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Reforma tributária e o problema da partilha de receita de impostos

Por que a partilha de receita é um dos maiores entraves para as propostas de reforma tributária do Governo Federal? Duas questões resumem: perda de autonomia fiscal e falta de segurança jurídica.

terça-feira, 20 de junho de 2023

Atualizado às 13:17

Como bem noticiado pela imprensa, há duas principais PECs que objetivam a reforma tributária no país, possuindo maior apoio por parte do governo federal. Nas PECs 45/2019 e 110/2019, propõe-se uma competência tributária centralizada de arrecadação de tributos.

A PEC 45 propõe originalmente um único IBS em substituição a todos os atuais tributos sobre o consumo, cuja competência arrecadatória seria centralizada na figura da União e, posteriormente, haveria a partilha de receita para os demais entes federados (Estados, DF e Municípios).

Já a PEC 110 propõe originalmente um modelo de IVA dual com o IBS sendo compartilhado somente entre Estados e Municípios (com arrecadação centralizada em uma instituição nacional) e a CBS sob a competência da União, mas com regras constitucionais idênticas ao IBS.

Possivelmente, o texto da proposta ainda sofrerá várias alterações pontuais durante sua tramitação no Congresso Nacional, mas a centralização arrecadatória do modelo é um dos pilares estruturantes da proposta e também o mais sensível do ponto de vista federativo. Ressalta-se que a partilha de receita de impostos não é algo tão simples, conforme será visto a seguir. 

 1A partilha de receita tributária e as demais transferências 

Conforme o critério de titularidade da competência arrecadatória, as receitas podem ser: (I) próprias, arrecadadas diretamente pelo ente federativo, em decorrência das normas que regem aquele tipo de receita (exemplo: competência tributária para instituir impostos e taxas); (II) transferidas, arrecadadas por um ente federativo (podendo ser originárias ou derivadas) e destinadas a outro ente federativo, por força de norma (exemplo: FPE, FPM e FUNDEB).1

Ressalta-se que as receitas transferidas incluir-se-ão, como despesa, no orçamento da entidade obrigada a transferência e, como receita, no orçamento da que as deva receber (§1º, art. 6º, Lei nº 4.320/1964).

Segundo a doutrina internacional, as transferências intergovernamentais podem ser divididas entre partilha de receita de impostos (tax sharing) e outras transferências financeiras (grants). A repartição de impostos (tax sharing) existe quando dois ou mais unidades da federação recebem parte da receita da arrecadação tributária de um determinado imposto coletado por outro ente federado.

As transferências financeiras gerais (grants) são repasses de recursos sujeitos a certas condições e sem obrigatoriedade de fonte específica de recursos (ex: Fundeb e transferências voluntárias no Brasil)2.

Há quatro critérios para qualificar uma partilha de receita de impostos no âmbito internacional: (1) Compartilhamento de riscos, pois o montante da receita alocada ao nível subcentral está estritamente relacionado à receita tributária total arrecada pelo ente central, assumindo o risco de não atingimento da meta de arrecadação e de flutuações de receita; (2) Incondicionalidade, em razão de o governo subnacional ser livre para usar as receitas transferidas; (3) Estabilidade da fórmula, na medida em que a divisão da receita entre o governo central e o subcentral é predeterminada com antecedência e não é alterada ao longo do exercício financeiro3.

As transferências intergovernamentais devem atender aos menos esses três primeiros critérios para ser considerada uma partilha de receita de impostos (tax sharing), caso contrário será o mesmo que uma transferência financeira geral (grant). Se, além desses critérios, também for atendido um quarto chamado de "Proporcionalidade individual" (4), será uma partilha de receita de impostos em sua forma pura (strict tax sharing). Tal critério diz respeito ao fato de a parcela de receita de cada governo local estar estritamente relacionada ao que ele gera em seu próprio território4.

O Brasil utiliza qual modelo "não puro" de partilha de receita de impostos (tax sharing). Isso porque o critério (4) de proporcionalidade individual não é observado nos principais instrumentos de partilha de receita de impostos no Brasil. Ressalta-se que o percentual de 35% da receita de ICMS segue critérios não vinculados ao local de arrecadação - notadamente lei estadual e lei de indicadores educacionais (parágrafo único do artigo 158 da Constituição). O Fundo de Participação dos Estados (FPE) e o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) seguem critérios redistributivos conforme população e renda per capita, segundo a Lei Complementar n. 62/1989.

 2. A falsa equivalência entre receita própria e receita transferida 

Roque Antônio Carrazza explica que a Constituição Federal acolhe duas modalidades de competência no âmbito da autonomia financeira dos entes federados: a tributária (faculdade de instituir tributos) e a financeira (direito de participar do produto de sua arrecadação). Ambas ocupam a mesma hierarquia, é dizer, geram o mesmo tipo de direito às pessoas políticas que as possuem: o direito de obter fundos, seja por arrecadação própria, seja mediante participação no produto da arrecadação alheia5.

A competência tributária, entretanto, abrange o poder de tributar e o poder de não tributar, permitindo que o ente federado competente formule sua política econômica. Poder de não tributar está dentro do contexto dos incentivos fiscais. Segundo Estevão Horvath e Hendrick Pinheiro, incentivos fiscais é um conceito que designa um gênero que abrange "uma variedade de institutos jurídicos, como isenções, reduções de alíquota, bonificações, depreciação acelerada, entre outros, que visam à promoção do desenvolvimento econômico e social". Segundo os autores, o fomento implementado por meio de incentivos fiscais tributários é uma manifestação do fenômeno da intervenção do Estado sobre o domínio econômico, que se legitima por meio de seus objetivos6.

Essa prerrogativa de Estados e Municípios concederem incentivos fiscais autônomos ficaria duplamente limitada na reforma tributária governista: (1) em primeiro lugar, porque a gestão da arrecadação seria centralizada em órgãos nacionais; e (2) em segundo, porque isenções no modelo IVA passariam a ser vedadas ou bem restritas.

O grau de autonomia política para lidar com questões fiscais é diametralmente oposta se for considerada a diferença entre a competência tributária (receita própria) e a competência financeira (receita transferida). Quando possui competência tributária, o governo local pode livremente ajustar sua política arrecadatória para suprir suas necessidades fiscais (despesas e dívidas), aumentando a carga tributária ou direcionando incentivos para determinados setores econômicos estratégicos.

No caso da competência financeira, o ente federado beneficiário da partilha fica condicionado à eficiência arrecadatória do ente que detém a competência tributária do imposto de receita partilhada. O ente federado subnacional, outrossim, não tem a liberdade para formular uma política tributária conforme suas necessidades fiscais, ficando sujeito às barganhas políticas com ente central para obter mais recursos.

 3. O dilema do Federalismo Fiscal: entre equilíbrio orçamentário e a autonomia

Jonathan Rodden, um dos maiores pesquisadores sobre federalismo fiscal comparado, encontrou uma interessante correlação em seus estudos empíricos em 2002. Segundo o autor, orçamentos equilibrados de longo prazo entre governos subnacionais são encontrados quando (1) o ente central impõe restrições de empréstimos aos entes subnacionais ou (2) os governos subnacionais têm ampla autonomia tributária e de empréstimos. Déficits agregados grandes e persistentes ocorrem quando os governos subnacionais são simultaneamente dependentes de transferências intergovernamentais e livres para emprestar, sendo essa uma combinação encontrada com mais frequência entre as unidades constituintes das federações. Seu estudo revela que, à medida que os países aumentam sua dependência de transferências intergovernamentais ao longo do tempo, o desempenho fiscal subnacional e geral diminui, especialmente quando os governos subnacionais têm fácil acesso ao crédito7.

Conclui que nisto reside o "dilema do federalismo fiscal" e uma compreensão mais precisa de seus perigos: por uma variedade de razões políticas e morais, o ente central forte muitas vezes se envolve nos assuntos dos governos subnacionais, tendo que socorrê-los frequentemente de seus problemas. Ao mesmo tempo, o ente central pode ser politicamente muito fraco e fragmentado para intervir em certos governos subnacionais para censurá-los ou mudar as instituições fiscais e políticas básicas que criam incentivos ruins. Isso ocorre com mais frequência em federações, mas de forma alguma o fenômeno se limita às federações formais - ocorrendo também em Estados Unitários8.

Um fenômeno interessante encontrado pelo autor chama-se "Ilusão fiscal": quando o contribuinte não consegue fazer mais o link entre seus tributos e o financiamento de serviços e bens públicos locais, pressionando por mais gastos e endividamento. Essa ausência de link ocorre obviamente quando o governo local é dependente de transferências intergovernamentais e não possui autonomia para tributar.

Onde se encontra o Brasil nesse panorama? No Brasil, Estados e Municípios possuem sérias restrições para contrair empréstimos em razão da arquitetura constitucional e legal brasileira: notadamente as competências do Senado Federal para estipular os limites de endividamento no artigo 52 da Constituição e as normas gerais determinadas na Lei de Responsabilidade Fiscal (artigos 35, 36 e 37). Atualmente, a situação do endividamento dos estados melhorou nos últimos anos após o aumento de sua solvência por meio da arrecadação de impostos9. 

4. A falta de segurança jurídica na partilha de receitas e a "cortesia com chapéu alheio"

Um dos principais motivos para apreensão com o sistema de centralização na União das receitas arrecadadas e posterior transferência aos entes subnacionais é a falta de segurança jurídica. No Brasil, há um extenso histórico de litígios judiciais envolvendo fundos de repartição fiscal e transferências em geral.

O exemplo mais evidente é o Fundo de Participação dos Estados. A Constituição Federal (artigo 159, inciso I, alínea "a") reserva 21,5% da arrecadação do Imposto de Renda e proventos de qualquer natureza e do Imposto sobre Produtos Industrializados para os estados e o Distrito Federal, por meio do Fundo de Participação dos Estados (FPE). Desde 1989, as regras para o cálculo do montante individual a ser repassado a cada estado-membro e ao Distrito Federal estavam previstas na lei complementar 62/89. Essa lei, no entanto, não trazia propriamente critérios para distribuição das receitas. Inicialmente, os coeficientes individuais deveriam ser provisórios e vigorar apenas nos exercícios de 1990 e 1991, mas permaneceram em vigor por mais de vinte anos por ausência da lei específica prevista no §2º do artigo 2º da Lei Complementar.

Inconformados com a omissão legislativa, vários estados (ADI 875, 2727 e 3243) levaram a questão até o Supremo Tribunal Federal (STF) pela via do controle abstrato. Em 24/02/2010, o STF, acolhendo voto do relator, ministro Gilmar Mendes, julgou procedentes as ações para declarar a inconstitucionalidade do artigo 2º, incisos I e II, parágrafo 1º, 2º e 3º, e do Anexo Único, da Lei Complementar 62/1989, com modulação de efeitos.

Embora não seja formalmente uma partilha de receita de impostos, é conveniente citar as lides fiscais envolvendo o extinto FUNDEF, por envolver cálculo de repasses. Segundo a Emenda Constitucional nº 14/1996, a União tinha o dever de complementar recursos sempre que, em cada Estado e no Distrito Federal, tais valores não alcançassem o mínimo definido nacionalmente, no caso, o Valor Mínimo Anual por Aluno -VMAA. Ao invés de calcular o valor conforme o estabelecido na lei, a União fixava unilateralmente valores menores por decreto. O resultado disso foram centenas de condenações em todos graus de jurisdição, incluindo o STJ e STF.10

Por último, cita-se a política de incentivos fiscais do ente central como uma "cortesia com chapéu alheio", porquanto parte desse custo é transferida para o ente titular de parcela do produto de uma arrecadação que jamais será concretizada. Nesse contexto, há redução das receitas partilhadas suportada pelos entes beneficiários, sendo o assunto levado ao STF no RE nº 572.762/SC (Tese 42) e RE nº 705.423/SE (Tese 653)11.

5. A PEC 46/2022 - a Reforma Tributária da simplificação 

Importante ressaltar que há uma terceira proposta de reforma tributária, a PEC 46, chamada de "simplifica já". Sem despertar interesse por parte do governo federal e parte do setor da indústria, essa PEC propõe a simplificação de tributos já existentes, sem criação de novas espécies tributárias. Ela é composta de 3 módulos: (1) Reforma do ISS, unificando suas legislações e sistemas; (2) Reforma do ICMS, unificando suas legislações e sistemas; e (3) Reforma da PIS e COFINS por meio da legislação infraconstitucional.

Essa PEC não prevê alterações nas competências tributárias e, consequentemente, não altera as atuais regras de partilha de receita de impostos. Por isso, ela possui o apoio de vários municípios e setores econômicos contrários às propostas de reforma tributária na PEC 45/2019 e 110/2019.


Referências bibliográficas

[1] SCAFF, Fernando Facury. Royalties do petróleo, minério e energia: aspectos constitucionais, financeiros e tributários. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 72.

[2] BLÖCHLIGER, Hansjörg; PETZOLD, Oliver. Finding the dividing line between tax sharing and grants: A statistical investigation. OECD Working Papers on Fiscal Federalism, No. 10. OECD Publishing: Paris, 2009, p. 10.

[3] Ibid, p. 4.

[4] Ibid, p. 5.

[5] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. rev., ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 782.

[6] HORVATH, Estevão; PINHEIRO, Hendrick. Federalismo e Guerra Fiscal do ICMS: cortesia com chapéu

alheio. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p . 50.

[7] RODDEN, Jonathan. "The Dilemma of Fiscal Federalism: Grants and Fiscal Performance around the World", American Journal of PoliticalScience, 46(3): 670-87, 2002.

[8] Ibid.

[9] AGÊNCIA BRASIL. Sobe para 21 número de estados com nota A e B do Tesouro. Esses governos podem pegar crédito com garantia da União. Fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2022-11/sobe-para-21-numero-de-estados-com-nota-e-b-do-tesouro

[10] STJ (REsp nº 1.101.015/BA, julgado sob o rito especial dos recursos repetitivos previsto no art. 543-C do CPC/73). Segundo o Supremo Tribunal Federal, nas Ações Civis Originárias (ACOs) de n. 648 (BA). 660 (AM), 669 (SE) e n. 700 (RN) o valor da complementação da União ao FUNDEF deve ser calculado com base no valor mínimo nacional por aluno (VMNA) extraído da média nacional.

[11] Horvath, Estevão; Pinheiro, Hendrick. Federalismo e Guerra Fiscal do ICMS, Op. cit, p. 69. 

Caio Gama Mascarenhas

VIP Caio Gama Mascarenhas

Doutorando em Direito Econômico e Financeiro (USP). Mestre em Direitos Humanos (UFMS). Extensão em federalismo comparado pela Universität Innsbruck. Procurador do Estado do Mato Grosso do Sul.

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