande repercussão dos casos, parece-nos importante tecer algumas considerações sobre a eventual atipicidade penal das condutas relacionadas aos cartões recebidos durante o jogo.

Um exame rápido dos artigos 41-C e 41-D do Estatuto do Torcedor indica uma grande similitude entre as elementares desses crimes e os delitos de corrupção ativa e passiva. Note-se que a ação criminosa se baseia na aceitação ou solicitação da vantagem (no caso do art. 41-C) ou no oferecimento ou promessa de vantagem indevida (no caso do art. 41-D).

Além disso, vê-se também uma espécie de "ato de ofício" exigido do agente, na hipótese, a vantagem indevida deve vir atrelada à alteração ou falseamento de resultado de competição esportiva. E assim como ocorre no delito de corrupção, não é necessário que o "ato de ofício" seja efetivamente alcançado pelo agente - o que, aliás, já é pacífico na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal -, porém, é imprescindível que a vantagem recebida ou prometida a ele esteja vinculada à sua função, pois é ela o mote principal do corruptor, já que a ideia central do crime é que o funcionário público corrompido tenha capacidade, a partir de sua função pública, para realizar o ato de ofício almejado pelo corruptor.

Ou seja, é necessário um nexo evidente entre a vantagem percebida e o denominado "ato de ofício". No caso dos delitos tipificados no Estatuto do Torcedor, o equivalente funcional ao "ato de ofício" da corrupção seria justamente a capacidade do agente corrompido em falsear ou alterar o resultado da partida, seja na condição de atleta ou mesmo de árbitro do jogo. E aqui temos um problema em relação à tipicidade das condutas narradas pelo Ministério Público de Goiás. 

Como se vê, o tipo penal somente tem aplicação em relação às condutas que tenham capacidade efetiva de alteração ou falseamento do resultado da competição esportiva, não se referindo à lisura do jogo como um todo. É dizer: só há crime quando a vantagem é oferecida e aceita com a finalidade de ver o resultado definitivo da partida falseado ou alterado.

O tipo não fala do jogo como um todo, mas apenas do seu desfecho. Por isso, é de se questionar logo de início: o cartão amarelo ou o cartão vermelho efetivamente alteram o resultado da partida?

Muitos podem pensar, como é comum no futebol, que os cartões podem resultar em mudanças na dinâmica de um jogo. Os jogadores "pendurados" podem ficar de fora de outras partidas ou, num mesmo jogo, ao receber o cartão vermelho, e deixar a equipe com um a menos, podem facilitar uma derrota do time.

Em alguns casos, os cartões amarelos e vermelhos podem servir de critério de desempate na tábua de classificação. Porém, ainda que o cartão possa mudar o cenário da partida ou da classificação final de um campeonato, ele não se diferencia em nada de outros fatores que interferem no jogo.

É evidente que receber uma punição durante a partida de modo deliberado, não indica um proceder ético adequado, sobretudo quando de fala nos valores que compõem o espírito do esporte. Mas, ainda assim, é difícil imaginar que um cartão amarelo ou um cartão vermelho, por si, mudem o placar do jogo. No futebol, o que vale é a "bola na rede". E aqui se tem o principal ponto de tormento em relação ao "ato de ofício" exigido no tipo penal do Estatuto do Torcedor.

Ao receber uma vantagem indevida para ser sancionado com um cartão vermelho ou amarelo, o jogador não muda diretamente o placar da partida, mas apenas favorece o resultado da aposta (o que não é abrangido pelo tipo penal). Nesse aspecto, apesar de existir um ataque à lisura do jogo, esse comportamento não tem capacidade, isoladamente, em mudar o placar da partida.

Tomar um cartão vermelho ou amarelo não traz como consequência lógica a alteração do resultado. É diferente, por exemplo, de um árbitro que recebe valores para marcar penalidades claramente inexistentes ou jogadores que agem deliberadamente para marcar gols contra o próprio time ou goleiros que intencionalmente deixam acontecer o gol.

Essas ações interferem diretamente no placar e, por isso mesmo, caracterizam o "ato de ofício" exigido pelo tipo. Pois embora não seja necessário ao tipo penal que o resultado tenha sido efetivamente alcançado, isso não retira a obrigação de se demonstrar em que medida o ato do atleta poderia interferir no resultado do jogo.

E isso, como dito, não está evidenciado no caso de cartões amarelos ou vermelhos. Assim como "bola na trave não altera o placar", sanções durante o jogo também não mudam nenhum resultado (sobretudo porque o futebol não prevê vitórias ou derrotas baseado na quantidade de punições - como o judô, por exemplo).

Portanto, mesmo que se vislumbre o pagamento indevido feito aos atletas e os lucros auferidos pelos apostadores, é tormentoso, prima facie, afirmar a tipicidade, segundo a Lei n. 10.671/2003, de comportamentos que não ultrapassem o sancionamento com cartões durante a partida de futebol.

Lembre-se, uma vez mais, que o tipo penal não protege a lisura do jogo como um todo, mas apenas em relação ao resultado, pois este sim não pode ser alvo de falseamento. É inegável, claro, que há uma infração aos preceitos éticos do esporte, possibilitando a punição dos atletas pela justiça desportiva. Mas, no aspecto estritamente criminal, se crime houve, parece ser um estelionato em que a vítima foi a casa de apostas - que teve de pagar os apostadores manipuladores -, não o esporte em si. 

Por mais reprovável que as ações possam ter sido, parece-nos que os apostadores e atletas exploraram uma lacuna na redação da norma. Cabe recordar que os crimes da Lei n. 10.671/2003 nasceram num contexto de manipulação de resultados conduzido por árbitros de futebol, especialmente com a marcação de pênaltis inexistentes, visando construir artificialmente o resultado da partida. Lado outro, a lei não pensou na amplitude das apostas esportivas, que geralmente vão além do resultado do jogo e costumam abranger fatos acidentais (como quantidade de escanteios e cartões).

E, nesse ponto, é de se pensar que parte das ações narradas na "operação penalidade máxima" - no caso, aquelas relacionadas aos cartões -, são atípicas.

Entretanto, espera-se que esse caso - que tornou menos confiável qualquer ação durante a partida - sirva de luz ao legislador no aperfeiçoamento do tipo penal, notadamente para que se possa proteger a honestidade e confiabilidade de todo o jogo, não apenas de seu placar. Da mesma forma, o caso demonstra a imprescindibilidade de se regular o "mercado" crescente das apostas esportivas, cujo marco jurídico no Brasil é praticamente inexistente.

Douglas Rodrigues da Silva

Douglas Rodrigues da Silva

Mestre em Direito pelo UNICURITIBA. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo UNICURITIBA. Professor de Direito Penal Econômico das Faculdades da Indústria de São José dos Pinhais. Advogado Criminal do escritório Antonietto & Guedes de Castro Advogados Associados.

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