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Polígono da maconha: Brasil tem clima perfeito e expertise para virar líder global

O Brasil tem uma rara chance de iniciar um processo de paz e, ao mesmo tempo, se beneficiar dos impactos econômicos desta commodity.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Atualizado às 14:37

Quase todos os meses, a imprensa noticia uma nova grande operação da Polícia Federal "erradicando" centenas de milhares de plantas no chamado polígono da maconha. A região de Caatinga abrange quatro estados do Nordeste e é o maior polo de produção da erva no país1. Quando vejo na TV agentes do estado incinerando toneladas de plantações e encarcerando os cultivadores, é impossível não pensar em quantos pacientes poderiam estar sendo tratados com todo aquele remédio, enquanto que a legalização geraria um milagre econômico àquela região e ao país.

Erradicar, essa palavra sempre utilizada pela polícia e imprensa, é um tanto irônica. No sentido de remover pela raiz, até faz sentido. Mas eliminar para sempre, como quando uma doença é erradicada, jamais acontecerá. Há registros do cultivo de cannabis em Pernambuco, Bahia, Alagoas e Sergipe desde a segunda metade do Século XIX2. A proibição federal em 1938 foi inócua: nos anos de 1970, o polígono da maconha ganhou escala industrial, atendendo todo o Nordeste, além das regiões Sudeste, Centro-Oeste e até Sul. A safra de maconha é a maior economia da região3. Mas somente o crime organizado se beneficia dessa economia. 

Em 2020, a Universidade Federal de Viçosa (UFV), em parceria com a startup de pesquisas com maconha ADWA, divulgou o estudo Potencial Brasileiro Para o Cultivo de Cannabis Sativa L. para Uso Medicinal e Industrial4. A pesquisa do engenheiro agrônomo e geógrafo Sérgio Rocha revelou a aptidão de várias regiões do Brasil, sendo a Caatinga o bioma melhor classificado. Além da maior incidência de sol e o solo bem estruturado, com boa capacidade de retenção de água e nutrientes, a região ainda tem a dádiva do São Francisco para sua irrigação, o maior rio do país em extensão dentro do nosso território. O resultado são três safras por ano.

É uma combinação de fatores perfeita, de causar inveja em muita empresa de cannabis dos Estados Unidos ou do Canadá, países legalizados mas onde é necessária iluminação artificial devido ao inverno rigoroso. Na Caatinga, a natureza já deixou tudo pronto. Mas o país ainda está preso há uma lei de um século atrás, enquanto que quase todos os nossos vizinhos já legalizaram o plantio desta commodity.

Numa dessas reportagens sobre as incontáveis operações Polígono, veiculada na TV Record em 2015, o repórter mostra os agricultores vivendo em condições degradantes5. A matéria entrevistou um cultivador identificado apenas por Ivanilson. Analfabeto, cinco filhos, ganhava 30 reais por dia plantando frutas. Impossível sustentar a família. Acabou indo parar numa fazenda de maconha seduzido pela diária de 200 reais. Só que 15 dias depois, acabou preso.

A reportagem da Record também entrevistou outro agricultor detido, chamado Ronaldo. Diferente de Ivanilson, Ronaldo é um cultivador experiente. Sabe tudo sobre as necessidades das plantas, fotoperíodo, colheita, poda. Demonstra devoção no ofício. Quer dizer, além de solo, clima excelente e o Velho Chico, a região tem profissionais qualificados, tem expertise. Na América do Norte, não falta emprego para um profissional com a experiência do Ronaldo. Mas o patrão dele em Pernambuco é uma facção criminosa.

A espécie vegetal que levou Ivanilson e Ronaldo à cadeia é exatamente a mesma que produz um remédio que, desde 2017, a Anvisa permite a venda nas farmácias a preços abusivos e impeditivos. E aqui estou falando remédio de THC mesmo, a molécula psicotrópica, e não o já bem aceito canabidiol (CBD).  O medicamento se chama Mevatyl® e é fabricado por um laboratório europeu6. Ou seja, importado, assim como todo remédio de cannabis disponível aos brasileiros, com exceção de algumas associações de pacientes.

Já passam de 430 mil pessoas em tratamento com cannabis no Brasil, segundo dados da Kaya Mind, uma consultoria especializada nesse mercado9. É o dobro do ano anterior, um crescimento exponencial. Mas enquanto a indústria faz fortuna vendendo maconha em óleo, o Brasil é uma máquina de encarcerar preto e pobre por vender o mesmo princípio ativo, só que in natura.

Em 2006, numa tentativa de diferenciar o usuário do traficante, o Congresso Nacional aprovou a chamada Lei de Drogas (11.343). Sem um critério específico de peso nas apreensões, pesou o critério racial. Dezoito anos depois, essa lei se mostrou uma calamidade pública. Nos tornamos a terceira população carcerária do planeta, com 820 mil presos, mais da metade por tráfico. Sete em cada dez são pretos e pardos. Sete em cada dez sequer concluíram o Ensino Fundamental7. Isso não é Justiça, mas controle social. Do lado de fora da cadeia, somos o país com a maior taxa de homicídios do mundo, a polícia que mais mata e a que mais é assassinada. E todos os anos, as drogas vencem a guerra às drogas. Esta lei é ou não é uma calamidade?

O Brasil tem uma rara chance de iniciar um processo de paz e, ao mesmo tempo, se beneficiar dos impactos econômicos desta commodity. No STF, já está 5x1 a votação a favor do Recurso Extraordinário (RE) 635.659, que descriminaliza a posse de maconha. Falta um voto entre cinco ministros. Hoje, só Brasil e Bolívia ainda não o fizeram na América do Sul8. É o único caminho para libertar centenas de milhares de usuários e traficantes de varejo miseráveis, como Ivanilson e Ronaldo, além de frear a violência policial.

Já no âmbito econômico, existe o Projeto de Lei 399/15, que legaliza o plantio da cannabis para fins medicinais e industriais por empresas. Apesar de não prever uma reparação histórica, incluindo os negros e indígenas nessa nova economia, o projeto está em fase avançada. Após mais de um ano de audiências, foi aprovado na comissão especial em 2021 e está pronto para ser votado no plenário da Câmara. Mas o presidente da Casa, Arthur Lira (PP/AL), há 2 anos não tira o PL da gaveta10. Ano passado, não colocou em votação para não desagradar o aliado governo Bolsonaro, que era terrivelmente contra. Esse ano, falta pressão política do governo atual e da sociedade civil organizada.

Segundo a Kaya Mind, a legalização da maconha poderia gerar 117 mil empregos e movimentar até R$ 26 bilhões em quatro anos no Brasil. O polígono da maconha, alvo de repetidas operações que nunca vão erradicar o narcotráfico e sempre retratado de forma tão pejorativa na imprensa, poderá ser um case de sucesso entre os comentaristas de economia e líder global na produção desta commodity. Ivanilson e Ronaldo teriam carteira assinada. A natureza já deixou tudo pronto. Falta vontade política.

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1. Segundo trabalho de conclusão do sociólogo Paulo Cesar Fraga, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o sertão nordestino produz 40% da maconha consumida no País. O outros 60%, conforme o estudo, vem do exterior, basicamente do Paraguai.

2. Revisão de literatura "A História da Macoha no Brasil" publicado pelo saudoso cientista Elisaldo Araújo Carlini, do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas  da Unifesp. Carlini foi o maior pesquisador sobre cannabis no país, falecido em 2021.

3. Segundo a tese A Cannabis No Brasil: Perspectiva Histórica, Legal E Tendências Econômicas Da Legalização, da economista Isabelle Godoy (UFRP), a partir de 1970, a região recebeu várias intervenções de grandes projetos para irrigação e energia, no caso, hidrelétricas, que reconfiguraram a paisagem e a economia. Mas, na década de 1980, a região já adquiria a nova identidade regional do "Polígono da Maconha"

4. Disponível em https://cannabisamanha.com.br/wp-content/uploads/2019/07/artigo_sergiobarbosa.pdf

5. Disponível em https://recordtv.r7.com/reporter-record-investigacao/fotos/poligono-da-maconha-sertao-nordestino-reune-a-maior-concentracao-de-plantio-da-droga-no-pais-14092018

6. Em 16 de janeiro de 2017, A Anvisa registrou o primeiro medicamento à base de Cannabis sativa. A solução oral Mevatyl® é destinada ao tratamento clínico de pacientes não responsivos a medicamentos antiespásticos.

7. Fontes: Anuário da Segurança Pública (2021), Departamento Penitenciário Nacional (Depen) 

8. Levantamento do portal jornalístico Poder 360. Disponível em drogas-america-latina-26-mai-2023-1437x2048.png (1437×2048) (poder360.com.br)

9. Fonte: Anuário da Cannabis Medicinal no Brasil 2023 disponível em https://kayamind.com

 

10. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=947642

Vladimir Saboia

VIP Vladimir Saboia

Advogado especialista na área.

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