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Ética e saúde suplementar: tema sempre necessário

A ética é assunto para filósofos ou é um tema relevante para toda a sociedade brasileira? A resposta é evidente para alguns e profundamente complexa para outros, não apenas no âmbito filosófico, mas também no jurídico.

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Atualizado em 21 de setembro de 2023 14:15

1. Ética e prática ética

Ética é uma vasta área do conhecimento que está vinculada à filosofia, embora também possamos estudar esse tema em outras áreas do saber como a religião ou a deontologia, área criada pelo filósofo inglês Jeremy Bentham, que trata da ciência do dever e da obrigação, ou seja, as escolhas dos indivíduos sobre aquilo que realmente deve ser feito por ser o melhor comportamento para todos.

A área da deontologia profissional assumiu grande relevância no século XX e neste início de século XXI, sendo cada vez mais usual que os profissionais de diferentes áreas do saber sejam questionados sobre suas práticas éticas, em especial no campo do direito, da saúde, da administração pública e privada, entre tantas outras.

Escândalos de corrupção, lavagem de dinheiro em países conhecidos como "paraísos fiscais", tráfico de drogas, financiamento de atos terroristas, entre tantos outros exemplos de triste memória, recolocaram as práticas éticas como tema de grande relevância nos últimos anos no Brasil e em vários outros países do mundo.

Mais recentemente, as denúncias comprovadas de utilização das redes sociais para difusão de notícias falsas, as comumente denominadas fake news; as práticas de invasão de privacidade que também são recorrentes nas redes; e a utilização de aplicativos de mensagens para impulsionamento de informações inverídicas sobre fatos e pessoas, todos esses transtornos motivados pela evolução tecnológica e digital, reconduziram o debate sobre a ética para o centro das preocupações de governos, educadores, profissionais de mídia, juristas e cidadãos comuns como todos nós.

Ética é decisão, escolha de como agir. Quem age em conformidade com a ética escolhe agir em conformidade com padrões que estão de acordo com as regras morais, que priorizam o que é justo e bom para todos e não apenas para si próprio. Immanuel Kant afirmou que "O comando moral que faz com que nossas ações sejam moralmente boas, se expressa no imperativo categórico: age só segundo a máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne universal." (Fundamentos da Metafísica dos Costumes, 2004, p. 51)

Não há, portanto, nada de extraordinário no agir com ética. É necessário, apenas, que cada cidadão ou cidadã verifique quais os efeitos que sua ação poderá gerar, se serão positivos ou negativos, se repercutirão de forma favorável ou desfavorável na sociedade. Isso exige a compreensão prévia de que somos todos membros de uma sociedade, formada por diversos grupos - trabalho, família, social, religioso, esportivo -, e que nossas atitudes repercutem sempre em todos os grupos em que fazemos parte. Se a repercussão será positiva ou negativa, essa é a pergunta a ser feita antes de tomar qualquer decisão.

O que ocorre muitas vezes é que cidadãos e cidadãs não possuem a exata percepção de sua relevância nos grupos sociais a que pertencem e, por isso, avaliam que suas ações não se tornam conhecidas e nem produzem efeitos. É um engano! Em todos os grupos sociais nossas atitudes repercutem e podem gerar efeitos positivos ou negativos, o que nos impõe refletir e praticar condutas éticas em todos os momentos da vida.

Nossas escolhas e decisões repercutem socialmente e com rapidez porque vivemos interligados digitalmente, ou seja, em uma sociedade em rede (Castells, Manuel, 2013), em que as informações circulam em tempo real. As escolhas e os comportamentos adotados a partir delas repercutem de forma direta ou indireta, mesmo nas práticas mais corriqueiras como escolher um serviço ou comprar um produto.

Ao escolher contratar um plano de saúde em qualquer de suas modalidades nossa decisão impacta para um bom número de pessoas, porque passamos a pertencer a uma comunidade de beneficiários do mesmo serviço, ainda que não tenhamos contato uns com os outros. Por isso, na área dos planos de saúde, que se sustentam na formação de um fundo comum que será utilizado em benefício de todos, em caráter de repartição simples, é essencial compreender como as nossas ações impactam para todos os demais beneficiários.

 2. Aspectos práticos da ação ética na saúde suplementar

A sociedade contemporânea adota comportamentos bastante competitivos e individualistas, impulsionada pelo consumismo exacerbado que hoje constrói parte relevante da identidade de cada ser social.

Em uma palestra proferida por Ariano Suassuna e que pode ser encontrada no YouTube1, ele narra de forma muito saborosa a experiência que viveu em um jantar, em conversa com uma senhora que ficou imensamente assustada quando ele declarou que não conhecia um parque de diversões norte-americano, mundialmente famoso, e muito frequentado pelas classes mais abastadas da sociedade brasileiro. Para o inesquecível Suassuna, aquela senhora tinha uma visão de mundo muito clara: os que conheciam o parque e os que não conheciam, que para ela seriam uma espécie rara, raríssima, quase um ser fora do mundo real.

Essa narrativa do grande escritor paraibano nos aponta claramente as nuances do mundo contemporâneo, em que o consumo constrói a identidade das pessoas e as aproxima ou afasta de determinados grupos sociais. Conhecer um ponto turístico, comprar uma marca de roupa, residir em um determinado bairro, frequentar certos bares ou restaurantes, tudo isso contribui para a formação da identidade social do sujeito.

O individualismo e a competitividade nesse ambiente social induzem à crença de que o que importa é que tenhamos êxito, sucesso em nossos objetivos e propósitos, sem tanta preocupação com as consequências de nossas ações, desde que os fins sejam realizados.

Para a convivência social em geral os aspectos individualistas e competitivos já são criadores de conflitos; nos grupos sociais menores como condomínios, ambiente de trabalho e família, os conflitos também podem se originar em razão dessa forma de agir. E nos grupos dos quais participamos e que não conhecemos os demais participantes, como é o caso dos planos de saúde?

O contrato de plano de saúde pode ser individual, familiar ou coletivo e em qualquer dessas modalidades cada beneficiário recebe um documento individual que lhe garante a utilização dos serviços de saúde. No passado, um cartão plástico contendo nossos dados, na atualidade, os aplicativos cumprem o papel de cartão digital. Apesar desse documento individual somos parte de um grupo, ainda que muitas vezes não tenhamos conhecimento sobre as outras pessoas que fazem parte dele.

É esse grupo que custeia todas as despesas assistenciais de cada um dos participantes. Por vezes, o participante tem necessidade de utilização constante, outras vezes a utilização é eventual, mas todas elas são custeadas pelo fundo mutual para o qual todos contribuíram. Não há formação de fundos individuais a partir da contribuição dos recursos de cada um dos beneficiários, o que nem sempre é do conhecimento das pessoas que possuem e utilizam planos de saúde.

Pertencer a uma mutualidade, a um grupo que arrecada recursos econômicos para custear despesas assistenciais em saúde é uma grande responsabilidade porque cada gasto que uma pessoa realiza é pago por todas as demais. Gastar mal representa prejuízo para todos; gastar bem preserva os recursos que pertencem ao grupo.

O custo excessivo, a fraude e o desperdício não impactam os lucros da operadora de saúde, mas sim o fundo mutual cujos valores pertencem aos beneficiários. Utilizar de forma individualista sem nenhuma preocupação com os valores que serão necessários para o custeio é uma decisão negativa, porque é certo que ela impactará nos recursos que pertencem a todos os beneficiários.

A decisão de acesso à saúde não pode ser somente do paciente, mas orientada pela equipe de saúde que tem recursos técnicos e terapêuticos para fornecer dados confiáveis para subsidiar a tomada de decisão. É nisso que consiste uma prática ética no ambiente social de saúde suplementar.

Ética é escolha do que é justo e equilibrado e isso convida a refletir sobre as consequências de nossas ações. E isso é responsabilidade essencial de todos os atores envolvidos na relação que os planos de saúde estabelecem, e há que se destacar que são muitos e diferentes esses atores.

Pacientes, familiares, médicos, enfermeiros, farmacêuticos, terapeutas, equipes administrativas, fornecedores de medicamentos, de produtos médico-hospitalares, prestadores de serviços, entre muitos outros. Todos em algum momento terão decisões a tomar e que repercutirão para todos os que participam do fundo mutual.

A dualidade existe de forma concreta: de um lado o anseio em utilizar todos os recursos existentes para buscar o acesso à saúde. De outro lado, a realidade que aponta os altos custos de acesso a procedimentos, medicamentos, inovações e prestadores de serviços. Custos que aumentam exponencialmente em curtíssimo espaço de tempo e se tornam ainda mais dispendiosos quando se vive em tempos de longevidade, essa benção de nossos tempos que, no entanto, também tem outro lado em razão dos custos para manter a saúde estável.

Esse paradoxo é real e muito objetivo em nossa época: há maior acesso a procedimentos e eventos que possam proteger ou restaurar a saúde; e, por outro lado, os custos são cada vez maiores, no caso dos planos de saúde, compartilhados com todos os que contribuem para a formação do fundo mutual.

Interesses individuais e coletivos em conflito? Pode acontecer, sem dúvida!

O que a ética nos diz sobre isso? Como ela pode contribuir para impulsionar decisões adequadas?

O descumprimento de regras morais não é causa para a aplicação de sanções. Mas o descumprimento de regras éticas pode impactar de forma negativa, como aconteceu, por exemplo, recentemente, com empregados de um banco de grande porte que foram surpreendidos quando se cadastraram para receber auxílio emergencial do governo federal, em razão da pandemia da COVID-19, quando na realidade se encontravam empregados e não necessitavam desse recurso. Além das consequências de ordem jurídica criminal, foram demitidos.

Mesma consequência atingiu empregados de outras empresas que foram flagrados utilizando indevidamente os seguros saúde, por exemplo, com pedidos de reembolso sem desembolso, ou para reembolso de consultas em valores adulterados, ou, ainda, para tratamentos estéticos prescritos como se fossem tratamento de saúde. A empresa contratante do seguro saúde entendeu que aquela prática tinha consequências jurídicas e éticas e demitiu o grupo de funcionários que comprovadamente havia agido de forma antiética.

Outras consequências nem sempre são de conhecimento de todos, como acontece, por exemplo, com planos de saúde de menor porte que não resistem a sucessivas práticas antiéticas de seus beneficiários ou prestadores de serviços e são obrigados a encerrar as atividades, com prejuízo para algumas centenas de pessoas.

Muitas vezes somos convidados ou quase compelidos a práticas antiéticas sem que consigamos nos aperceber disso de imediato. É o caso daquele anúncio sedutor do concierge da clínica,concierge, que está empenhada em fornecer os melhores serviços para os clientes. E ela começa pedindo o login e a senha do beneficiário do plano de saúde para poder entregar um serviço de qualidade inigualável. É tão natural apreciarmos um bom tratamento, faz tão bem para todos nós. Mas, nosso espírito crítico sabe, ainda que de forma intuitiva, que não existe "almoço grátis", que se algum serviço está sendo prestado, ele será cobrado. E é cobrado sim, de toda a mutualidade que contribuiu para o plano de saúde com o pagamento das mensalidades.

Login e senha são elementos de identidade do beneficiário e não podem ser utilizados por outras pessoas, porque nunca se poderá ter certeza de que não estão sendo utilizados para obtenção de valores indevidos, alterados, ou para custear procedimentos que não foram realizados. E tudo isso para ser pago por todos os participantes do fundo mutual, beneficiários do mesmo plano de saúde, prejudicados por uma decisão individual.

A reflexão sobre as consequências de nossos atos deveria nortear nossas decisões corriqueiramente, mas a cultura individualista cultivada há muitos anos em nossa sociedade tem turvado nossa visão, diminuído nossas preocupações com o coletivo e provocado problemas bem reais e complexos.

Decisões individuais justas e equilibradas são decisões que sempre repercutirão de forma positiva para o conjunto social. E nosso cotidiano está repleto de oportunidades para opções corretas que contribuam para que a sociedade seja mais justa, um lugar melhor para se viver.

E isso é a prova de que ética não é assunto só da filosofia, ao contrário, é assunto de todos aqueles que vivem em sociedade. É tema de hoje para problemas de sempre.

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1 Ariano Suassuna. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=S4zTj2N9ns8. Acesso em 31 de agosto de 2023.

Angelica Carlini

Angelica Carlini

Doutora em Direito Político e Econômico. Mestre em Direito Civil. Pós-doutorado em Direito Constitucional. Pós-graduanda em Direito Digital pelo ITS-UERJ. Advogada. Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCONT. Professora doutora e coordenadora do curso 'MBA Gestão Jurídica de Seguros e Resseguros'.

Vera Valente

Vera Valente

Advogada e engenheira. Diretora Executiva da FenaSaúde desde 2019. Ingressou no mercado de Saúde no fim da década de 1990, quando foi convidada a assumir um cargo no Ministério da Saúde, onde esteve à frente do projeto de lançamento do cartão SUS. Em seguida, no início dos anos 2000, liderou a implementação da política de medicamentos genéricos no Brasil, na posição de Gerente Geral de Medicamentos Genéricos da ANVISA.

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