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Dignidade menstrual e políticas públicas: a distribuição dos absorventes pelo Programa Farmácia Popular em 2024 é o espelho da desigualdade estrutural

Analisando a distribuição de absorventes pelo programa Farmácia Popular, a especialista discute como esta medida tardia lança luz sobre as desigualdades de gênero e estruturais no Brasil.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Atualizado às 08:36

Em meio aos debates atuais sobre igualdade e justiça social no Brasil, emerge uma questão fundamental, porém frequentemente negligenciada: a pobreza menstrual. Esta realidade, profundamente enraizada nas estruturas socioeconômicas do país, vai além de um mero obstáculo à saúde e dignidade feminina; ela é um reflexo pungente das desigualdades sociais e raciais que permeiam nossa sociedade. Além disso, a elevada tributação de absorventes íntimos, um produto essencial para a higiene e saúde das mulheres, coloca um peso a mais sobre os ombros das mulheres mais vulneráveis, muitas das quais são pretas e pardas, amplificando as disparidades existentes.

Dados do IBGE e da UNICEF revelam uma realidade preocupante: muitas mulheres e meninas no Brasil, envoltas em uma luta diária contra a pobreza e exclusão, enfrentam barreiras significativas para acessar produtos básicos de higiene menstrual. Esta situação alarmante se agrava em contextos de pobreza extrema e vulnerabilidade social, pois o acesso a esses produtos não é apenas uma questão de conforto, mas sim de saúde básica, higiene e igualdade de oportunidades.

Neste cenário, a recente iniciativa do Ministério da Saúde de incorporar absorventes ao programa Farmácia Popular é um passo louvável e necessário. No entanto, é imperativo refletir sobre as raízes profundas e as complexidades desta questão, reconhecendo que a pobreza menstrual é apenas um sintoma de problemas sociais e econômicos mais amplos, que denunciam uma estrutura originalmente excludente.

A iniciativa do governo brasileiro simboliza uma resposta tangível à questão da pobreza menstrual. O programa Farmácia Popular, que tem sido um pilar no fornecimento de medicamentos essenciais a preços acessíveis, agora se expande para abordar uma necessidade básica de saúde feminina, há muito negligenciada. Os dados do Ministério da Saúde ilustram a amplitude desse programa, evidenciando seu papel indispensável no atendimento às camadas mais pobres da população. A inclusão dos absorventes, portanto, é mais que uma mera adição a uma lista de produtos; ela representa uma mudança de paradigma na forma como a saúde feminina é percebida e tratada nas políticas públicas.

Esta política assistencial é um reconhecimento tardio, mas essencial, da importância do acesso à higiene menstrual. O debate sobre a pobreza menstrual ganhou força legislativa no Brasil em meados de 2020, culminando no Programa de Proteção e Promoção à Saúde Menstrual, lei 14.214/21, e, mais recentemente, na Reforma Tributária - EC 132 -  que possibilitou um regime diferenciado para produtos de saúde menstrual.

A eficácia dessa medida, contudo, transcende a simples disponibilização de absorventes. Ela se enraíza na forma como será implementada em todo o território nacional, demandando uma logística bem planejada e uma abordagem que respeite as particularidades de cada região. Além disso, é imprescindível que a distribuição dos absorventes seja acompanhada de programas educativos abrangentes sobre saúde menstrual, que desfaçam tabus e elevem a conscientização geral sobre essa questão fundamental.

No entanto, a luta pela dignidade menstrual é um reflexo de uma questão mais ampla - a desigualdade de gênero sistêmica que permeia a sociedade. A demora na implementação de políticas eficazes para combater a pobreza menstrual é um testemunho das barreiras persistentes que as mulheres enfrentam. Esta lacuna na política de saúde pública revela não apenas uma falha em reconhecer as necessidades específicas das mulheres, mas também um descompasso na compreensão dos impactos sociais e econômicos da pobreza em sentido amplo.

Não há dúvidas que a decisão do Ministério da Saúde de incluir absorventes no programa Farmácia Popular é um marco histórico nas políticas públicas. Entretanto, esta medida também nos convida a uma reflexão mais profunda sobre os obstáculos persistentes no caminho para alcançar a igualdade de gênero: é essencial reconhecer que enquanto o acesso a produtos de higiene menstrual é um passo fundamental, ele é apenas um dos muitos aspectos de um desafio maior relacionado aos direitos das mulheres. A eficácia dessa política depende de sua integração em uma estratégia mais ampla, que aborde os entraves que impedem a promoção material da igualdade de gênero em todos os aspectos da sociedade.

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Ministério da Saúde. Campanha Nacional do Programa Farmácia Popular. Ministério da Saúde, [S.l.], 2023. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/campanhas-da-saude/2023/farmacia-popular. Acesso em: 22 jan. 2024.

UNICEF. Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos. UNICEF, [S.l.], [s.d.]. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/relatorios/pobreza-menstrual-no-brasil-desigualdade-e-violacoes-de-direitos. Acesso em: 22 jan. 2024.

Senado Federal. O que é pobreza menstrual e por que ela afasta estudantes das escolas. Senado Notícias, Brasília, DF, jul. 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2021/07/o-que-e-pobreza-menstrual-e-por-que-ela-afasta-estudantes-das-escolas. Acesso em: 22 jan. 2024.

Ministério da Saúde. Ministério da Saúde disponibiliza absorventes pelo Farmácia Popular. Ministério da Saúde, Brasília, DF, jan. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2024/janeiro/ministerio-da-saude-disponibiliza-absorventes-pelo-farmacia-popular. Acesso em: 22 jan. 2024.

CNN Brasil. Produtos para saúde menstrual e dispositivos para PCD vão ter alíquota reduzida na reforma tributária. CNN Brasil, São Paulo, SP, 06 jul. 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/noticias/produtos-para-saude-menstrual-e-dispositivos-para-pcd-vao-ter-aliquota-reduzida-na-reforma-tributaria/. Acesso em: 22 jan. 2024.

Lívia Lucca

Lívia Lucca

Advogada e consultora tributária. Mestre em Direito Público/PUC Minas. Pesquisadora sobre os direitos das mulheres, tributação e gênero. Especialista em compliance de gênero.

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