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De volta ao passado. Bacteriófagos e o desafio das infecções bacterianas resistentes aos antibióticos

Roberto Rodrigues e Denise Golgher

Caso este cenário se torne realidade, as consequências podem ser imprevisíveis e potencialmente devastadoras para a saúde pública.

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Atualizado às 13:46

Bacteriófagos, ou fagos, são um tipo de vírus que infecta bactérias (figura 1). Abundantes na natureza, eles estão em todos os lugares, no ar que respiramos, nos oceanos, no solo e em todos os seres vivos. Foram descobertos de maneira independente, em diferentes laboratórios, no início do século 20, pelos pesquisadores Frederick Twort e Felix d'Herelle.

Foi o francês, d'Herelle, quem teve o mérito de propor pela primeira vez, o uso de fagos como agentes antimicrobianos. Seus esforços não foram em vão, o uso de fagos para tratar infecções bacterianas rendeu bons resultados1. Era uma época sem antibióticos e sua ideia foi adotada por hospitais e empresas farmacêuticas, como por exemplo, a Eli Lilly2. Artigos de revisão publicados citam que o uso de fagos se propagou pelo mundo, sendo adotado, inclusive, no Brasil1. Em 1924, a Fundação Oswaldo Cruz do Rio de Janeiro iniciou um programa para o uso de fagos no tratamento da disenteria.  Apesar de ter sido nomeado oito vezes para o Nobel pelo seu trabalho, d'Herelle nunca foi agraciado3 pelo prêmio.

 (Imagem: Divulgação)

(Imagem: Divulgação)

Figura 1) Ciclo de vida de um bacteriófago lítico. (1) O bacteriófago adere à superfície da bactéria de uma forma específica, que depende de moléculas do fago e da bactéria; (2) o material genético, por exemplo, DNA, é injetado dentro da bactéria; (3) a bactéria produz novos fagos até que (4) é lisada e morre, liberando novos fagos para outro ciclo de infecção.

A chegada dos antibióticos na década de 40 mudaria o cenário. Surgia então uma forma muito mais eficaz, barata e menos complexa de tratar infecções bacterianas, o que levou a maior parte do mundo a abandonar os fagos. A União Soviética e Polônia estavam entre os poucos que continuaram a pesquisar fagos como antimicrobianos. D'Herelle deixou o Instituto Pasteur em Paris para trabalhar no Instituto George Eliava, fundado em 1923, na Georgia. George Eliava, o fundador que batizou o instituto, foi morto durante o regime de Stalin. No entanto, a instituição que homenageava seu nome persistiu e é hoje um consórcio ativo que possui uma grande coleção de fagos. O consórcio é composto por um centro de diagnóstico, uma farmácia, uma fundação, um instituto de pesquisa e uma empresa que comercializa produtos contendo fagos para aplicação em saúde humana, veterinária e meio ambiente.

Um renascimento

O aumento da resistência bacteriana aos antibióticos disponíveis é um problema crescente e muito grave. No ano passado, o prestigioso periódico médico, The Lancet, publicou a seguinte estatística: em 2019, 1,27 milhões de mortes atribuídas à resistência microbiana4. Para efeito de comparação, mais pessoas morreram de infecções bacterianas resistentes às drogas do que de câncer de mama.

A Organização Mundial da Saúde e a Drugs for Neglected Diseases (DNDi), formaram uma iniciativa conjunta denominada Global Antibiotic Research & Development Partnership (GARDP), cuja missão é desenvolver soluções para a resistência aos antibióticos. De acordo com a GARDP, em 2050, 10 milhões de pessoas podem morrer anualmente devido a resistência a antibióticos, tornando o problema um dos dez principais desafios na área da saúde. Considerando-se os projetos em andamento (números e focos terapêuticos) das indústrias farmacêuticas, a questão não será resolvida. O número de projetos em desenvolvimento não é suficiente para sanar o problema.

Este cenário preocupante trouxe de volta o interesse no uso de bacteriófagos como antimicrobianos. No país líder em biotecnologia no mundo, os Estados Unidos, o investimento para pesquisa aumentou. O número de artigos publicados no tema triplicou entre 2016 e 20225. Em 2018, a universidade da Califórnia de San Diego criou um centro dedicado, Center for Innovative Phage Applications and Therapeutics. Este centro colabora com o da universidade de Texas A&M, estabelecido oito anos antes. Não foi só o número de artigos que aumentou desde 2014, o número de ensaios clínicos também cresceu. Em 2014 eram 39, hoje são 81.

De forma bastante resumida, pode-se agrupar as empresas patrocinadoras desses ensaios clínicos em quatro tipos: (1) empresas dedicadas à otimização de métodos para isolar, caracterizar, produzir e desenvolver formulações contendo bacteriófagos; (2) empresas que têm as mesmas atividades do grupo anterior, mas que também utilizam tecnologias de engenharia genética e/ou edição genômica para o desenvolvimento dos seus próprios fagos; (3) empresas desenvolvedoras de novas plataformas tecnológicas baseadas em moléculas derivadas de fagos; (4) empresas de diagnóstico, que utilizam o conhecimento da especificidade da interação fago: bactéria para desenvolver testes diagnósticos. Infecções do pé diabético, infecções do trato urinário, doença inflamatória intestinal, fibrose cística, dermatite atópica, cuidados da pele, câncer do intestino e infecções prostéticas são áreas terapêuticas recorrentes nesses ensaios clínicos (tabela 1).

Tratamentos médicos contendo fagos ainda não foram aprovados pelas agências regulatórias, FDA, EMA ou ANVISA, no entanto, ensaios clínicos e programas de "compassionate use" ou uso compassivo, indicam que são seguros6. Existem inúmeros relatos publicados sobre vidas que foram salvas pelo uso da terapia com fagos: infecções resistentes a todos tratamentos disponíveis regrediram com fagos7. Laboratórios de pesquisa e empresas têm estabelecido parcerias com hospitais e farmacêuticas para o desenvolvimento de suas tecnologias proprietárias. BiomX, uma spin-off do Instituto Weizmann, tem como parceiras as farmacêuticas Janssen, Boehringer Ingelheim e Maruho. Adaptive Phage e PrecisioBiotix estão com a Mayo Clinic. Em 2022, a Johnson & Johnson participou de uma rodada de investimento de 35 milhões de dólares na empresa Locus Biosciences da Carolina do Norte (EUA). Esses são apenas alguns exemplos.

Muitas das empresas de diferentes países do mundo, apostando na nova oportunidade de negócios, estão protegendo suas invenções no Brasil, a americana Adaptive Phage Therapeutics, a israelense BiomX, a francesa Pherecydes, a dinamarquesa SNIPR Biome, a holandesa/suiça Micreos e a lusitana Technophage. As duas últimas com patentes já concedidas pelo INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial).

 (Imagem: Divulgação)

(Imagem: Divulgação)

Apesar de produtos e formulações contendo fagos ainda não estarem aprovados para tratamentos em humanos, já estão sendo vendidos e utilizados pela indústria de alimentos e agronegócio. As maiores depositárias de patentes no país, aliás, são destes mercados. É difícil discordar de que a biotecnologia de fagos representa uma oportunidade interessante de negócio, não somente para ajudar no uso excessivo de antibióticos, mas também como parte da solução para o desafio das superbactérias resistentes a antibióticos. No entanto, um pouco de cautela é de fundamental importância. Uma das causas frequentemente apontadas em relação ao crescimento de resistência bacteriana é justamente o uso excessivo e pouco controlado de antibióticos. Se os mesmos erros forem repetidos com os fagos, haverá a seleção de superbactérias resistentes aos antibióticos e aos fagos. E quando isso acontecer, como será? Caso este cenário se torne realidade, as consequências podem ser imprevisíveis e potencialmente devastadoras para a saúde pública.

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1 Fruciano DE. 2007. Can J Infect Dis Med Microbiol, 18(1):19:26

2 Abedon ST et al. 2011. Bacteriophage 1:2, 66-85.

3 Nina Chanishvili. 2012. Advances in Virus Research 83, chapter 1.

4 Antimicrobial Resistance Collaborators. 2022. Lancet 399: 629-55.

5 Keen EC. 2015. BioEssays 37:6-9.

6 Stacey HJ et al. 2022. Antibiotics 11:1340.

7 Rao S et al. 2022. Antimicrobial Agents and Chemotherapy, 66(1): e00824.

Roberto Rodrigues

Roberto Rodrigues

Sócio do Licks Attorneys.

Licks Advogados Licks Advogados
Denise Golgher

Denise Golgher

Chefe de Prática de Patentes no Licks Attorneys.

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