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Habeas corpus como substitutivo de revisão criminal

O habeas corpus, protegendo a liberdade e o devido processo legal, é um remédio legal de alta importância, porém, mesmo admitindo sua aplicação após o julgamento final, prevalece a preferência pela revisão criminal como meio primordial de contestação, segundo o entendimento predominante.

domingo, 10 de dezembro de 2023

Atualizado em 8 de dezembro de 2023 13:28

A finalidade de proteção que recai sobre o habeas corpus, qualificado como instrumento de proteção da liberdade, é uma ação de superlativa dignidade constitucional, permitindo seu uso para questionar a violência à liberdade da pessoa e o descumprimento do devido processo legal (due process of law). E o remédio heroico, dado seu inigualável DNA histórico, se mostra merecedor de toda essa efetividade. Principalmente para situações de fungibilidade, ou como muito bem cunhou o saudoso ministro aposentado do STF José Carlos Moreira Alves, como situações de concorrência eletiva de meios processuais.

Entretanto, em que pese entender admissível a impetração de habeas corpus como substitutivo idôneo da revisão criminal, isto é, impetrado após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, via de regra, ainda prevalece o entendimento majoritário de que a questão deve ser desafiada por meio da ação autônoma de impugnação de revisão criminal (artigos 621 ao 631 do Código de Processo Penal). Explico.

O STJ, a quem compete, por força constitucional, uniformizar a jurisprudência e interpretar a lei federal de natureza infraconstitucional, entende em sua jurisprudência majoritária pela inadmissibilidade de se impetrar HC como substitutivo de revisão criminal1, sob o fundamento de que as hipóteses de cabimento do writ são restritas, não se admitindo que o remédio constitucional seja utilizado em substituição a apelos ordinários (apelação, agravo em execução e o recurso especial), tampouco como sucedâneo de revisão criminal, reservada a impetração de HC apenas para os casos específicos de ilegalidade flagrante, abuso de poder ou teratologia na decisão da autoridade coatora (isto é, decisões que carregam erros lógicos ou evidentes do ponto de vista técnico jurídico).

Assim, para os casos de ilegalidade (matéria de direito) em que é desnecessário o revolvimento probatório do caso, a atual jurisprudência tem, pontualmente, admitido o uso do habeas corpus para desconstituir a decisão combatida, sob a ótica do princípio da fungibilidade entre o writ e a revisão criminal, tendo em vista a natureza de serem ambas ações autônomas de impugnação e, além do mais, se a argumentação for a mesma a embasar ambas as ações.

Em fevereiro deste ano, no HC 761.799/SP, a Sexta Turma do STJ em um caso de erro na dosimetria da pena pelo tribunal de origem, admitiu, por maioria, a utilização da ação de habeas corpus como substitutivo de revisão criminal quando a discussão somente envolver ameaça à liberdade do réu e não depender de análise de provas2.

Cito, também, como exemplo dessa possível fungibilidade, a decisão tomada no HC 613.664/SP, onde se pugnou por nova dosimetria da pena do paciente pelo STJ, diante da aplicação indevida de bis in idem pelas instâncias ordinárias, eis que foi utilizada a quantidade e/ou qualidade da droga tanto na fixação da pena-base como na aplicação da minorante prevista no artigo 33, § 4º, da lei Federal 11.343/06, configurando dupla valoração inadmissível3. O voto do relator assim constou do julgado: "[A]nte o exposto, concedo a ordem para reconhecer o indevido bis in idem e determinar que o TJ/SP realize nova dosimetria da pena, considerando a natureza e a quantidade do entorpecente em apenas uma etapa do critério trifásico ". (STJ, HC 613.664/SP, rel. min. Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 28.09.2020).

Pode-se dizer então, que tradicionalmente, a Sexta Turma do STJ vem assentando que a previsão legal da revisão criminal como via específica de impugnação de sentença penal condenatória transitada em julgado não inviabiliza a impetração de habeas corpus (AgRg no Habeas Corpus 841.885/SP), fixando o seguinte:

[a] previsão legal de via específica de impugnação - no caso, a revisão criminal -, não inviabiliza a impetração de habeas corpus na origem para avaliar a legalidade de ato que consubstancia restrição à liberdade de locomoção e que verse unicamente sobre questão de direito, mormente porque o Tribunal de Justiça local é o Órgão competente para a análise do pedido revisional.

No STF, a matéria também já foi oportunamente discutida no HC 139.741/DF, Rel. Min, Dias Toffoli, Segunda Turma, julgado em 12.4.19 e no RHC 146.327/RS, rel. min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 27.2.18.

Os entendimentos arrimados na tradicional perspectiva ampliativa do instituto do habeas corpus que desde a batuta do ilustre Ruy Barbosa se esforçam para que esta ação constitucional seja admitida como substitutiva da revisão criminal nos casos cuja ilegalidade da decisão esteja líquida e certa, isto é, perceptivelmente apta para afastar ou modificar a decisão atacada não apenas nos casos de constatação de ilegalidade flagrante, abuso de poder ou teratologia da decisão do coator.

É dizer, mesmo que o caso possa denotar a necessidade de formalização de recurso próprio (ex. REsp ou RE) ou de ação de revisão criminal pela defesa, nada impede que, de ofício, seja constatada a existência de ilegalidade que importe em ofensa à liberdade de locomoção do paciente, ainda mais, a tratar de matérias de mera constatação pelo tribunal, e também pelo próprio processamento da ação de habeas corpus, visivelmente mais célere que a tramitação da ação de revisão criminal (artigo 649 do CPP). Dito de outro modo, deve-se prezar, inclusive, pela impetração de habeas corpus em razão de sua celeridade para casos de processos transitados em julgado e onde subsiste a prisão da pessoa condenada, para casos de pena não extinta ou quando o constrangimento ilegal for passível de verificação de plano, por mais complexa e profunda que seja a tese jurídica, sem que isso possa ser considerado pelo tribunal como impropriedade da via eleita (cfr. RHC 146.327/RS).

Para estes casos em que o habeas corpus é utilizado como sucedâneo de instituto próprio ou de instituto supostamente mais adequado, a ação de habeas corpus assume uma natureza de verdadeira ação de caráter constitutivo-negativo, apta, portanto, a invalidar a coisa julgada criminal nos casos de matérias de mera constatação. Isto é, passíveis de verificação com as provas colacionadas já com a impetração da ordem4.

Corretamente, alguns autores não medem esforços para emplacar uma visão prática das inúmeras situações em que o habeas corpus serve de último bastião para casos supostamente perdidos (transitados em julgado):

Não é infrequente que após o trânsito em julgado de uma condenação, não raro por conta de um novo advogado, descubra-se constrangimento ilegal decorrente ou da falta de justa causa ou de nulidade. Enquanto a pena não estiver extinta é cabível o habeas corpus, fazendo-se as vezes de revisão criminal.5

Dentro do espectro da fungibilidade entre ações, tendo em vista a natureza de serem ambas ações autônomas de impugnação, ainda mais se a argumentação for a mesma a embasar ambas as ações e elas estejam identificadas com a proteção do devido processo legal (dentre o qual está garantido a liberdade de ir vir e ficar, direta e indireta) a que se submete o jurisdicionado.

Defendo ser amplamente admissível pelos tribunais a conversão do writ em revisão criminal (sem a extinção do processo, portanto) para casos em que a Corte entenda existir a necessidade de uma cognição mais ampla, com o reexame do conjunto fático-probatório, que extrapole a via do habeas corpus para que se possa chegar à conclusão contrária ao que foi decidido pelas instâncias ordinárias.

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1 Nesse sentido: Precedentes STJ: AgRg no HC 339.114/SP, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, julgado em 02.06.2016, DJe 16.06.2016; HC 345.732/GO, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 17.03.2016, DJe 31.03.2016; HC 145.026/SP, rel. Min. Lázaro Guimarães (desembargador convocado do TRF 5ª Região), Quinta Turma, julgado em 08.03.2016, DJe 15.03.2016; HC 206.847/SP, Rel. Ministro Néfi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 16.02.2016, DJe 25.02.2016; HC 279.716/SP, rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 01.09.2015, DJe 08.09.2015; AgRg no HC 300.699/SP, rel. Min. Felix Fischer, Quinta Turma julgado em 30.06.2015, DJe 03.08.2015.

2 Caso noticiado aqui pela Conjur: https://www.conjur.com.br/2023-fev-14/cabe-hc-transito-julgado-ausente-revisao-criminal/ Desembargador convocado do TRF 5ª Região, julgado em 08.03.2018. Nesse mesmo sentido: STJ, HC n. 206.843/SP, Sexta Turma, rel. min. Néfi Cordeiro, julgado em 16.02.2016).

3 Sobre essa inadmissibilidade ver: STF, Repercussão geral no ARE n. 666.334/AM, rel. min. Gilmar Mendes, Plenário, julgado em 01-04-2014.

4 Nesse sentido: STF, HC 143.511/SC, rel. min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão: min, Roberto Barroso, Primeira Turma, julgado em 16.10.2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-025 DIVULG 07.02.2019 PUBLIC 08.02.2019; HC 141.375/MG, rel. min. Marco Aurélio, rel. p/ Acórdão: min. Roberto Barroso, Primeira Turma, julgado em 02.10.2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-230 DIVULG 26.10.2018 PUBLIC 29.10.2018; HC 142.083/SP, rel. min. Marco Aurélio, rel. p/ Acórdão: min. Roberto Barroso, Primeira Turma, julgado em 02.10.2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-221 DIVULG 16.10.2018 PUBLIC 17.10.2018).

5 TORON, Alberto Zacharias. Habeas corpus, ob. cit., p. 326.

Diego Renoldi Quaresma de Oliveira

VIP Diego Renoldi Quaresma de Oliveira

Advogado criminal, professor, palestrante e autor de livros e artigos sobre Direito Penal, Direito Processual Penal e liberdade de expressão.

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