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A gravidade dos precedentes e suas consequências

José Carlos Bonilha e Cassio Roberto Conserino

Iniludivelmente, a regra processual penal dispõe claramente que não cabe assistência à acusação em Inquérito Policial. Para além disso, a doutrina e a jurisprudência aplicáveis à espécie são unânimes e uníssonas nesse sentido.

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Atualizado às 13:48

Recebemos com inquietação e profunda preocupação a notícia de que o STF autorizou o ingresso de assistência da acusação, no Inquérito sob número 4.940/DF. E isso porque, os artigos 268/273 do Código de Processo Penal, são explícitos ao preceituarem que, apenas nas ações penais em curso, é que cabe assistência ao Ministério Público. No caso vertente, inclusive, o fez sem a anuência do Ministério Público Federal.

Iniludivelmente, a regra processual penal dispõe claramente que não cabe assistência à acusação em Inquérito Policial. Para além disso, a doutrina e a jurisprudência aplicáveis à espécie são unânimes e uníssonas nesse sentido.

Disso decorre que não há qualquer dúvida, hesitação ou incerteza, a respeito do assunto. Não cabe interpretação onde a lei é clara. Basta, pois, uma interpretação meramente gramatical para concluir acerca da inadmissibilidade.

Não é demasiado dizer que o contemplado com essa decisão, que destoa do ordenamento jurídico, é Ministro da Corte, que pretende se habilitar em Inquérito visando a proteger seu familiar, demonstrando, ainda, um benefício incompatível com a regularidade procedimental, como ordinariamente acontece, e com os fins sociais aos quais a lei deve atender.

Não bastasse tudo isso, os eventuais autores do fato do precitado Inquérito não possuem cargos públicos, e, por conseguinte, não há se falar em competência por prerrogativa de função, nada justificando, em princípio, a tramitação do Inquérito perante o STF.

Nota-se que há um alargamento, que soa inconstitucional, da competência do órgão máximo do Poder Judiciário, com a qual não podemos tolerar, sob pena de institucionalizarmos e banalizarmos a incorreção.

Em passado relativamente recente, verificou-se postura do colendo STF que atingiu a Instituição Ministério Público, mediante Portaria instauradora de Inquérito Judicial, baixada, de ofício, por Ministro do colendo STF, fulcrada em artigo do respectivo Regimento Interno, a nosso modesto juízo, não recepcionado pela Constituição Federal, que consagra o sistema acusatório. 

A revogada lei 4.611/65, que instituía o procedimento judicialiforme, foi o último resquício de possibilidade, conferida ao magistrado de, mediante Portaria, inaugurar procedimento que visasse à responsabilização de autor de crime de homicídio culposo e lesão corporal culposa.  

Com a entrada em vigor da atual Constituição, essa lei se viu revogada, consagrando-se o sistema que comete ao Ministério Público a titularidade privativa da ação penal pública. 

A despeito da indisfarçável clareza da norma prevista no art. 129, I, da CF, naquela colenda Corte tramita procedimento que não rende homenagens ao sistema acolhido pelo legislador constituinte. 

Agora, em nova posição que vai de encontro ao conjunto de normas adotado pelo Direito Processual Penal, prolatou-se decisão que admite a existência de assistente de acusação, em fase pré-processual, o que também contraria, como antes referido, toda a sólida jurisprudência e a doutrina dominante. 

A decisão do egrégio STF, permitindo o assistente de acusação, em sede de procedimento investigatório, tem potencial para desvirtuar o processo penal e pode produzir enormes e nocivas consequências para todos os operadores do Direito, que atuam na persecução criminal.  

Criar-se-á precedente extremamente perigoso, pois, além de haver o aviltamento das regras processuais penais, estaremos em face de possível esvaziamento do sentido atribuído pela Constituição Federal ao Ministério Público no que tange a privatividade da ação penal (art. 129, I, CF), porquanto não nos surpreenderíamos se o Supremo Tribunal Federal em caso de não regular apresentação de denúncia no caso em questão conceda a oportunidade da vítima apresentá-la em modelo deturpado de ação penal privada subsidiária da pública.

E vamos além.

Essa inédita decisão gerará confusões homéricas no "chão de fábrica" à medida em que, em primeira instância onde Promotores de Justiça e Juízes de Direito labutam diariamente, curvados a legislação processual penal, se depararão com irregulares pedidos de assistência em Inquéritos Policiais com a desnaturação do instituto, bem como do próprio expediente investigatório, que não é contraditório (art. 14 do CPP) e sem a possibilidade de rechaçá-los, haja vista o precedente verificado no colendo STF.

A consequência disso é que o Inquérito Policial se tornará ainda mais um emaranhado de manifestações, quer da Autoridade Policial, quer do membro do Ministério Público, quer da vítima, quer da própria defesa, que não chegará a lugar algum; enfim, uma massa de informações autofágicas e contraditórias em prejuízo evidente ao princípio constitucional da eficiência cuja principal perdedora dessa miscelânea será a destinatária do trabalho investigatório, ou seja, a própria sociedade.

Em sendo admissível assistente de acusação no Inquérito, seria também o caso de se admitir amicus curiae? Não existe essa figura no IP, assim como não existe o assistente de acusação na fase pré-processual penal.   

Ao que consta, o ilustre PGR interpôs recurso, para desafiar a admissibilidade de assistente de acusação, que a propósito se confunde com integrante da referida Corte e se aguarda, serenamente, que os demais Ministros defiram o recurso, acolhendo, por conseguinte, a pretensão externada pelo Ministério Público Federal (AJCRIM-STF-PGR 1152026/23) que, dentre outros tópicos, questiona a autorização de assistência de acusação em caderno inquisitorial investigatório, e restituam a normalidade jurídico-processual penal.  

Mas a questão nos parece ganhar contornos que vão para além dos autos, razão pela qual, a nosso sentir, permeia a esfera institucional e justifica posicionamento a ser adotado pelo Conselho Nacional de Procuradores Gerais. 

O tema reclama ser levado ao exame do colendo Conselho Nacional de Procuradores-Gerais, a fim de que se estudem medidas a serem eventualmente adotadas, para a salvaguarda do Ministério Público, que vem tendo o seu protagonismo reduzido e a sua atuação, que se apoia em hígidos comandos constitucionais e legais, minorada. 

Como se sabe, o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais funciona na forma de colegiado, e esse Conselho foi criado com o objetivo de defender os princípios, prerrogativas e funções institucionais do Ministério Público.   

A nós nos  parece, com todas as vênias, que essa questão, dada à sua magnitude, complexidade e relevância, deva ser objeto de discussão no âmbito desse importante colegiado e, a partir disso, fixada posição institucional que, por obvio, defenda o regime da estrita legalidade, como preconiza o art. 127, caput, da CF, como também assegure a observância aos princípios, prerrogativas e funções institucionais do Ministério Público.   

O amadurecimento e o fortalecimento das Instituições exigem tomadas de decisões, por parte de seus agentes máximos, que ocupam posição de chefia ou direção, sempre no desiderato de assegurar a sua integridade e essência, que derivam do desenho traçado pelo legislador constituinte, não se admitindo, em nenhuma hipótese, que haja entendimento pessoal que suplante a missão institucional, e obscureça a sua razão de ser.      

José Carlos Bonilha

José Carlos Bonilha

Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito Processual Penal pela PUC/SP. Professor e palestrante. Autor de obras jurídicas.

Cassio Roberto Conserino

Cassio Roberto Conserino

Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo.

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