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Reflexões sobre a imputação de débito pelo TCU

O caminho que nos parece mais adequado, diante do disposto na norma de regência, nos casos em que não haja a regular comprovação do nexo causal dos recursos repassados.

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Atualizado em 24 de agosto de 2023 13:09

Como sabido, os gestores públicos estão sujeitos a três esferas de responsabilidade diferentes: a civil, a penal e a administrativa disciplinar. Cada uma delas é independente e tratada em tribunais ou instâncias administrativas específicas, sem interferência mútua, com exceção de alguns casos particulares

Tal entendimento, encontra ressonância no Princípio da Independência das Esferas ou Instâncias, que permite que um mesmo ato ou acontecimento seja investigado e acarrete punições em qualquer uma das áreas, salvaguardando, no entanto, uma punição duplicada pelo mesmo incidente.

Além dessas formas de responsabilidade, os gestores também podem ser responsabilizados amplamente, do ponto de vista administrativo, quando lidam com recursos públicos.

Vale mencionar que a própria Constituição Federal delegou ao Tribunal de Contas a autoridade para atribuir responsabilidade e impor sanções aos indivíduos responsáveis, nos casos de gastos ilegais ou irregularidades nas contas, incluindo a possibilidade de aplicar multas diante de prejuízo causado aos cofres públicos. Veja-se:

Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do TCU, ao qual compete:

I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento;

II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;

III - apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório;

IV - realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso II;

V - fiscalizar as contas nacionais das empresas supranacionais de cujo capital social a União participe, de forma direta ou indireta, nos termos do tratado constitutivo;

VI - fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município;

VII - prestar as informações solicitadas pelo Congresso Nacional, por qualquer de suas Casas, ou por qualquer das respectivas Comissões, sobre a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial e sobre resultados de auditorias e inspeções realizadas;

VIII - aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário;

IX - assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade;

X - sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal;

XI - representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados.

A responsabilidade aplicada aos processos em trâmite nos tribunais de contas e' de natureza subjetiva, conforme pacificado na jurisprudência do TCU:

No processo de tomada de contas especial os elementos exigidos para a caracterização da responsabilidade civil subjetiva se referem à existência de conduta culposa ou dolosa do agente, de dano ao erário e de nexo de causalidade entre a conduta e o dano. Existindo tais pressupostos, há o dever de indenizar. Acórdão nº 2367/2015-Plenário

Torna-se indubitável, portanto, a necessidade de comprovação do ato ilícito, do nexo de causalidade e da existência efetiva do dano.

O ato ilícito tem sido bastante discutido no âmbito das cortes de contas nestes últimos anos. Tal fato se dá, em razão das alterações trazidas pela Lei n. 13.655/2018 na Lei de Introdução ao Direito Brasileiro (LINDB), que estabeleceu o requisito do erro grosseiro para imposição da responsabilização do gestor público. Veja-se:

Art. 28.  O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

Até então, o TCU, por exemplo, aplicava punições aos gestores com base na ocorrência de dolo ou de simples culpa, seja ela in vigilando (decorrente da má fiscalização dos trabalhos dos subordinados) ou in eligendo (resultante da escolha equivocada de eventuais subordinados).

O advento do erro grosseiro trazido pela lei 13.655/18 passou a sugerir a existência de um novo parâmetro de responsabilização dentro do TCU, uma vez que não tinha uma definição objetiva, sendo naturalmente algo mais gravoso do que a simples culpa.

Neste sentido, a jurisprudência passou a se ocupar em definir o que seria o erro grosseiro, nas várias situações postas à sua análise, como se pode citar abaixo:

A conduta culposa do responsável que foge ao referencial do "administrador médio" utilizado pelo TCU para avaliar a razoabilidade dos atos submetidos a sua apreciação caracteriza o "erro grosseiro" a que alude o art. 28 do decreto-lei 4.657/42 (lei de introdução às normas do Direito Brasileiro), incluído pela lei 13.655/18. (Acórdão 1.628/18-TCU-Plenário, rel. min. Benjamin Zymler)

A ausência do critério de aceitabilidade dos preços unitários no edital de licitação para a contratação de obra, em complemento ao critério de aceitabilidade do preço global, configura erro grosseiro que atrai a responsabilidade do parecerista jurídico a quem coube o exame da minuta do edital, que deveria saber, como esperado do parecerista médio, quando os dispositivos editalícios estão aderentes aos normativos legais e à jurisprudência sedimentada que regem a matéria submetida a seu parecer. (Acórdão 1.695/18-TCU-Plenário, rel. min. Vital do Rêgo)

Sobre o dano, é importante observar que, ao contrário da responsabilidade civil, a responsabilidade administrativa perante o controle externo não está limitada a proteger apenas os interesses patrimoniais da administração pública. Em outras palavras, seu escopo vai além da simples reparação do dano causado aos cofres públicos.

Ao exercer sua autoridade exclusiva e constitucional para avaliar as contas dos gestores públicos, o TCU emite opinião sobre como os responsáveis pelos recursos e propriedades públicas conduziram suas atividades. Isso significa que o Tribunal pode ordenar o pagamento de quantias devidas e impor penalidades financeiras e restrições de direitos, em casos de conduta inadequada.

Quando um administrador público desvia recursos do governo destinados a um projeto público, ele prejudica as finanças públicas. Além disso, essa ação repreensível pode resultar em consequências punitivas no mesmo processo, destinadas a penalizar o transgressor e desencorajar a ocorrência futura de irregularidades desse tipo.

Neste sentido, dispõe a Lei 8.443/92 (lei orgânica do TCU), in verbis:

Art. 16. As contas serão julgadas:

I - regulares, quando expressarem, de forma clara e objetiva, a exatidão dos demonstrativos contábeis, a legalidade, a legitimidade e a economicidade dos atos de gestão do responsável;

II - regulares com ressalva, quando evidenciarem impropriedade ou qualquer outra falta de natureza formal de que não resulte dano ao Erário;

III - irregulares, quando comprovada qualquer das seguintes ocorrências:

a) omissão no dever de prestar contas;

b) prática de ato de gestão ilegal, ilegítimo, antieconômico, ou infração à norma legal ou regulamentar de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional ou patrimonial;

c) dano ao Erário decorrente de ato de gestão ilegítimo ao antieconômico;

d) desfalque ou desvio de dinheiros, bens ou valores públicos.

§ 1° O Tribunal poderá julgar irregulares as contas no caso de reincidência no descumprimento de determinação de que o responsável tenha tido ciência, feita em processo de tomada ou prestarão de contas.

§ 2° Nas hipóteses do inciso III, alíneas c e d deste artigo, o Tribunal, ao julgar irregulares as contas, fixará a responsabilidade solidária:

a) do agente público que praticou o ato irregular, e

b) do terceiro que, como contratante ou parte interessada na prática do mesmo ato, de qualquer modo haja concorrido para o cometimento do dano apurado.

Art. 19. Quando julgar as contas irregulares, havendo débito, o Tribunal condenará o responsável ao pagamento da dívida atualizada monetariamente, acrescida dos juros de mora devidos, podendo, ainda, aplicar-lhe a multa prevista no art. 57 desta lei, sendo o instrumento da decisão considerado título executivo para fundamentar a respectiva ação de execução.

E aqui, cabe chamar a atenção para um ponto fundamental a ser discutido nesta oportunidade: nos termos do §2° do art. 16 da lei orgânica do TCU, somente nas hipóteses do inciso III, alíneas c) e d) é que pode ser aplicada a responsabilização solidária e a imputação de débito.

Em certa medida, muitos julgados da Corte de Contas da União, ao nosso sentir, afrontam esse dispositivo legal, uma vez que utilizam a não comprovação do nexo causal da aplicação do recurso repassado pela União no objeto do convênio ou contrato, como fato suficiente para imputação de débito. Veja-se:

A contratação de empresa "de fachada" não constitui elemento fidedigno para comprovar a execução de objeto conveniado. A existência física do objeto do convênio não constitui, por si só, elemento apto a comprovar a regular aplicação dos recursos federais. Acórdão 2675/2012-Plenário (Rel. min. José Mucio Monteiro)

A utilização de empresa de fachada para a realização do objeto do convênio não permite o estabelecimento do necessário nexo entre os recursos repassados e o objeto avençado, ainda que este esteja, comprovadamente, executado. Acórdão 4509/2018-2ª Câmara (Rel. min. Marcos Bemquerer)

A utilização de empresa de fachada para a realização do objeto do convênio não permite o estabelecimento do necessário nexo entre os recursos repassados e o objeto avençado, ainda que este esteja, comprovadamente, executado. Acórdão 5796/2017-2ª Câmara (Rel. min. Augusto Nardes)

Ora, primeiramente há que se esclarecer que o nexo causal exigido pela teoria da responsabilidade subjetiva como suficiente para imputar débito ao gestor tem como premissa a comprovação de que a conduta ilícita deste gerou um dano efetivo ao erário.

Em segundo lugar, como demonstrado acima, somente pode haver imputação de débito se existir o dano ao Erário decorrente de ato de gestão ilegítimo ou antieconômico; ou se houver desfalque ou desvio de dinheiros, bens ou valores públicos (§2° do art. 16 da lei 8.443/92).

Em uma análise mais cuidadosa, pode-se até concluir que "a existência física do objeto do convênio não constitui, por si só, elemento apto a comprovar a regular aplicação dos recursos federais", como dito no acórdão 2675/12-plenário. No entanto, a irregularidade na eventual aplicação dos recursos federais não implica obrigatoriamente na existência de um dano ao erário!

Numa situação hipotética aonde o gestor público realiza uma obra, a preço compatível com o mercado, recolhendo todos os tributos, mas, por equívoco gerencial, não utilizou a conta bancária específica do convênio; embora haja uma infração à norma regulamentar, qual seria o dano ao erário causado? Se os recursos federais tivessem passado pela conta específica do convênio, a obra teria sido realizada por um custo inferior ao preço de mercado? Certamente que não!

Mesmo nos casos mencionados na jurisprudência acima colacionada (acórdão 2675/2012-plenário, acórdão 4509/18-2ª Câmara, acórdão 5796/17-2ª Câmara), onde se entendeu que foi realizada a contratação de empresa de fachada, embora a conduta do gestor competente seja ilícita, tendo, em decorrência desta, sido causado um dano administrativo, atraindo a irregularidade das suas contas, não se faz razoável a imputação de qualquer dano ao erário, já que a obra foi efetivamente realizada, com preço compatível com mercado.

Esse raciocínio, inclusive, já fora aplicado pela própria Corte de Contas da União, quando do cálculo do dano ao erário a ser imputado, no caso de inexecução parcial de convênio. Veja-se:

Constatada a execução parcial de convênio cujo objeto possa ser aproveitado, cabe excluir do débito o montante regularmente despendido, cabendo julgar irregulares as contas do ente federativo e imputar-lhe débito pelos valores não utilizados e não devolvidos, após conceder-lhe novo e improrrogável prazo para recolhimento, bem como julgar irregulares as contas do gestor e aplicar-lhes multa. (Acórdão 534/2022 - 1ª Câmara).

Nesta senda, se há de ser descontado do débito a ser imputado ao gestor o montante gasto quando da execução parcial do convênio, de igual modo deveria ser levado adiante o mesmo raciocínio quando da efetiva conclusão da obra sem qualquer superfaturamento.

Importante destacar, que não se trata, a reflexão ora levantada, de relativizar ou de dar menor importância à irregularidade decorrente da não comprovação da utilização correta dos recursos público, mas tão somente de aplicar as punições na exata gradação prevista na norma, até mesmo para evitar o enriquecimento sem causa do Estado.

A imputação de débito no valor integral de uma obra, mesmo quando esta for indubitavelmente concluída, importa dizer que o Estado está recebendo o objeto do convênio sem ter qualquer custo, considerando que o valor gasto acaba retornando inteiramente aos cofres públicos.

O caminho que nos parece mais adequado, diante do disposto na norma de regência, nos casos em que não haja a regular comprovação do nexo causal dos recursos repassados, mas o objeto conveniado tenha efetivamente sido realizado, seria o julgamento pela irregularidade das contas específicas do gestor responsável pela condução do certame e contratação da empresa, em razão da ocorrência da hipótese prevista no art. 16, III, b), da lei 8.443/92, uma vez que comprovada a prática de ato de gestão ilegal, com infração à norma legal ou regulamentar de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional ou patrimonial; entretanto, sem a imputação de débito, dada a inexistência de dano efetivo ao Erário, de desfalque ou desvio de dinheiros, bens ou valores públicos (§2° do art. 16 da lei 8.443/92).

Andrei Aguiar

Andrei Aguiar

Sócio Aguiar Advogados. Presidente da Associação Brasileira de Advogados, Regional do Ceará.

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