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O que o caso da aposentadoria compulsória do juiz Marcos Scalercio pelo CNJ nos ensina sobre como podemos aprimorar o combate à violência de gênero

Iniciamos nossas reflexões com um grande clichê: parece que o Brasil talvez seja um país onde o crime realmente compensa!

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Atualizado às 08:59

Iniciamos nossas reflexões com um grande clichê: parece que o Brasil talvez seja um país onde o crime realmente compensa!

Recentemente um ex-magistrado trabalhista, Marcos Scalercio, foi condenado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em decisão unânime, em decorrência de algumas denúncias de violência sexual.

A pena? Aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais. Isso significa que o ex-juiz, reconhecido pelo importante órgão de controle do Poder Judiciário do país como um assediador, agora deixa de exercer a atividade na magistratura, mas continuará sendo remunerado mês a mês.

O montante é proporcional ao tempo que desempenhou a função e, portanto, significativamente menor do que aquele que ele recebia antes da sanção, considerando que em abril de 2023 foi de R$ 35.107,67, especialmente por se tratar de um juiz jovem (pouco mais de 40 anos) e, consequentemente, com menos tempo de carreira.

Neste artigo, não pouparemos elogios ao CNJ que adotou uma postura impecável, utilizou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero (infelizmente ainda menos conhecido do que deveria), elaborado pela própria instituição para coibir todo e qualquer tipo de violência dessa natureza e aplicou a penalidade mais alta prevista para um processo administrativo como esse.

Os próprios conselheiros, incluindo a presidenta da instituição e ministra do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, externaram o mesmo desconforto que desejamos registrar aqui: a lei garante que o agressor, por mais graves que sejam as condutas, não vai deixar de ser remunerado.

Obviamente, o julgamento nos traz um precedente relevante que será utilizado em casos análogos julgados pelo próprio órgão de controle. Não há dúvidas, também, de que a decisão do CNJ terá um peso importantíssimo na análise de eventuais ações cíveis e criminais envolvendo esses casos de violência e fortalece as vítimas na busca pela Justiça. No entanto, seria uma omissão de nossa parte deixarmos de dizer que o processo administrativo do CNJ, e as sanções dele decorrentes, são insuficientes para coibir casos de violência.

Pensando nisso, gostaríamos de refletir acerca do que ainda pode ser feito para que o combate às agressões dessa natureza tenha mais efetividade.

Primeiro, existem ações criminais em curso e, sendo condenado definitivamente, o ex-juiz pode perder o direito de continuar recebendo os subsídios mensais.

Outra possibilidade é a propositura de uma ação judicial cível de perda de função pública por improbidade administrativa, que depende de iniciativa do Ministério Público.

Ou seja, uma punição mais contundente no caso está nas mãos do Poder Judiciário, órgão do qual Marcos Scalercio fazia parte até pouco tempo. E convenhamos, o Poder Judiciário não tem sido nada generoso com as vítimas de violência, especialmente quando falamos de aplicação de indenização.  E se tem algo que pode fazer com que alguém sinta o peso de adotar condutas deploráveis como violências sexuais é justamente um impacto significativo no patrimônio. Uma indenização relevante somada à perda da função (o que interromperia o recebimento de benefícios) pode significar uma alteração no padrão de vida e isso, sim, pode realmente abalar a vida de quem se habitou aos confortos que um bom salário pode proporcionar.

Além disso, uma alteração na Lei Orgânica da Magistratura, que possibilitaria a aplicação de penas mais duras em casos como esse, seria muito bem-vinda, como é o caso do Projeto de Lei Complementar 277/201, que objetiva acabar com a possiblidade de magistrados serem compulsoriamente aposentados com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço após terem cometido falhas graves. Recordando ao leitor que a Lei Orgânica da Magistratura é bastante antiga, de 1979, e, evidentemente, não acompanhou o desenvolvimento da sociedade. Ou seja, trata-se de uma legislação anacrônica que não reflete as problemáticas contemporâneas.

Reconhecemos a importância das garantias conferidas àqueles que exercem cargos público, afinal, isso garante a preservação dos interesses da coletividade e da própria democracia. No entanto, alguns limites precisam ser melhor definidos para coibir abusos dessa natureza, pois, o que adianta contarmos com um Poder Judiciário que garante liberdade de atuação aos seus servidores, mas que não apresentam comportamento ético, servindo ao interesse coletivo e respeitando a dignidade humana dos cidadãos? É no mínimo contraditório. Não cumprem a função deles, que é servir o público

Nós, que reconhecemos a importância de um olhar cuidadoso para questões de gênero e lutamos diariamente no combate à violência contra as mulheres, precisamos nos posicionar, tanto para reconhecer a relevância da acertada decisão do CNJ que aplicou a penalidade mais grave que estava no alcance do referido órgão em um processo administrativo, o que nos mostra que estamos avançando em nossa luta, como para dizer que apesar disso, precisamos de mais, pois é imprescindível termos a consciência de que ainda não chegamos aonde queremos.  Desejamos e merecemos muito mais. A mudança que buscamos é estrutural.

Lutemos pelo dia em que a violência contra mulher não será uma opção, não porque o crime compensa ou deixa de compensar, mas porque seremos uma sociedade que entendeu que preservar a dignidade e respeitar as mulheres traz benefícios individuais e coletivos que ultrapassam muito as questões patrimoniais e liberdades individuais. Seguimos buscando uma sociedade que enxergue o coletivo, e na qual esse coletivo inclua a diversidade, e não apenas aqueles que sempre estiveram ocupando os espaços de poder.

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1 https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2266915. Acesso em: 30 maio 2023.

Fernanda de Avila e Silva

Fernanda de Avila e Silva

Advogada, arquiteta urbanista. Pós-graduada em Direitos Humanos, responsabilidade social e cidadania global. Pesquisadora do Grupo Mulher e Democracia: renda e justiça de gênero. Sócia fundadora do Me Conta Direito.

Raíssa Marcandeli

Raíssa Marcandeli

Mestranda em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos. Pesquisadora do Grupo Mulher e Democracia: renda e justiça de gênero. Advogada.

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