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O erro de se vincular Al Capone à lavagem de dinheiro

A vinculação de Al Capone com lavagem de dinheiro é um mito, uma construção romântica. A expressão ganhou destaque durante a Lei Seca nos EUA, enriquecendo organizações criminosas, mas sua associação precisa ser entendida no contexto histórico do Direito Penal Econômico.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Atualizado às 09:10

Há uma vinculação da figura de Al Capone1 (e de toda a máfia de Nova York e de Chicago do primeiro quartel do século passado) com o delito de lavagem de dinheiro (ou de capitais, se assim preferir)2, onde supostamente, o dinheiro obtido com a prática de crimes era investido em negócios de legítimos como a prestação de serviços de lavanderia por meio de lavadoras de roupas automáticas (coin- operated laundromats). Entretanto, essa vinculação com a lavagem de dinheiro não passa de mito, sendo uma construção romântica desses dois temas, por assim dizer, mas que não pode ser confundida por aqueles que atuam com a linha do Direito Penal Econômico3. Explico.

Muitos autores definem que tanto o conceito quanto a expressão lavagem de dinheiro se tornaram usual quando organizações criminosas como a de Al Capone enriqueceram na época da Lei Seca nos EUA4, onde se proibiu por meio do "The National Prohibition Act" (também conhecido como Volstead Act) de qualquer tipo de fabricação e comercialização de bebidas cujo teor alcoólico fosse superior a 0,5% (com vigência de 1920 a 19335). Uma das maiores consequências da edição desta lei foi o incremento da estrutura e do poder das organizações criminosas na época6.

Sobre a prática econômico-financeira da lavagem de dinheiro, ela pode ser resumidamente definida como o conjunto de operações realizado com a finalidade de fazer com que o dinheiro obtido ilegalmente mediante a prática de crimes ("dinheiro sujo") passe por uma série de transações para que ao final, desvinculado do "possuidor originário" e da sua origem, pareça ter sido obtido de maneira legal ("dinheiro limpo").

Existem três estágios em qualquer lavagem de dinheiro (também chamada de branqueamento de capitais) que podem ser classificados como: i. colocação (placement); ii. ocultação ou mascaramento (layering) e, iii. integração (integration)7.

Desse modo, em termos práticos, primeiramente o capital ilícito é introduzido sorrateiramente (as possibilidades são enormes e usualmente o primeiro estágio da lavagem de dinheiro é realizado mediante o uso de empresas de fachada, offshores, por meio dos chamados fake invoices, segredo bancário etc.) no sistema financeiro. Uma vez introduzido como ativo no sistema financeiro, o capital é colocado em uma série de transações (movimentações dentro e fora do país) para que haja o mascaramento (ou ocultação) e a desvinculação da sua origem criminosa para que o capital ganhe aparência de "dinheiro limpo". Por fim, integrado no sistema financeiro global por meio dessas transações financeiras, o capital pode ser normalmente utilizado pelo agente como se fosse um produto lícito para aquisição de bens e ativos como imóveis, veículos, iates, aviões, valores mobiliários, empresas e uma infinidade de outras aquisições.

Muito embora pese o fato de Al Capone ter controlado sindicatos de trabalhadores e outras associações de classe com o propósito de assegurar as operações conquistadas por sua organização criminosa e ganhado muito dinheiro ilícito com suas atividades criminosas8, tais condutas não poderiam (e não podem) ser enquadradas como atividades típicas (e operativas) de lavagem de dinheiro (e seus estágios)9.

Primeiro, porque não havia razão para isso. Não existia nem o conceito de lavagem de dinheiro nem sua criminalização. Não havia qualquer norma de prevenção à lavagem de dinheiro (leis antilavagem ou Convenções como a de Viena de 1988, a Convenção de Estrasburgo de 1990 ou a Convenção de Palermo de 2000), teoria da cegueira deliberada (wilful blindness), ou agências governamentais de inteligência financeira como o Grupo de Ação Financeira Internacional - GAFI10. Na prática, ninguém (nem o Governo) se importava com quanto dinheiro você colocou em sua conta, desde claro, você pagasse os impostos decorrentes. Conforme explica Jeffrey Robinson11, até meados dos anos 1960, a prática usual da máfia como um todo era enviar o dinheiro não rastreado pelo o Internal Revenue Service (IRS)12, para o exterior por uma questão bem simples: o capital que o IRS não conhecia, não era tributado13. Com efeito, sob essa premissa, buscou-se, então, maneiras de esconder o dinheiro ilícito do fisco (sonegação fiscal) e uma das formas encontradas foi a mais óbvia, a de enviar o dinheiro ilícito para paraísos fiscais (tax haven) - que estavam iniciando suas operações de offshores - por meio de contas bancárias numeradas na Suíça, Cuba (antes da Revolução Cubana de 1959) e posteriormente nas Bahamas e Ilhas Cayman etc. Países que até os dias de hoje são pertencentes à "indústria de sigilo financeiro" (financial secrecy)14.

Segundo. Al Capone jamais usou (ou ouviu) a expressão lavagem de dinheiro (Money laundering). A expressão somente apareceu pela primeira vez nos jornais dos EUA em abril do ano de 1973, época em que ocorreu o famoso escândalo de Watergate e não teve qualquer ligação com Al Capone e as máfias de Nova York e de Chicago15.

Terceiro. Foi apenas no ano de 1986 que o primeiro país, no caso os EUA, por meio do Money Laundering Control Act, que criminalizou a prática da lavagem de dinheiro. 39 anos após a morte de Al Capone em 1947.

É dizer, não resta dúvida de que nunca foi colocado em prática por Al Capone (ou pelas máfias americanas até os anos de 1970) os ciclos da lavagem de dinheiro (colocação ocultação e integração), e, aliás, o esquema de Capone nem era sofisticado o bastante porque simplesmente não precisava ser.  A fundamental preocupação de Al Capone e da máfia naquela época era a mera evasão fiscal, não existindo qualquer evidência de procedimentos de lavagem de capitais, mesmo que básicos, pois seria um esforço absolutamente desnecessário ante a ausência criminalização da conduta na época.

Portanto, despreocupado em inserir o dinheiro obtido ilicitamente em ciclos de transações para ter aparência de licitude ao final, Al Capone simplesmente investia o dinheiro obtido ilicitamente diretamente na compra de negócios legítimos (lojas, fábricas, prestação de serviços etc.)16 Atividades estas nem um pouco relacionadas com a lavagem de dinheiro.

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1 Alphonse Gabriel Capone, ou simplesmente Al Capone foi um dos chefes da máfia na Cidade Estadunidense de Chicago, Il nos anos 20 e 30 do século passado e supostamente os milhões de dólares obtidos por Al Capone provenientes de negócios ilícitos como prostituição, jogos, extorsão, violações das leis de proibição do álcool foram investidos em negócios legítimos com a aquisição de diversas lavanderias que detinham máquinas lavadoras de roupas e tecidos alimentadas por moedas (coin - operated) por toda a cidade de Chicago. A esse respeito vários autores afirmam que foi a partir dessas lavandeiras que a mídia e as autoridades da época cunharam a expressão adotada até hoje: Money Laundering. Ver: ABADINSKY, Howard Organized Crime, ob. cit., p. 60; MARENGO Federico. Aspectos Generales del Lavado de Activos. Revista Pensamiento Penal. nov. de 2014. Disponível em: http://www.pensamientopenal.com.ar/system/files/2014/12/doctrina28927.pdf.

2 Há autores que também propõe a denominação "lavagem de ativos". Nesse sentido. CALLEGARI, André Luis et all. "Breve considerações notações sobre a lei de lavagem de dinheiro". In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 92. São Paulo. Revista dos Tribunais. Setembro 2011, p. 247. Mesmo concordando com o professor quanto ao "termo mais adequado" neste artigo utilizarei a expressão lavagem de dinheiro pelo fato de se tratar do uso mais comum pela doutrina nacional e estrangeira.

3 Um dos autores que se equivoca quanto a estes fatos ao dizer que a expressão lavagem de dinheiro decorre da máfia dos anos 30 e de Al Capone é MORO, Sérgio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. Saraiva. 2010.

4 Também chamada em inglês de Prohibition ou "the Great Experiment".

5 ABADINSKY, Howard Organized Crime, 9 ed. Wadsworth, Cengage Learning, Belmont, 2010, p. 58. A Lei Seca foi revogada em 05 de dezembro de 1933.

6 ABADINSKY, Howard Organized Crime, ob.cit., p. 61.

7 Para aprofundamento sobre o tema lavagem de dinheiro e seus três estágios ver: Oliveira, Diego Renoldi Quaresma de. Os três estágios da lavagem de capitais. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-dez-31/os-tres-estagios-da-lavagem-de-capitais/.

8 Cfr. ABADINSKY, Howard Organized Crime, ob. cit., p. 117.

9 Na época em que controlava a máfia de Chicago, Al Capone foi sentenciado a pena de 11 anos pela prática do crime de tax evasion (sonegação fiscal) e parcialmente cumprida na famosa penitenciária de Alcatraz. A esse propósito, não se pôde provar as outras acusações que pesavam contra ele como extorsão, homicídio etc. Ver: MADINGER, John, Money Laundering, ob. cit., MADINGER, John, Money Laundering, a guide for criminal investigators, Boca Raton, CRC Press, 2011. Ebook.

10 No Brasil, a Unidade de Inteligência Financeira é o Coaf - Conselho de Controle de Atividades Financeiras

11 ROBINSON, Jeffrey. The Laundrymen. ROBINSON, Jeffrey. The Laundrymen: Inside the World's Third Largest Business 2. Ed. Pocket Books, London, 1998, p. 4

12 Órgão pertencente ao Departamento do Tesouro dos Estados Unidos da América do Norte (Department of Treasury).

13 ROBINSON, Jeffrey. The Laundrymen, ob. cit., p. 4

14 ROBINSON, Jeffrey. The Laundrymen, ob. cit., p. 4

15 Sobre o tema ver: Lavagem de dinheiro: temas polêmicos no brasil, argentina, equador e EUA org. Filipe Maia Broeto e Diego Renoldi Quaresma de Oliveira. Curitiba, CRV, 2021; ROBINSON, Jeffrey. The Laundrymen, ob. cit., p. 5.

16 Sobre o tema ver: Lavagem de dinheiro: temas polêmicos no brasil, argentina, equador e EUA org. Filipe Maia Broeto e Diego Renoldi Quaresma de Oliveira. Curitiba, CRV, 2021; ROBINSON, Jeffrey. The Laundrymen, ob. cit., p. 5.

Diego Renoldi Quaresma de Oliveira

VIP Diego Renoldi Quaresma de Oliveira

Advogado criminal, professor, palestrante e autor de livros e artigos sobre Direito Penal, Direito Processual Penal e liberdade de expressão.

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