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Coisa julgada parcial e cumprimento de sentença: reafirmação de posicionamento diante do REsp 2.026.926

O presente ensaio visa revistar alguns estudos que foram realizados anteriormente, ligados ao tema coisa julgada progressiva e cumprimento de sentença (provisório e definitivo), especialmente após o resultado do julgamento ocorrido em abril/2023 (3ª Turma do STJ no RESp 2.026.926).

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Atualizado às 10:35

O ponto de partida do texto é a recente decisão da 3ª Turma do STJ, que serve de estímulo para retomada de algumas conclusões feitas desde a vigência da legislação processual anterior1, relativas à existência de múltiplos e variáveis momentos de formação de coisa julgada durante o andamento do processo, com reflexos no cumprimento de sentença e na fluência e objeto da ação rescisória.

De toda sorte, especialmente na vigência do CPC/15, passou-se discutir, com maior fôlego, a possibilidade de fracionamento do objeto litigioso, com múltiplas decisões de mérito e a possibilidade de formação da coisa julgada em vários momentos, especialmente nos casos de pedidos incontroversos.

Contudo, na vigência do CPC/73 existiam posicionamentos, inclusive no STJ,  contrários à possibilidade de formação da coisa julgada parcial (progressiva ou em capítulos), como se observa na seguinte passagem:

"É incabível o trânsito em julgado de capítulos da sentença ou do acórdão em momentos distintos, a fim de evitar o tumulto processual decorrente de inúmeras coisas julgadas em um mesmo feito" (REsp n. 736.650/MT, Relator o Ministro Antônio Carlos Ferreira, Corte Especial, DJe de 1/9/14)" (EDcl na Rcl 18565 / MS - Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze - 2ª Seção - J. em 9/12/15 - DJe 15/12/15)2.

Contudo, o CPC/2015 deu outro tratamento ao assunto. É importante, para a correta interpretação das variáveis conceituais que adiante serão apontadas,  fazer a leitura destes artigos do CPC/15: 354, parágrafo único, 356, 502, 503, 523, 524, 702, §7º, 966, §3º, 1008, 1013, §1º do CPC.

Não resta dúvida que a coisa julgada trata-se de fenômeno jurídico ligado a estabilidade processual em relação à capítulos decididos e incontroversos, gerando reflexos em institutos como o cumprimento de sentença e a ação rescisória.

Nos casos de amadurecimento precoce de um dos capítulos de mérito decididos (e não recorridos), é mister fazer algumas indagações: É possível o desmembramento da resolução do mérito, em relação a um dos pedidos, inclusive mitigando o dogma da unicidade do julgamento de mérito? A estabilização decorrente da coisa julgada pode ocorrer em vários momentos procedimentais? O cumprimento de decisão pode ser provisório e definitivo simultaneamente, desde que atinjam capítulos diferentes do mesmo julgado?

Realmente, pedido incontroverso é pedido reconhecido ou mesmo não impugnado, podendo ocorrer quando, havendo cumulação simples de pedidos, o réu impugna apenas um deles, ou em caso de recurso parcial. Acerca desta hipótese de resolução parcial de mérito, ainda no sistema processual anterior, se apresentou a seguinte situação:

"Apenas para melhor aclarar as ideias. Imagine-se uma demanda movida por A em face de B, com a cumulação simples de pedidos 1, 2 e 3. O réu, na contestação, impugna apenas o pedido 1 e 2, inclusive, suscitando fatos, não aproveitáveis ao pedido incontroverso, que devem ser objeto da fase instrutória. Por que não se permitir a antecipação do julgamento da própria tutela (do próprio pedido) envolvendo o n. 3? Imagine que fosse um balão onde existem três instrumentos pesados que dificultam o alcance da altitude ideal. Por que não se permitir que se retire do balão o peso que não será mais necessário, deixando apenas a bordo aqueles que ainda serão utilizados?"3

De fato, se um dos pedidos torna-se incontroverso por atitude do réu, deve o magistrado resolvê-lo imediatamente, e com isso diminuindo, em relação a este, o pesado ônus decorrente da demora da prestação jurisdicional.

Ademais, considerando que a incontrovérsia foi gerada em decorrência de atitude do próprio réu, necessária é a resolução imediata deste pedido incontroverso enquadrando-se nas disposições do art.  art. 356, I, do CPC/15, provocando, em caso de falta de irresignação recursal, a estabilidade com a formação da coisa julgada e abreviando o inicio do cumprimento deste capítulo decidido.

Aliás, os pontos ora apresentados trazem importantes consequências, uma vez que a estabilização decorrente da coisa julgada não ocorrerá apenas em um só momento, o que reflete na fluência do prazo decadencial para o ajuizamento da ação rescisória e na possibilidade de ser disparado o sistema de cumprimento (provisório e definitivo) em momentos diferenciados.

É mister observar que o art. 966, do CPC/15, ao consagrar o conceito de decisão de mérito como objeto da rescindibilidade, permite ao intérprete pugnar pelo cabimento da demanda desconstitutiva na hipótese em que o pronunciamento não é tecnicamente sentença, mas resolve parcialmente o mérito ou extingue parcialmente o processo com resolução de mérito e se enquadra em um de seus incisos. O sistema processual atual admite a possibilidade de rescindibilidade de partes de uma única decisão, nos termos do disposto no art. 966, §3º, do CPC/15.

Este dispositivo deve ser analisado, a meu ver, especialmente nos casos de interposição de recursos parciais (impugnação de partes de uma única decisão). Os capítulos autônomos decididos e não impugnados de um pronunciamento judicial podem, desde já e dependendo do caso concreto, ensejar o cumprimento definitivo, mesmo inexistindo efetivamente o trânsito em julgado total do decisum.

Demais a mais, outros capítulos da mesma decisão, em caso de pendência de recurso sem efeito suspensivo, ensejam o cumprimento provisório (art. 520, do CPC); ou seja, uma única relação processual pode estar, na fase recursal, no cumprimento provisório e também definitivo - a depender dos capítulos decididos e dos recursos interpostos.

No mínimo estes dispositivos do CPC demonstram que os conceitos de decisão, mérito, coisa julgada, efeito suspensivo e rescisória são dinâmicos, permitindo, de um lado, a formação da coisa julgada em vários momentos e, de outro, a possibilidade de cumprimento provisório e definitivo simultaneamente:

  • Arts. 354, parágrafo único, e 356, do CPC (extinção parcial e julgamento antecipado parcial do mérito)
  • Arts. 502 e 503, do CPC (coisa julgada como fenômeno ligado à decisão e não ao conceito de sentença).
  • Arts. 523 e 524, do CPC (cumprimento definitivo de decisão envolvendo quantia - parcela incontroversa).
  • Art. 702, §7º (embargos à ação monitória parciais, com constituição em titulo executivo judicial da parcela incontroversa).
  • Art. 966 e §3º (cabimento de rescisória em face de decisão de mérito e tendo por objeto apenas um capítulo do julgado).
  • Art. 1008, do CPC (efeito substitutivo do recurso limitado ao objeto recursal).
  • Art. 1013, §1º (efeito devolutivo do recurso limitado ao capítulo impugnado).

O STJ vem revistando estes temas, especialmente após a vigência da legislação processual atual.

No REsp 1.845.542, a 3ª Turma da Corte apreciou questão ligada à possibilidade de julgamento antecipado parcial de mérito pelos tribunais, assunto que foi objeto de análise específica em outro texto4. Transcrevo itens 3 e 4 da Ementa (REsp 1.845.542- Rel. Min. Nancy Andrighi - J. 11.5.21 - Dje 14.5.21):

"3. O art. 356 do CPC/15 prevê, de forma clara, as situações em que o juiz deverá proceder ao julgamento antecipado parcial do mérito. Esse preceito legal representa, portanto, o abandono do dogma da unicidade da sentença. Na prática, significa dizer que o mérito da causa poderá ser cindido e examinado em duas ou mais decisões prolatadas no curso do processo. Não há dúvidas de que a decisão interlocutória que julga parcialmente o mérito da demanda é proferida com base em cognição exauriente e ao transitar em julgado, produz coisa julgada material (art. 356, § 3º, do CPC/15).
4. No entanto, o julgador apenas poderá valer-se dessa técnica, caso haja cumulação de pedidos e estes sejam autônomos e independentes ou, tendo sido deduzido um único pedido, esse seja decomponível.

Além disso, é imprescindível que se esteja diante de uma das situações descritas no art. 356 do CPC/15. Presentes tais requisitos, não há óbice para que os tribunais apliquem a técnica do julgamento antecipado parcial do mérito. Tal possibilidade encontra alicerce na teoria da causa madura, no fato de que a anulação dos atos processuais é a ultima ratio, no confinamento da nulidade (art. 281 do CPC/15, segunda parte) e em princípios que orientam o processo civil, nomeadamente, da razoável duração do processo, da eficiência e da economia processual".

Em outro julgado, a mesma Turma concluiu que "a questão apreciada na decisão agravada e não impugnada nas razões do recurso não pode ser analisada por força da preclusão consumativa e da coisa julgada" (AgRg no AREsp 769.892/PR, 3ª Turma - Rel. Min. João Otávio de Noronha - J. 15/3/16 - DJe 29/3/16).

Já a 4ª Turma do Tribunal, no REsp 1909451 / SP (Rel. Min. Luis Felipe Salomão - J. em 23/3/21 - DJe 13/4/21), enfrentou situação ligada aos limites do efeito devolutivo e a consequência em relação ao capítulo decidido e não impugnado (art. 1.013, §1º, do CPC), afirmando que: "sobre o capítulo não impugnado pelo adversário do apelante, podendo a reforma eventualmente significar prejuízo ao recorrente, incide a coisa julgada. Assim, não há pensar-se em reformatio in pejus, já que qualquer providência dessa natureza esbarraria na res iudicata".

Resta abordar o julgado mencionado no início deste texto. Em abril/23, a 3ª Turma do Superior Tribunal  novamente debateu o tema recurso parcial e a formação da coisa julgada parcial/progressiva. Transcrevo os itens 5 a 8, da Ementa do Acórdão REsp 2.026.926 (Rel. Min. Nancy Andrighi - J. 25/4/23 - DJe 27.4/23):

"5. Quando não impugnados capítulos da sentença autônomos e independentes, estes transitarão em julgado e sobre eles incidirá a proteção assegurada à coisa julgada. Possibilidade de o mérito da causa "ser cindido e examinado em duas ou mais decisões prolatadas no curso do processo" (REsp 1.845.542/PR, 3ª Turma, DJe 14/5/2021).

6. A sistemática do CPC, ao albergar a coisa julgada progressiva e autorizar o cumprimento definitivo de parcela incontroversa da sentença condenatória, privilegia os comandos da efetividade da prestação jurisdicional e da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF/88 e 4º do CPC/15), bem como prestigia o próprio princípio dispositivo (art. 2º, do CPC/15).

7. Mostra-se possível o trâmite concomitante de cumprimento provisório, sobre o qual pende o julgamento de recurso sem efeito suspensivo (art. 520 do CPC/15), e cumprimento definitivo de parcela incontroversa do mesmo título judicial de condenação ao pagamento de quantia.

8. Desnecessidade de desmembramento do processo, sendo competente para processar ambos os cumprimentos de sentença o Juízo que decidiu a causa no primeiro grau de Jurisdição (art. 516, II, do CPC/15) - ainda que determinado órgão estadual tenha estabelecido, por motivos de conveniência, setores especializados. Viabilidade dos procedimentos seguirem em conjunto, desde que observada a exigência de caução pelo exequente para o cumprimento provisório da sentença (art. 520, IV, do CPC/15)".

Como se pode observar, o novo CPC e a sistematização da possibilidade de cisão da resolução de mérito com múltiplas consequências processuais também gerou a mudança de entendimento de Turmas da Corte da Cidadania.

É possível, portanto, a formação parcial e progressiva da coisa julgada, a existência de cumprimento provisório e definitivo no mesmo processo e a existência de múltiplas ações rescisórias com objetos diferentes e estabilizados pela coisa julgada também de forma progressiva.

A ação rescisória é cabível contra decisão (em sentido amplo) de mérito - seja efetivamente sentença, acórdão ou interlocutória - como expressamente consagrado no art. 966, do CPC/15. Esta observação serve para ratificar o aduzido em texto anterior em relação a algumas consequências práticas5 como:

  1. " a necessidade de se demonstrar, mediante certidão, o trânsito em julgado da resolução (quaisquer das três - sentença, interlocutória ou mesmo acórdão) de mérito;
  2. a possibilidade de conciliar o instituto do cumprimento definitivo de um pedido apreciado prematuramente com outro sequer transitado em julgado;
  3. possibilidade de coexistir a execução (cumprimento) provisória e definitiva na mesma relação jurídica processual, etc."

Os conceitos aqui discutidos, portanto, são dinâmicos e geram múltiplas consequências processuais, desafiando, ao intérprete, atenta análise para a adoção da melhor estratégia no caso concreto.

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1 Sobre o tema ver, dentre outros, o livro, de minha autoria, intitulado Coisa julgada progressiva & resolução parcial de mérito. Curitiba, Juruá, 2007, o artigo Tutela antecipada do pedido incontroverso: estamos preparados para a nova sistemática processual? Revista de Processo n. 116, São Paulo : Revista dos Tribunais, 2004 e o texto publicado na coletânea em homenagem ao professor José de Albuquerque Rocha (decisão interlocutória de mérito no projeto do novo CPC: reflexões necessárias. In O projeto do Novo Código de Processo Civil - Fredie Didier Jr, José Henrique Mouta e Rodrigo Klippel - organizadores, Salvador : Juspodivm, 2011, pp. 219-230.

2 Ainda no tema, ver: REsp 781923 / DF (2ª Turma/STJ - Rel. Min. Castro Meira - J. 21/08/2007 - DJ 31/08/2007).

3 ARAÚJO, José Henrique Mouta. Tutela antecipada do pedido incontroverso: estamos preparados para a nova sistemática processual? Revista de processo. n. 116. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 217.

4 https://www.conjur.com.br/2021-jul-31/araujo-julgamento-parcial-merito-pelos-tribunais-stj. Acesso em 30.11.2023.

5 Ver ARAÚJO, José Henrique Mouta. Decisão interlocutória de mérito no projeto do novo CPC: reflexões necessárias. In O projeto do Novo Código de Processo Civil - Fredie Didier Jr, José Henrique Mouta e Rodrigo Klippel (orgs), Salvador : Juspodivm, 2011, pp. 230.

José Henrique Mouta

VIP José Henrique Mouta

Mestre e Doutor (UFPA), com estágio em pós-doutoramento pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professor do IDP (DF) e Cesupa (PA). Procurador do Estado do Pará e advogado.

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