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Ética na saúde: fraudes contra os planos de saúde por meio de recibos ou notas fiscais de procedimentos não realizados

A emissão de recibos ou notas fiscais de procedimentos não realizados, além de ser ilegal, deprecia o trabalho do médico e contribui para o desequilíbrio da saúde suplementar.

terça-feira, 30 de maio de 2023

Atualizado às 14:03

A saúde suplementar no Brasil envolve a operação de planos privados de assistência à saúde, sob regulação do Poder Público, por meio da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar. Abrange planos de saúde médicos (ambulatoriais e hospitalares) e odontológicos, com diferentes tipos de coberturas. As cláusulas de cada plano são definidas em contrato firmado entre as partes, que possuem liberdade para negociar, desde que observem a lei 9.656, de 1998, bem como as normas expedidas pela agência.

Dentre as opções de planos existentes no mercado há o denominado seguro-saúde, em que o usuário não fica atrelado aos serviços credenciados ou referenciados previamente pela rede, tendo liberdade para escolher o médico, hospital ou laboratório e, posteriormente, solicitar reembolso, apresentando notas fiscais ou recibos dos serviços utilizados. Contudo, nos casos de livre escolha, o paciente nem sempre terá o reembolso total das despesas, havendo um limite pré-definido pela operadora.

Este tipo de assistência é bastante conveniente para o usuário que reside em município em que a rede credenciada da operadora é limitada ou não o atende, assim como para quem prefere escolher os profissionais individualmente, sem vinculação com qualquer rede.

Porém, esta liberdade contratual, que beneficia uma grande parte dos usuários de planos de saúde, vem sendo aproveitada de forma ilícita por indivíduos que se utilizam de artifícios para obter vantagens financeiras, lesando as operadoras de saúde e, consequentemente, onerando todo o sistema e contribuindo diretamente para os reajustes expressivos repassados a todos os usuários.

São exemplos deste tipo de distorção - que podem ser configuradas fraudes, tipificadas pelo artigo 171 do Código Penal - o fracionamento do recibo, quando se emitem documentos distintos para um único procedimento realizado, indicando serviços não efetuados pelo profissional ou o recibo em nome de dois beneficiários, quando apenas um passou pela assistência. Tais ardis são empregados com o objetivo de lograr um reembolso de valor mais alto que o do limite contratado para determinado procedimento.

Diante do grande aumento de fraudes desta natureza, tanto as operadoras como as empresas titulares de contratos empresariais - que custeiam plano de saúde para os seus funcionários - têm intensificado investigações internas  e acionado o Poder Judiciário. Já há decisões atribuindo ganho de causa para as empresas, repercutindo não apenas na condenação criminal do fraudador, como também na perda do plano e demissão por justa causa, quando há comprovado envolvimento do empregado.

Quando participam da fraude, os médicos, odontólogos ou outros profissionais da saúde podem ser processados nas esferas administrativa - por infração ética - criminal ou cível, se caracterizada a coautoria do ilícito, por meio da emissão de documento falso. Neste caso, é irrelevante o ganho ou benefício direto deste profissional.

Visto que tem se tornado uma prática relativamente habitual em consultórios, tanto os usuários, como os profissionais que emitem os recibos ou notas fiscais muitas vezes são surpreendidos com as investigações e condenações a que são submetidos, por não terem a real percepção da gravidade da situação, seja no âmbito ético ou legal.

Torna-se importante, portanto, que se divulgue o conhecimento apropriado e se promova maior reflexão no que diz respeito a uma cultura deletéria que ofende a lei e fere a ética, lesando um sistema complexo, que promove a assistência à saúde.

A realidade é que os custos com a saúde não são arcados somente pela própria pessoa, mas atinge toda a sociedade, tanto na saúde pública como na saúde privada, existindo uma verdadeira socialização do risco, ou seja, um verdadeiro mutualismo, onde um contribui com o outro, pois, na maioria dos casos, uma pessoa individualmente não teria condições de suportar com os custos de todos os tratamentos médicos realizados durante toda a sua vida, principalmente na fase da velhice ou na existência de sérias patologias.2

Portanto, "um simples recibo" pode impactar financeiramente todo o sistema de saúde suplementar, que inclusive já vem sendo desestabilizado com uma crescente taxa de sinistralidade e aumento da inflação nos custos médicos nos últimos anos, repercutindo no aumento dos planos3.

É fundamental refletir sobre a relação destas condutas com o a valorização do profissional da saúde, que deve ser integralmente ético e íntegro, não apenas porque são condições intrínsecas à profissão, mas também por repercutir em seu reconhecimento e imagem perante a sociedade.

O especialista, que tão intensamente estuda, aperfeiçoa-se e regularmente se atualiza, comprometendo recursos financeiros e dispendendo anos de sua vida com o objetivo de promover uma assistência de excelência, deve ser o primeiro a valorizar seus honorários, a fim de que sejam justos e permitam mantê-lo realizado neste tão nobre ofício.

Portanto, dentro do consultório, compete ao profissional da saúde promover a mudança de cultura, demonstrando o valor de um serviço diferenciado e altamente especializado na promoção da saúde e esclarecendo o paciente em relação a todos os impactos possíveis de um comportamento antiético e ilícito.

A virtude moral é uma consequência do hábito4 e devemos procurar nos orientar pela conduta ética visando ao bem coletivo, ainda que seja um grande desafio na sociedade em que estamos inseridos atualmente.

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1 Itaú demite 80 funcionários após detectar irregularidades no uso do plano de saúde:: Corte acontece no momento em que operadoras de saúde elevam fiscalização. São Paulo" Folha de São Paulo, 21 mar. 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painelsa/2023/03/itau-demite-80-funcionarios-apos-detectar-irregularidade-no-uso-do-plano-de-saude.shtml. Acesso em: 21 maio 2023.

2 SILVA, José Luiz Toro da Saúde, direitos e deveres dos pacientes: Os deveres de proteção, promoção e preservação da saúde implicam efeitos e consequências que vão além do âmbito da própria pessoa. Migalhas: São Paulo. 10 abr. 2014. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/257106/saude--direitos-e-deveres-dos-pacientes. Acesso em: 21 maio de 2023.

3 BETTONI, Natalie Vanz. Planos de saúde coletivos por adesão sobem quase 60% em 2023: cliente busca justiça contra alta abusiva; entidades do setor dizem que ajustes são necessários para garantir equilíbrio do sistema. Folha de S. Paulo: São Paulo. 01 abr. 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/04/planos-de-saude-coletivos-por-adesao-sobem-quase-60-em-2023.shtml. Acesso em: 25 maio 2023

4 Aristóteles (384-322 a.C.)

Gisele Machado Figueiredo Boselli

VIP Gisele Machado Figueiredo Boselli

Advogada, formada pela PUC de Campinas, SP, pós graduada em Direito Médico e da Saúde pela PUC do Paraná e em Direito da Economia e da Empresa pela FGV,SP, membro da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB de São Paulo, capital.

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