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Uso de IA na persecução administrativa: o "Projeto Cérebro" do CADE

José Inacio F. A Prado Filho e Maria Eduarda de Jesus Genova

Iniciativas de eficiência na Administração Pública são altamente desejáveis, e o uso de IA pode ajudar em muito nas atividades de persecução.

sábado, 16 de setembro de 2023

Atualizado em 15 de setembro de 2023 14:32

I. Uso de IA por órgãos públicos

O uso da IA é amplamente debatido no meio empresarial, e não há razão para a discussão não cobrir também seu emprego pela Administração Pública. Com iniciativas para o uso de algoritmos e bases de dados pelos órgãos públicos, surgem também preocupações sobre quais cuidados devem ser adotados pelo poder público ao implementar seus sistemas de IA.

O poder legislativo já discute regulamentar o tema. O PL 2.338/23, apresentado pelo Senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), estabelece alguns elementos relevantes para atividades persecutórias, ao (i) admitir o uso de câmeras para identificar pessoas em espaços públicos mediante lei específica e autorização judicial; (ii) sujeitar a regras mais rígidas os sistemas utilizados nas atividades tipicamente governamentais, aí incluídas administração da justiça, investigação criminal e segurança pública; e (iii) estabelecer normas específicas para a contratação de sistemas de IA pelo poder público, inclusive sobre transparência e não-discriminação.1

Na vanguarda do uso de inteligência artificial pelo poder público está a ferramenta implementada pelo CADE, que já emprega esses métodos na persecução de infrações antitruste.

II. IA no CADE - Projeto Cérebro

Em 2013, a Superintendência Geral do CADE desenvolveu um conjunto de técnicas para detecção de cartéis a partir de bases de dados de licitações públicas. A ferramenta foi denominada Projeto Cérebro, e usa mineração de dados, testes estatísticos e algoritmos para identificar suspeitas de atuação coordenada em compras públicas.2

Analisam-se efeitos mensuráveis do comportamento colusivo que são improváveis em mercados competitivos, e que dificilmente ocorreriam sem comunicação prévia das empresas. A ferramenta detecta padrões de atuação das empresas na base de dados das compras públicas que demonstrariam indícios de comportamento colusivo em licitações, como por exemplo, supressão de propostas; similaridades entres as propostas, com preços padronizados; lances de cobertura; e divisão de mercados entre as empresas participantes.3

A principal base de dados utilizada é do Comprasnet, portal de compras do Governo Federal, mas o CADE também usa dados fornecidos por outros órgãos públicos e banco de dados públicos.4

Com a aplicação de filtros e algoritmos nessas bases de dados, o Projeto Cérebro automatiza análises da investigação, com identificação de padrões de ações potencialmente coordenadas, auxiliando na instauração de investigação e na coleta de provas durante a investigação. A ferramenta não apenas sinaliza mercados com maior suscetibilidade a infrações econômicas e permite abertura de novas investigações ante comportamento suspeitos, como também agrega informações a processos já existentes.

O conjunto de ferramentas foi usado em 2021 para instauração de investigação sobre suposto cartel em licitação para a contratação de serviços de brigada de incêndio pelo CADE.5 Com base nos dados Comprasnet das licitações em que as empresas do certame inicial participaram, o CADE fez estudo econométrico e suspeitou do padrão das propostas apresentadas. Foram ainda identificados os IPs eletrônicos dessas empresas suspeitas em licitações de outros órgãos, cruzamento de dados que detectou outras licitações potencialmente afetadas, como do MPS, CNJ, CEF, Governo do Estado do Acre, entre outros.6 A investigação em questão está em curso no CADE.

III. Desdobramentos & Futuro

É reconhecido que a aplicação de filtros econômicos para identificar condutas coordenadas só é viável por meio de ferramentas de tecnologia da informação e estatística, uma vez que é necessária a análise de grande base de dados sobre procedimentos licitatórios e informações sobre estratégias das empresas.7

Iniciativas de eficiência na Administração Pública são altamente desejáveis, e o uso de IA pode ajudar em muito nas atividades de persecução. Mas preocupações similares às que incidem na iniciativa privada também subsistem, com a diferença significativa que o consumidor pode decidir transacionar ou não no mercado, escolha que não tem quanto a submeter-se ou não ao poder público.

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1 BRASIL, Senado Federal. Uso de Inteligência Artificial Pelo Poder Público Será Sujeito a Regulamentação. Agência Senado, 2023. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/05/12/uso-de-inteligencia-artificial-pelo-poder-publico-sera-sujeito-a-regulamentacao.

2 BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Escola Nacional de Administração Pública, Prevenção e detecção de Cartéis em Licitações. Módulo 3. Repressão a Cartéis. 2019. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/jspui/bitstream/1/6495/1/Mod%201_Defesa%20da%20Concorr%c3%aancia.pdf.

3 BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Escola Nacional de Administração Pública, Prevenção e detecção de Cartéis em LicitaçõesMódulo 3. Repressão a Cartéis. 2019. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/jspui/bitstream/1/6495/1/Mod%201_Defesa%20da%20Concorr%c3%aancia.pdf.

4  OCDE, Combate a cartéis em licitações no Brasil: Uma revisão das Compras Públicas Federais, 2021, p. 100. Disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/Combate-a-Carteis-em-Licitacoes-no-Brasil-uma-Revisao-das-Compras-Publicas-Federais-2021.pdf. Em especial, esse documento da OCDE comenta que a CGU concedeu, a partir de 2010, acesso aos dados do Observatório da Despesa Pública ao CADE, e que o TCU estava em processo de compatibilizar seus dados com a interface da ferramenta.

5 BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Superintendência Geral. NOTA TÉCNICA Nº 7/2021/SG-TRIAGEM CONDUTAS/SGA2/SG/CADE. Processo Administrativo nº 08700.004914/2021-05. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?HJ7F4wnIPj2Y8B7Bj80h1lskjh7ohC8yMfhLoDBLddY_LGcsxfX2HCQpNx7m0B1UF9RWscvGxs64vdOcfQxclLWkamZuuKFhT0ozapmEwrIBqmd4mq0X4xYuNG8X857Y.

6 BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Superintendência Geral. NOTA TÉCNICA Nº 7/2021/SG-TRIAGEM CONDUTAS/SGA2/SG/CADE. Processo Administrativo nº 08700.004914/2021-05. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?HJ7F4wnIPj2Y8B7Bj80h1lskjh7ohC8yMfhLoDBLddY_LGcsxfX2HCQpNx7m0B1UF9RWscvGxs64vdOcfQxclLWkamZuuKFhT0ozapmEwrIBqmd4mq0X4xYuNG8X857Y.

7 BRASIL, PNUD. Cérebro: Inteligência No Combate à Formação de Cartéis. Medium, 2020. Disponível em: https://medium.com/@pnud_brasil/c%C3%A9rebro-intelig%C3%AAncia-no-combate-%C3%A0-forma%C3%A7%C3%A3o-de-cart%C3%A9is-95db65d02eba.

José Inacio F. A Prado Filho

José Inacio F. A Prado Filho

Sócio da área de prática de Direito Concorrencial do BMA Advogados.

Maria Eduarda de Jesus Genova

Maria Eduarda de Jesus Genova

Advogada da área concorrencial do BMA Advogados.

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