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A arbitrariedade no descredenciamento de dependentes do plano de saúde SulAmérica

A SulAmérica excluiu dependentes alegando critérios da Receita Federal, porém essa prática, mesmo contratual, pode ser considerada ilegal por desrespeitar leis de defesa do consumidor, planos de saúde e o princípio da boa-fé contratual, ao não considerar limites contratuais e adotar um comportamento contraditório.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Atualizado às 07:56

Nas últimas semanas, muitos usuários da SulAmérica foram surpreendidos com notificações da operadora, informando acerca da exclusão de dependentes dos contratos antigo, sob a alegação de que estes clientes já não mais se enquadrariam como dependentes, segundo critérios praticados pela Receita Federal nas declarações de Imposto de Renda.

No entanto, mesmo que eventualmente previsto em contrato, a prática que está sendo aplicada pela SulAmérica pode ser considerada ilegal, e afrontaria o CDC, a lei dos Planos de Saúde e, até, o Código Civil. Não se pode perder de vista que o exercício do direito à exclusão de dependente de plano de saúde deve respeitar não somente os limites contratuais, mas também o princípio da boa-fé contratual, que veda o comportamento contraditório.

Nos casos analisados, a SulAmérica aceitou tais usuários como dependentes, e assim permanecem ao longo de vários anos. Assim, essa condição se consolidou no tempo (supressio/suurectio). Portanto, a condição de dependente só veio a ser questionada pela SulAmérica após longos anos, de forma que o pagamento efetivado e recebido durante todos esses anos, bem como a própria prestação do serviço de cobertura de saúde, criou para os consumidores a legítima expectativa de permanência da relação contratual. E a SulAmérica, ao só agora questionar a existência de usuários aos quais recebeu como dependentes por tanto tempo, age incorretamente - sendo vedado pelo ordenamento jurídico brasileiro o venire contra factum proprium, ou seja, a vedação de comportamento contraditório, e que fere, na verdade, a boa-fé objetiva que deve permear a relação contratual.

É indispensável observar que a boa-fé objetiva possui algumas funções, como as de controle, de forma a exercer um papel limitador/moderador do exercício de direitos subjetivos, a partir do momento em que estes afrontarem a preceitos de probidade e lealdade, em estrita observância à clausula geral inscrita no artigo 422 do Cócigo Civil.

Segundo lecionou o jurista PONTES DE MIRANDA:

"a ninguém é lícito venire contra factum proprium, isto é, exercer direito, pretensão ou ação, ou exceção, em contradição com o que foi a sua atitude anterior, interpretada objetivamente, de acordo com a lei" (cf. Tratado de Direito Privado, Campinas: Bookseller, 2000, p. 64).

Não é justificável, portanto, que se desconsidere esses dependentes após um longo período de usufruto dessa condição no plano de saúde, especialmente para aqueles que aderiram ao plano antes da vigência da Lei de Planos de Saúde. A movimentação da SulAmérica ocorre décadas após o atingimento de eventual idade/condição limite, de forma que a continuidade do contrato criou para os consumidores a legítima expectativa de permanência da relação contratual.

Adicionalmente, a lei de Planos de Saúde estipula apenas duas situações para a rescisão contratual de planos dessa natureza, tornando tal conduta incompatível com as disposições legais em vigor.

Portanto, considerando o largo espaço de tempo tempo transcorrido para eventual exclusão dos dependentes, a lealdade e a boa-fé devem se fazer presentes nesta relação contratual, de forma que a exclusão dos dependentes do plano de saúde é entendida como abusiva, ao frustrar a legítima expectativa daqueles.

Este, inclusive, é o entendimento dos diversos Tribunais brasileiros, conforme:

PLANO DE SAÚDE. MANUTENÇÃO DE DEPENDENTE APÓS A MAIORIDADE. Pedido de manutenção de filho na condição de dependente de seu genitor após completar 25 anos de idade. Sentença de procedência. Apelo da ré. Previsão contratual de exclusão dos filhos maiores de 25 anos do plano de saúde contratado pelo genitor. Inércia da operadora por longo período após o dependente completar 25 anos idade. Expectativa legítima do autor de ser mantido na apólice de sue genitor, mediante pagamento das mensalidades. Supressio/surrectio. Exclusão de dependente após período prolongado de tempo que caracteriza comportamento contraditório contrário à boa-fé objetiva (venire contra factum proprium). Precedentes. Ação procedente. Imposição de sanção por litigância de má-fé em razão da interposição de embargos de declaração contra a sentença. Inocorrência de abuso de direito de recorrer ou de qualquer das condutas elencadas no art. 80 do CPC. Penalidade afastada. Recurso parcialmente provido. (TJ/SP - AC: 10278682920208260100 SP 1027868-29.2020.8.26.0100, Relator: Mary Grün, Data de Julgamento: 31/3/21, 7ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 31/3/21)

APELAÇÃO CÍVEL. RELAÇÃO DE CONSUMO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. PLANO DE SAÚDE. EXCLUSÃO DOS AUTORES POR TEREM ATINGIDO A IDADE LIMITE DE 25 ANOS PARA FIGURAREM COMO DEPENDENTES. EXCLUSÃO DOS BENEFICIÁRIOS DÉCADAS APÓS O ATINGIMENTO DA IDADE LIMITE. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ CONTRATUAL. PROIBIÇÃO DE COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO (NEMO POTEST VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM). CONDUTA ABUSIVA DA RÉ, QUE FRUSTA A LEGÍTIMA EXPECTATIVA DOS APELANTES. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA QUE SE REFORMA.

  1. Cinge-se a controvérsia recursal quanto à regularidade da exclusão dos autores, ora apelantes, do plano de saúde da ré, por terem atingido a idade limite de 25 anos de idade para figurarem como dependentes no plano, ocorrendo a exclusão dos beneficiários décadas após o atingimento da idade limite.
  2. Trata-se de relação de consumo sobre a qual tem incidência as normas do CDC, vez que presentes in casu os requisitos legais subjetivos (artigos 2º e 3º da lei 8078/90) e objetivos (artigo 3º, § 2º, do mesmo diploma legal).
  3. Inicialmente, pontue-se que a manutenção dos autores no plano de saúde da apelada, após o atingimento da idade limite de 25 anos de idade, é fato incontroverso, argumentando a ré, em sua contestação, que, após auditoria interna, constatou-se um equívoco de parametrização do contrato, devido ao qual não ocorreu a exclusão automática dos dependentes do titular ao atingir a idade limite.
  4. Pauta-se a ré apelada em permisso contratual, qual seja, a cláusula 3.3.2, que prevê a exclusão do dependente após completar 25 anos de idade, para defender a regularidade de sua conduta, informando que os apelantes tiveram ciência desde da assinatura da adesão ao plano. Melhor sorte, contudo, não assiste à apelada.
  5. Não se pode perder de vista que o exercício do direito à exclusão de beneficiário de plano de saúde por ter atingido a idade limite para figurar como dependente deve respeitar não somente os limites contratuais, mas também o princípio da boa-fé contratual, que veda o comportamento contraditório.
  6. É de curial sabença que a boa-fé objetiva possui algumas funções, como a de controle, exercendo o papel limitador do exercício de direitos subjetivos, quando estes consistirem em afronta ao parâmetro de probidade e lealdade, em estrita observância à clausula geral inscrita no artigo 422 do CC/02.
  7. A proibição de comportamento contraditório (nemo potest venire contra factum proprium) é modalidade de abuso de direito que surge da violação ao princípio da confiança ¿ decorrente da função integrativa da boa-fé objetiva ( CC, art. 422). Em outras palavras, age com abuso de direito (art. 187 do CC) aquele que manifesta pretensão ou defesa em contradição a ato próprio anterior, malferindo a expectativa e confiança nele depositadas por terceiros.
  8. No caso, o comunicado informando acerca da exclusão dos beneficiários dependentes do plano, por terem atingido a idade limite de 25 anos de idade, só foi encaminhado décadas após o atingimento da idade limite, quando os autores já contavam com 42 e 36 anos. Ora, o pagamento efetivado e recebido durante todos esses anos criou para os consumidores a legítima expectativa de permanência da relação contratual.
  9. E, neste sentido, aplica-se a vedação ao venire contra factum proprium, ou seja, a vedação de comportamento contraditório por parte de um dos contratantes, que fere, na verdade, a boa-fé objetiva que deve permear a relação contratual. Não se olvide que o comportamento duradouro de uma das partes faz surgir para a outra direito que não foi originariamente pactuado.
  10. Exclusão dos apelantes do plano de saúde que se figura abusiva, posto que frusta a legítima expectativa daqueles. Precedentes desta Corte de Justiça.
  11. Provimento do recurso para, reformando a sentença de improcedência, julgar procedente o pedido, condenando a ré apelada na obrigação de fazer, consistente na manutenção dos autores apelantes no plano de saúde contratado.

(TJ/RJ - APL: 00009063320208190212, Relator: Des(a). MÔNICA MARIA COSTA DI PIERO, Data de Julgamento: 23/11/21, OITAVA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 26/11/21)

APELAÇÃO CÍVEL. OBRIGAÇÃO DE FAZER. PLANO DE SAÚDE. PERMANÊNCIA DE FILHO NA CONDIÇÃO DE DEPENDENTE APÓS ATINGIDA A IDADE DE 25 ANOS. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. RECURSO DA OPERADORA DE PLANO DE SAÚDE BUSCANDO A IMPROCEDÊNCIA. EM QUE PESE HAVER PREVISÃO CONTRATUAL NO SENTIDO DA AUTOMÁTICA EXCLUSÃO DOS FILHOS DEPENDENTES QUE COMPLETAREM 25 ANOS, CLÁUSULA 3.3.2, A OPERADORA DE PLANO DE SAÚDE MANTEVE A COBERTURA POR LARGO PRAZO, ENVIANDO NOTIFICAÇÃO ACERCA DA EXCLUSÃO QUANDO OS DEPENDENTES TINHAM ATINGIDO A IDADE DE 37 E 40 ANOS. VEDAÇÃO AO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM CONFIGURADA A CONDUTA DO PLANO DE SAÚDE COMO CONTRADITÓRIA. CONTRATO QUE FOI MANTIDO EM RELAÇÃO AOS BENEFICIÁRIOS NA CONDIÇÃO DE DEPENTENTES, GERANDO LEGÍTIMA EXPECTATIVA. SURRECTIO. EXCLUSÃO DE COBERTURA QUE SE CONFIGURA COMO ABUSIVA. SENTENÇA QUE MERECE SER MANTIDA. HONORÁRIOS RECURSAIS MAJORADOS. DESPROVIMENTO DO RECURSO. (TJ/RJ - APL: 0061924-09.2020.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des (a). NORMA SUELY FONSECA QUINTES - Julgamento: 17/8/21 - OITAVA CÂMARA CÍVEL)

DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. PLANO DE SAÚDE. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA - NÃO MERECE GUARIDA - CONTRATADA. CANCELAMENTO INDEVIDO. CONDUTA ILÍCITA, ABUSIVA E UNILATERAL PRATICADA PELA OPERADORA DE PLANOS DE SAÚDE. DANOS MORAIS CONFIGURADOS. MANUTENÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO FIXADO NA SENTENÇA - R$ 4.000,00 PARA CADA APELADO. APELAÇÃO DESPROVIDA.

  • De acordo e com o art. 18 da Resolução 195/09 ANS, o usuário titular é o responsável pelo pedido de exclusão dos dependentes no plano de saúde, sendo vedada essa exclusão pela operadora do plano, salvo nas hipóteses de fraude ou perda de vínculo com o titular;
  • No caso dos autos, não houve qualquer solicitação das partes Apeladas para exclusão do plano;
  • O pacto realizado entre as partes tem por finalidade a manutenção na condição de dependente do plano de saúde daquele que tenha com o titular uma relação de dependência econômico/financeira e o pagamento de prestação de saúde enseja a presunção de dependência entre o casal;
  • Apelação desprovida.

(TJ/PE - AC: 5338330 PE, Relator: Itabira de Brito Filho, Data de Julgamento: 14/11/19, 3ª Câmara Cível, Data de Publicação: 28/11/19)

Diante desse cenário, é importante ressaltar que a legislação brasileira protege os direitos do consumidor, inclusive no que diz respeito a contratos de planos de saúde. O Código de Defesa do Consumidor estabelece que as cláusulas contratuais devem ser interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor, visando a proteção de seus interesses.

Além das questões legais, a retirada de dependentes de contratos antigos pela SulAmérica levanta questionamentos éticos relacionados ao princípio da boa-fé contratual, princípio que deve nortear as relações contratuais, exigindo que as partes ajam de maneira honesta e transparente.

A retirada de dependentes, sem uma justificativa clara e sem oferecer alternativas razoáveis aos beneficiários, pode ser interpretada como uma violação desse princípio. A boa-fé não se limita apenas à observância estrita da lei, mas também engloba a conduta ética e leal entre as partes contratantes.

Diante do exposto, a retirada de dependentes de contratos antigos pela SulAmérica suscita preocupações legais e éticas, podendo ser passível de revisão. Os usuários afetados por essa decisão podem buscar a revisão judicial, amparados pelo Código de Defesa do Consumidor e pelo princípio da boa-fé contratual, além da vedação ao venire contra factum proprium. Os tribunais têm se manifestado em favor dos consumidores em situações semelhantes, reconhecendo o direito à continuidade dos contratos nas condições originalmente pactuadas.

Evilasio Tenorio

VIP Evilasio Tenorio

Advogado especialista em Direito da Saúde e Direito Civil. Titular do TSA - Tenorio da Silva Advocacia, escritório considerado referência nacional na defesa dos usuários de planos de saúde e do SUS.

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