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Jurisprudência e razoabilidade da intimação pessoal dos mutuários quanto às realizações de leilões

A falta de reconhecimento do direito de intimação pessoal dos mutuários sobre as datas dos leilões pode resultar em injustiça, pois priva o devedor de questionar aspectos procedimentais da cobrança e valores relacionados à venda do imóvel em leilão.

terça-feira, 20 de junho de 2023

Atualizado às 08:19

Introdução

Com o objetivo de solucionar a lacuna de formulação do art. 27, § 2º-A da lei 9.514/97, a jurisprudência dos interesses é trazida, buscando a proteção aos direitos dos mutuários.

O método utilizado foi com a utilização pesquisas doutrinarias.

A importância da intimação pessoal dos mutuários sobre os leilões, em primeiro lugar, deve ser observada à luz da Constituição Federal da República do Brasil, que define como direito fundamental que ninguém pode ser privado de seus bens sem o devido processo legal, conforme o art. 5º, inciso LIV.

A seu turno, a interpretação literal do art. 27, § 2º-A de que o mutuário não precisa ser notificado pessoalmente das datas dos leilões colide com o art. 26, § 3 da mesma lei, que exige a notificação pessoal para pagamento da dívida no prazo de 15 dias.

Com efeito, a não notificação do mutuário quanto às datas dos leilões fulmina o princípio do contraditório e da ampla defesa no contexto das nulidades de leilões, devido a uma lacuna axiológica e de formulação que resulta em uma injustiça, que é a falta de intimação pessoal dos mutuários, considerando a privação do devedor em questionar aspectos procedimentais e valores relacionados à venda em leilão.

A jurisprudência dos interesses e lacuna de formulação

Philipp Heck, jurista alemão, criador e principal nome da corrente de filosofia do direito chamada de jurisprudência dos interesses que uma espécie de positivismo jurídico é definhada por ele da seguinte forma:

A jurisprudência dos interesses, à qual me refiro agora, é também, por sua vez, uma forma antiga de jurisprudência teleológica. A característica peculiar dessa tendência consiste em utilizar como conceitos metodológicos auxiliares o conceito de interesses e uma série de noções que estão relacionadas a ele: avaliação de interesses, situação de interesses, conteúdos de interesses, entre outros.1

A Lacuna de formulação é definida quando o legislador disse menos do que devia.

É sabido que não se pode interpretar uma lei em fragmentos, ou seja, para se notificar, para pagar, exige-se que esta seja pessoal, entretanto, para comunicar as datas dos leilões não se exige que desse modo se faça, porém, como pode se interpretar uma lei e conseguir duas normas antagônicas? Isso é violar o sistema jurídico.

Percebe-se, na lei 9.514/97, uma colisão das normas do art. 26 e art. 27, parágrafo 2A, eis que a primeira visando notificar para pagar exige intimação pessoal ou por carta com aviso de recebimento e a outra, mais complexa, que visa dar conhecimento de negócio jurídico, não exige o conhecimento inequívoco do Devedor nem com aviso de recebimento, a saber:

Art. 26. Vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora o fiduciante, consolidar-se-á, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário.

§ 2º O contrato definirá o prazo de carência após o qual será expedida a intimação.

§ 3º A intimação far-se-á pessoalmente ao fiduciante, ou ao seu representante legal ou ao procurador regularmente constituído, podendo ser promovida, por solicitação do oficial do Registro de Imóveis, por oficial de Registro de Títulos e Documentos da comarca da situação do imóvel ou do domicílio de quem deva recebê-la, ou pelo correio, com aviso de recebimento.

.........................................................................................

Art. 27. Uma vez consolidada a propriedade em seu nome, o fiduciário, no prazo de trinta dias, contados da data do registro de que trata o § 7º do artigo anterior, promoverá público leilão para a alienação do imóvel.

§ 1º  Se no primeiro leilão público o maior lance oferecido for inferior ao valor do imóvel, estipulado na forma do inciso VI e do parágrafo único do art. 24 desta lei, será realizado o segundo leilão nos quinze dias seguintes.

§ 2º No segundo leilão, será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais.

§ 2º-A.  Para os fins do disposto nos §§ 1º e 2º deste artigo, as datas, horários e locais dos leilões serão comunicados ao devedor mediante correspondência dirigida aos endereços constantes do contrato, inclusive ao endereço eletrônico.

Sobre o tema colisão de normas é oportuna trazer à colação o ensinamento de Dworkin (2017):

Se duas regras entram em conflito, uma delas não pode ser válida. A decisão de saber qual delas é válida e qual delas deve ser abandonada ou reformulada, deve ser tomada recorrendo-se a consideração que estão além das próprias regras. Um sistema jurídico pode regular esses conflitos através de regras, que dão precedência a regra promulgada pela autoridade de grau superior, à regra promulgada mais recentemente, a regra mais específica ou outra coisa desse gênero. Um sistema jurídico também pode preferir a regra que é sustentada pelos princípios mais importantes.2

A interpretação é um processo em que se descreve e atribui valor a regra, resultando na declaração de uma norma já existente e com um significado único.

Tarello ensina que: "a interpretação é ao mesmo tempo uma atividade e resultado. É atividade adscritiva de significado de textos da qual resulta uma mais de uma norma."3

Savigny ensina que "a interpretação nada mais é que a reconstrução do pensamento jurídico do legislador".

Emilio Betti, sobre o tema, diz que:

"...objeto a interpretar é uma objetivação do espírito humano (Geist) expressa de uma forma sensível. A interpretação, portanto, são necessários um reconhecimento e uma reconstrução do significado que o autor foi capaz de incorporar, usando um determinado tipo de material. Isto significa evidentemente que o observador tem de ser para uma subjetividade que é estranha e por meio da inversão do processo criativo, tem que voltar à ideia ou a interpretação incorporada ao objeto."4

Edward Levi, traz a seguinte contribuição:

"só o folclore justifica a crença na tese de que uma lei, se redigida com clareza, é inquestionável e pode ser aplicada segundo o seu propósito a um caso específico."

Mas adiante, o mestre complementa:

"O jurista afirma que pensar como jurista consiste não em aplicar vasta estruturas teóricas a questões jurídicas distintas, mas sim raciocinar por analogia, de um grupo de decisões judiciais concretas, que para decidir os casos difíceis, os juízes não devem se voltar para níveis teóricos abstratos, mas para o mais próximo da prática da advocacia por analogia"5

Pelas considerações acima, não se quer dizer que o juiz não tem poder, no sentido que os julgamentos só podem reproduzir os textos legais, com pregava Montesquieu, visto que pode e deve o magistrado analisar o texto legal em conjunto com outras regras do sistema jurídico e do ordenamento para escoimá-lo de imperfeições e lacunas, sejam axiológicas, normativas ou ontológicas.

A Constituição Federal da República, em sua regra 5ª, LVI, estabelece que ninguém pode ser privado de seus bens sem o devido processo legal. Portanto, além da exigência da notificação pessoal para quitação da dívida, conforme determina a regra 26, §3 da lei em questão, o devedor fiduciante também deve ser notificado pessoalmente sobre as datas de realização dos leilões.

No caso das sentenças que não reconhecem o direito de intimação pessoal dos mutuários, quantos as datas dos leilões, trata-se de uma lacuna, além de formulação, é também axiológica, visto que aplicação literal da regra 27, §2-A da lei 9.514/97 provoca uma injustiça porque retira do devedor o direito de questionar aspectos procedimentais da cobrança e valores pelos quais o imóvel é levado a hasta publica em função de uma não comprovação de intimação do devedor das datas de realização dos leilões, frisando, que além do domicílio indicado pelo devedor no contrato o credor possui uma ficha socioeconômica.

Passemos, então, para a melhor interpretação da regra 27, §2-A da lei 9.514/97.

Na perspectiva atual, o direito fundamental do contraditório vai além de simplesmente fornecer informações e possibilitar reações. Ele é conceituado de forma mais abrangente, concedendo poderes para que as partes participem ativamente do desenvolvimento e do resultado do processo buscando alcançar uma maior igualdade entre elas.

O princípio do contraditório não deve ser observado apenas no contexto do processo judicial, mas também nos procedimentos extrajudiciais.

Em segundo lugar, a Ré deixou de observar as solenidades legais para levar o imóvel a leilão, violando a regra 166, V do Código Civil provocando a nulidade dos atos constritivos.

Examinemos a regra 27, §2-A da lei 9.514/97:

§ 2º-A.  Para os fins do disposto nos §§ 1o e 2o deste artigo, as datas, horários e locais dos leilões serão comunicados ao devedor mediante correspondência dirigida aos endereços constantes do contrato, inclusive ao endereço eletrônico.

De fato, a regra literalmente não expressa a obrigação de notificação pessoal dos devedores quanto às datas dos leilões, contudo, é notório que se está diante de uma lacuna de formulação, que ocorre quando o legislador diz menos que devia.

De outra feita, sobre a deficiência das leis é notável a lição de Gadamer:

"A lei é sempre deficiente, não em si mesma, mas porque, frente ao ordenamento a que se destinam as leis, a realidade humana é sempre deficiente e não permite uma aplicação simples das mesmas"6

Por conseguinte, que a regra citada acima é deficiente, dado que este é um texto equívoco, porque deixa espaço para diferentes interpretações quanto ao seu significado na forma complexa, porque dá lugar a dois ou mais significados concorrentes.

É inquestionável que a melhor aplicação das leis contribui para aperfeiçoar o propósito da lei. Por conseguinte, se uma lei possui um texto equívoco, seja ambíguo, complexo, implicativo ou defectível, é imprescindível buscar na analogia ou nos princípios constitucionais a sua completude.

GADAMER, ensina que; "... toda aplicação de disposições legais que aparece como correta concretiza e aprimora o sentido de uma lei"7

Conclusão

Em conclusão, a intimação pessoal dos mutuários quanto às realizações de leilões relacionados aos seus empréstimos é um tema que envolve a aplicação da jurisprudência dos interesses e a análise da razoabilidade.

A necessidade de notificar pessoalmente os mutuários sobre tais leilões é defendida como uma medida necessária e proporcional, em conformidade com o princípio constitucional da razoabilidade e o direito fundamental do contraditório.

A interpretação literal do art. 27, §2-A da lei 9.514/97 é questionada, pois viola uma lei infraconstitucional e desrespeita o princípio do devido processo legal. A falta de reconhecimento do direito de intimação pessoal dos mutuários sobre as datas dos leilões pode ser definida como uma lacuna de formulação que resulta em injustiça, privando o devedor de questionar aspectos procedimentais da cobrança e valores relacionados à venda do imóvel em leilão.

Nesse contexto, a jurisprudência dos interesses é trazida como uma abordagem que busca a proteção dos direitos dos mutuários.

A análise do texto legal em conjunto com outras normas jurídicas e princípios constitucionais é essencial para corrigir imperfeições e lacunas, garantindo uma interpretação mais adequada e justa.

Em suma, é necessário revisar a regra que trata da intimação dos mutuários sobre os leilões, destacando a importância da proteção aos direitos dos devedores, o cumprimento do princípio do contraditório e da ampla defesa, bem como a análise conjunta do texto legal para evitar interpretações conflitantes e garantir uma aplicação justa da lei. Isso é fundamental para assegurar a efetividade do processo legal e o respeito aos direitos dos envolvidos nas operações de leilões.

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DWORKIN Ronald, Levando Direito à sério, editora Martins Fontes, 3ª edição, 5ª tiragem.

GADAMER, Hans-Georg, VERDADE E METÓDO II, editora Vozes, 6ª edição 2022

H. LEVI, Edward, Uma introdução ao Raciocínio Jurídico, editora Martins Afonso, 2ª edição, 2021.

PESSÔA, Leonel Cesarino. Teoria Geral da Interpretação Jurídica de Emilio Betti. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris editor, 2002.

STRECK, lenio, Dicionário de Hermenêutica jurídica, 2ª edição, editora Casa do Direito, 2020.

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1 HECK, Philipp, El Problema de la Creacion del Derecho, biblioteca Filosofia del derecho, 2018, p.45.

2 Dworkin, Ronald, Levando Direito à sério, editora Martins Fontes, 3.edição, 5a. Tiragem, p.43.

3 L'Interpretazione dela legge. Milnao: Giunffrè, 1980, p.61

4 PESSÔA, Leonel Cesarino. Teoria Geral da Interpretação Jurídica de Emilio Betti. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris editor, 2002

5 H. LEVI, Edward, Uma introdução ao Raciocínio Jurídico, editora Martins Afonso, 2ª. edição, 2021, p.9

6 GADAMER, Hans Georg, Problemas de la razon práctica (1980) in: Verdade y  Metódo II, 1998, p.317

7 GADAMER, Hans-Georg, VERDADE E METÓDO II, editora Vozes, 6ª. edição 2022, p.360.

Romeu Fernando Carvalho de Souza

Romeu Fernando Carvalho de Souza

Presidente da Camerj - Central de Atendimento aos Mutuários do Estado do Rio de Janeiro.

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