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Violação à Constituição na reforma da Lei de Licitações

Ao longo dos últimos anos, vem-se verificando um lento e contínuo processo de reforma da disciplina das licitações públicas. A sistemática original da Lei n. 8.666/1993 sofreu diversas alterações. A principal consistiu na introdução do pregão, disciplinado pela Lei n. 10.520. Agora, encontra-se em via de aprovação pelo Congresso Nacional um projeto de reforma mais ampla, encaminhado pelo Poder Executivo (PL n. 7.709/2007).

sexta-feira, 18 de maio de 2007

Atualizado em 15 de maio de 2007 10:21


Violação à Constituição na reforma da Lei de Licitações

Marçal Justen Filho*

Ao longo dos últimos anos, vem-se verificando um lento e contínuo processo de reforma da disciplina das licitações públicas. A sistemática original da Lei n. 8.666/1993 (clique aqui) sofreu diversas alterações. A principal consistiu na introdução do pregão, disciplinado pela Lei n. 10.520. Agora, encontra-se em via de aprovação pelo Congresso Nacional um projeto de reforma mais ampla, encaminhado pelo Poder Executivo (PL n. 7.709/2007 -clique aqui).

Esse conjunto de reformas apresenta diversas características, dentre as quais a rejeição ao direito de recurso. O Poder Público tem manifestado a sua contrariedade à proteção a esse direito (tal como consagrado originalmente na Lei n. 8.666). Assim, a Lei n. 10.520 (clique aqui) produziu a severa restrição ao cabimento do recurso. Algumas das regras adotadas apresentam tamanho constrangimento ao seu exercício que conduzem à indireta negação da sua existência. Assim se passa no pregão eletrônico, por exemplo, quando é exigida a interposição fundamentada do recurso imediatamente após a proclamação do vencedor - sem que o interessado disponha da possibilidade de examinar a proposta ou a documentação pertinente ao licitante reconhecido como vencedor.

O PL n. 7.709/2007 deu seguimento a essa orientação, prevendo a alteração radical da disciplina dos recursos. Mas contempla dispositivo que ultrapassa o limite da constitucionalidade. Trata-se da introdução de um § 8º para o art. 109 da Lei n. 8.666, determinando que "Não caberá recurso contra o julgamento da habilitação e das propostas, nos casos de erros ou falhas que não alterem a substância das propostas, dos documentos e sua validade jurídica saneados pela Comissão ou pregoeiro, mediante decisão fundamentada e registrada em ata".

A disposição infringe a Constituição (clique aqui) e violenta a natureza intrínseca do instituto da licitação.

A ofensa à Constituição se configura porque o art. 5º, incs. LIV e LV, assegura a formação da vontade da Administração Pública mediante a participação dos particulares. Impõe o devido processo legal, caracterizado pela garantia da ampla defesa e do contraditório entre as partes, "...com os meios e recursos a ela inerentes". Ou seja, a garantia do devido processo legal compreende, de modo inafastável, o direito ao recurso administrativo.

Toda a decisão administrativa potencialmente apta a afetar direitos e interesses de um particular se sujeita ao devido processo legal e comporta recurso no âmbito da Administração Pública. Essa solução reflete a concepção democrática sobre o exercício das funções administrativas. Numa democracia, os atos decisórios dos agentes públicos são produzidos mediante a participação dos interessados. As decisões administrativas podem ser questionadas, especialmente quando veicularem decisão sobre pretensões dos particulares. Não se contraponha que o particular tem direito de recorrer ao Poder Judiciário, solução que era defendida antes da vigência da Constituição de 1988 para legitimar a denegação ao direito ao recurso administrativo. Com a vigência da atual Constituição, foi consagrada a processualização da atividade administrativa, inclusive com a garantia do recurso na própria instância administrativa.

Ainda recentemente, o STF ratificou a proteção constitucional ao direito de recurso, ao pronunciar a inconstitucionalidade do parágrafo 2º do art. 33 do Decreto 70.235/721 (clique aqui) e parágrafos 1º e 2º, do art. 126, da Lei nº 8.213/19912 (clique aqui), que subordinavam o seu exercício, no âmbito dos processos fiscais, ao depósito de parte do montante questionado. Reputou-se que a exigência do depósito era uma forma indireta de restringir o direito de recurso protegido constitucionalmente. É evidente que, com muito maior razão, afigura-se inconstitucional proibir o recurso sobre determinados temas.

É absolutamente injustificável, sob o prisma constitucional, a tentativa de impedir o contraditório ou restringir o direito de recurso do particular contra decisões administrativas - especialmente no curso de licitações públicas. Aliás, é até incompreensível essa postura, que infringe a vontade constitucional. Um Estado Democrático se caracteriza pela participação dos cidadãos e o direito de recurso é uma manifestação fundamental dessa participação. Tanto bastaria para configurar a invalidade de uma disposição legal que pretende eliminar o direito de recurso contra certas decisões administrativas.

Anote-se que não apresenta a menor procedência o argumento de que os recursos em licitações seriam exercitados abusivamente pelos particulares, produzindo delongas indesejáveis no curso do processo de licitação.

Em primeiro lugar, a criação de uma faculdade jurídica sempre propicia o surgimento de abusos. Uma das preocupações centrais da disciplina do Direito reside no instituto do abuso de direito. Mas nunca se defendeu a eliminação do direito como solução para evitar a prática de seu abuso. Portanto, é injustificável proibir o direito de recurso sob o fundamento de que alguns o exercitam abusivamente.

Por outro lado, o problema do abuso existe tanto em relação ao direito subjetivo de recurso como com as próprias competências administrativas. Também existe o risco de atuação abusiva do agente estatal no desempenho de suas atribuições. Aliás, o direito ao recurso assegurado ao particular é um instrumento político-jurídico essencial à concepção de freios e contrapesos. Foi instituído precisamente para neutralizar o risco de que o agente público exercite abusivamente a sua competência.

Ou seja, eliminar o direito de recurso do particular sob o argumento de que alguns particulares atuam abusivamente impunha, por dever de coerência, a eliminação também da competência administrativa decisória. Afinal, existem autoridades públicas que também exercitam abusivamente os poderes de que são investidos.

Em termos práticos, a eliminação do recurso significaria a legitimação de qualquer decisão abusiva praticada pela Administração Pública. A não ser que se pretenda contrapor que a Administração Pública nunca atua abusivamente e que somente os particulares incorrem em tal defeito. Trata-se de argumentação despropositada, como é evidente.

Depois, os efeitos nocivos da utilização inadequada dos recursos são ínfimos. O exercício abusivo desse direito comporta soluções muito simples e rápidas. Um recurso destituído de procedência e razoabilidade pode ser denegado sem qualquer dificuldade.

Os problemas surgem apenas quando os recursos são procedentes ou veiculam argumentação consistente e sólida. Se a Administração Pública praticou ato descabido, de validade duvidosa, então a interposição do recurso produzirá problemas práticos enormes. A assessoria jurídica não disporá de argumentos para demonstrar a improcedência do recurso. A autoridade superior ficará de mãos atadas. O resultado será aquela prática usual para os que conhecem o cenário das licitações: o processo administrativo será paralisado durante semanas ou meses. Mas a paralisação não decorrerá de atuação reprovável do licitante. Derivará da ausência de argumentação satisfatória para a Administração Pública denegar o recurso. Especialmente nesses casos, a eliminação desse instrumento refletirá a destruição do Estado Democrático de Direito e a consagração de práticas arbitrárias.

Por isso, qualquer fundamento contrário à existência de recursos numa licitação representa a destruição de garantias constitucionais fundamentais e a abertura das portas para desvios éticos no âmbito da atividade administrativa.

Ademais, a regra examinada infringe um dos postulados mais essenciais do instituto da licitação, consistente no princípio da vinculação ao ato convocatório. A avaliação da habilitação e os critérios de julgamento de uma licitação são rigorosamente objetivos. Cabe à autoridade julgadora aplicar as regras constantes do ato convocatório. A inovação pretende criar uma competência discricionária (insuscetível de controle por meio de recurso administrativo) para a autoridade julgadora ignorar defeitos e permitir o saneamento de vícios e a eliminação de erros.

Não se trata de negar o cabimento de soluções dessa ordem. É pacífica a orientação de todos os estudiosos no sentido da superação de defeitos irrisórios3. Mas daí não se segue a admissibilidade da ausência de critérios destinados a controlar a atuação da autoridade julgadora. Mais ainda, isso nunca se poderia traduzir na vedação ao direito de recurso.

A situação é ainda mais grave porque caberá à própria autoridade julgadora qualificar a sua própria decisão. Para excluir o direito de recurso, bastará afirmar que se trata de saneamento de defeito irrelevante. Essa solução é inadmissível.

O resultado prático será a multiplicação de ações judiciais, agravando ainda mais os problemas do Poder Judiciário e de outros órgãos de controle externo. Ao invés de pleitear à própria Administração Pública a revisão dos atos defeituosos, o interessado será constrangido a invocar a proteção externa.

Enfim, impedir o direito de recurso numa época em que se cogita da edição de súmula vinculante para impor a observância do devido processo legal no exercício da atividade de controle (do TCU, no caso) atinge às raias do surrealismo.

Como última meditação, cabe insistir sobre a ausência de razoabilidade na invocação de argumentos fundados em eficiência administrativa para afastar a gestão pública democrática. A eficiência não legitima a eliminação dos instrumentos de controle democrático, conquista definitiva da Nação brasileira.
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1 Com a redação dada pelo art. 32, da Lei nº. 10.522/2002, originária da Medida Provisória nº 1.863-51/1999 e reedições. A inconstitucionalidade foi declarada no julgamento do RE 388.359/PE, rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 28/03/2007. (Informativo nº 461 -clique aqui- e 462 -clique aqui- do Supremo Tribunal Federal)

2 Com a redação dada pelo art. 10, da Lei nº. 9.639/1998 (clique aqui), originária da Medida Provisória nº 1.608-14/1998. A inconstitucionalidade foi declarada no julgamento dos RE 389.383/SP e RE 390.513/SP, rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 28/03/2007. (Informativo nº 461 e 462 do Supremo Tribunal Federal)

3 Essa posição é também adotada no âmbito do TCU. Nesse sentido, confira-se o Acórdão 0701/2007 - Plenário, rel. Min. Benjamin Zymler.

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*Advogado do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados









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