Aspectos práticos da confissão como pressuposto do acordo de não persecução penal
O presente artigo visa compreender acerca do instituto da confissão formal e circunstanciada como requisito para o benefício presente no Acordo de Não Persecução Penal, previsto através da modificação legislativa ocorrida pela lei 13.964/19, que ocasionou em uma ampliação da justiça consensual brasileira.
sábado, 27 de janeiro de 2024
Atualizado em 26 de janeiro de 2024 14:57
1. INTRODUÇÃO
O Brasil atualmente tenta adaptar-se seu modelo positivista para um modelo negocial, com intuito de resolver os conflitos sem que haja a participação do Estado de forma direta, e sim, de forma fiscalizadora da constitucionalidade. Assim, a lei 13. 964/19 surgiu com diversas modificações nas legislações penais e processuais, dentre elas, a introdução do artigo 28-A no Código de Processo Penal, abordando acerca do Acordo de Não Persecução Penal, constituindo um marco na justiça negocial brasileira, uma vez que, através do ajuste entre as partes e atrvés de certos requisitos, pode ser aplicado certas medidas necessárias à prevenção de delitos, sem que necessite do processo judicial.
2. ASPECTOS DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
Cumpre destacar, inicialmente, que os pressupostos para a realização do Acordo de Não Persecução Penal, previsto no artigo 28-A do Código de Processo Penal, são cumulativos. Assim, refere-se a uma modalidade de negociação direta realizado pela acusação e defesa, semelhante ao chamado plea bargaining, onde representa uma prática do sistema penal norte-americano, contudo, apresenta divergências em relação as consequências e efeitos oriundos da homologação do acordo, bem como as infrações penais que englobam (SOUZA, 2019).
O instituto do plea bargaining configura uma ferramenta jurídica que garante ao "investigado a faculdade de não exercer o seu direito constitucional ao contraditório e de ser submetido a um julgamento precedido por um juiz natural e imparcial, desde que reconheça a autoria do fato investigado ainda na fase inquisitiva" (MORAES, 2020, p. 78-79). Dessa forma, esse sistema de justiça traz contribuições para as demais jurisdições no mundo, possibilitando a criação de outros tipos de plea bargaining diferentes conforme cada modelo, ocasionando o modelo norte-americano uma fonte de inspiração para o processo penal em âmbito mundial (VASCONCELLOS, 2020).
Dessa forma, o sistema judicial negocial brasileiro é fruto de uma intervenção mínima no processo penal e é abrangido pelo princípio da oportunidade, no qual possibilita ao Ministério Público deixar de realizar a persecução penal pelo Estado em virtude do investigado cumprir os requisitos previstos na lei, ultrapassando e relativizando o sistema principiológico da obrigatoriedade da ação penal. Portanto, o marco inicial dessa justiça negocial surgiu com a lei 9.099/95, especialmente na parte processual penal, onde acarretou um desafogamento do Poder Judiciário. Assim, os crimes de menor potencial lesivo com pena de até 2 anos, seriam realizados através de um procedimento sumaríssimo, conforme estabelece o artigo 61 da lei 9.099/95 (BRASIL, 1995).
O acordo de não persecução penal, como o próprio nome já assevera, consiste na possibilidade de não realizar a persecução. Dessa forma, em regra, ocorre anterior ao ajuizamento da ação e não sendo caso de arquivamento do inquérito, devendo, portanto, preencher os requisitos legais e a aceitação do acordo, sendo certo que após a homologação da negociação pelo juiz, o investigado ou acusado cumpra com as condições estabelecidas previamente, ocorrendo a extinção da punibilidade, não constando na certidão de antecedentes criminais (BRASIL, 1941).
Ao abordar as considerações acerca do acordo de não persecução penal, cabe ressaltar os requisitos para que ele seja homologado, sendo eles cumulativos. Entre os requisitos, tem-se, não ser caso de arquivamento de inquérito, confissão formal e circunstancial, pena mínima inferior a quatro anos e sem cometer crime de violência ou grave ameaça e que seja suficiente para a reprovação e prevenção do crime. Assim, demonstra-se a importância desse instituto para o ordenamento jurídico, uma vez que recai sobra as infrações de médio potencial ofensivo, que configura cerca de 70% dos tipos penais previstos (LOPES JÚNIOR, 2021).
3. A CONFISSÃO NO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
A confissão existe de forma ligada a penalização e mitigação da pena, sendo caracterizada segundo o artigo 167 do Código de Processo Penal. Contudo, com o advento do Pacote Anticrime, surge uma nova forma de confissão, aquela para o acordo, com especialidades incomuns e consequências distintas, haja vista a possibilidade de impedir a persecução penal. Há uma discussão doutrinária referente a obrigatoriedade da confissão, uma vez que, conforme a interpretação do dispositivo, beneficia apenas os réus confessos.
Assim, os profissionais do Direito divergem quanto a sua obrigatoriedade, visto que o réu poderá ter direito ao benefício previsto no Acordo de Não Persecução Penal ainda que ele não tenha confessado a prática do delito, conforme o artigo 28-A do CPP. Isso pode ser constatado através de uma publicação da Defensoria do Rio Grande do Sul (2020, ano 11, nº 26) ao abordar que:
Ademais, de forma alguma a confissão, mesmo que formalizada e circunstanciada, é exigida como parte do acordo. A confissão é um ato, o acordo outro. O artigo 28-A do CPP não previu a necessidade de o mesmo acompanhar o acordo levando à homologação e não deve ser interpretado diferentemente.
Dessa forma, percebe-se que essa lei 13.964/19 garantiu mais benefícios aqueles que praticam a conduta ilícita do que quem tenta, a todo custo, provar sua inocência. Demonstra-se, então, que caso o investigado não tenha cometido o crime sob o qual lhe é imputado, deverá este seguir o trâmite normal do processo, considerado um mecanismo extremamente lento, com o objetivo de assegurar sua inocência, além de acarretar danos.
Portanto, percebe-se que a confissão é um ato voluntário, pessoal e expresso, realizado perante a autoridade competente, acerca do cometimento ou não de uma conduta criminosa. E para que configure a confissão é preciso que haja alguns requisitos, conforme defende Avena (2020, p. 612):
Como requisitos intrínsecos, destacam-se a verossimilhança, que se traduz como a probabilidade de o fato efetivamente ter ocorrido da forma como confessada pelo réu; a clareza; a persistência, que se revela por meio da repetição dos mesmos aspectos e circunstâncias; e a coincidência entre o relato do confitente e os demais meios de prova angariados ao processo. Por outro lado, como requisitos formais estão a pessoalidade, devendo a confissão ser realizada pelo próprio réu; o caráter expresso, pois deve ser reduzida a termo; oferecimento perante o juiz competente; a espontaneidade, impondo-se que seja oferecida sem nenhuma coação; e a saúde mental do imputado, possibilitando-se o convencimento do juízo de que o relato não está sendo fruto da imaginação ou de alucinações do acusado.
Isso demonstra que se houver algum impedimento para a condição da confissão ser formal e circunstancial, acarretaria uma confissão errônea e falsa. Vale mencionar que, primeiramente, o acordo buscava uma comparação com o plea bargaining norte-americano, tendo os mesmos requisitos. Sendo que nesse último, o investigado barganhava a pena através de uma delação referente ao delito. Vale ressaltar que essa delação é distinta daquela presente no ordenamento jurídico brasileiro. Assim, Nucci (2020, p. 222) assevera que o "Acordo de não persecução penal: trata-se de mais um benefício previsto para autores de crimes menos relevantes, não se confundindo com o plea bargain do direito norte-americano, pois este é amplo e irrestrito".
De acordo com o que já foi dito, destaca-se que a confissão é um elemento importante e útil, uma vez que ajudaria na investigação criminal no qual o acusado ou investigado iria cooperar para que ganhasse algum benefício. Não obstante, a confissão prevista no acordo de não persecução penal configura apenas em um benefício para aqueles que cometeram o crime, e não, no caso supracitado, de contribuir para impedir a prática de crimes. Logo, é melhor o acusado ou investigado confessar um crime do que esperar toda a persecução penal para demonstrar sua inocência, haja vista a falta de reincidência e a extinção da punibilidade por meio do acordo de não persecução penal.
Portanto, citando um exemplo, caso uma pessoa seja presa acusada de furto, cuja pena é de 1 a 4 anos, ela não teria o direito a transação penal nem a suspensão condicional do processo. Caso esse acusado seja primário e inocente, mas que almeja provar sua inocência, ele já estaria estigmatizado pela sociedade, e teria que escolher entre confessar para não sofrer a persecução penal, ou enfrentar o processo criminal com chances de ser condenada. Assim, constata-se que o acordo possibilita o cometimento de fraudes processuais, tornando, nestes casos, a confissão um instrumento de inconstitucionalidade.
Nesse passo, necessário compreender um princípio constitucional, conhecido como nemu tenetur se detegere ou princípio da não autoincriminação, o qual corresponde ao fato de que ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo, isto é, o acusado não é obrigado a proporcionar elementos que indiquem a prática criminosa. Acerca desse princípio, Gomes (2010, p. 1) afirma que:
O privilégio ou princípio (a garantia) da não auto-incriminação (Nemo tenetur se detegere ou Nemo tenetur se ipsum accusare ou Nemo tenetur se ipsum prodere) significa que ninguém é obrigado a se auto-incriminar ou a produzir prova contra si mesmo (nem o suspeito ou indiciado, nem o acusado, nem a testemunha etc.). Nenhum indivíduo pode ser obrigado, por qualquer autoridade ou mesmo por um particular, a fornecer involuntariamente qualquer tipo de informação ou declaração ou dado ou objeto ou prova que o incrimine direta ou indiretamente.
Esse princípio está previsto na Constituição Federal, em seu artigo 5º, LXIII, o qual preceitua que "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo -lhe assegurada a assistência da família e de advogado" (BRASIL, 1988). Sendo encontrado também na Convenção Americana de Direito Humanos, em seu artigo 8º, linha g, ao dispor o "direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada" (CADH, 1969). Portanto, percebe-se que esse princípio não está presente somente ao direito de permanecer calado, mas sim, aos atos processuais que de alguma forma passa prejudicar o acusado.
Além disso, verifica-se que esse princípio tem status constitucional e internacional, devendo ser considerado um direito humano, sendo, portanto, imprescindível para a constitucionalidade no ordenamento jurídico brasileiro. Logo, o princípio do nemu tenetur se detegere de ser seguido e a confissão presente no acordo de não persecução penal deve ser cautelosa, uma vez que exigir que ele confirme a prática criminosa afronta esse princípio constitucional.
Assim, cumpre destacar que o princípio do nemu tenetur se detegere é bem mais amplo, podendo, inclusive, o réu permanecer em silêncio durante o seu interrogatório, sendo obrigatório apenas a sua qualificação. Esse princípio põe a salvo qualquer situação que coloque o acusado ou investigado em prejuízo, sendo percebido no caso da confissão dos fatos com o objetivo de realizar o Acordo de Não Persecução Penal. Ressalta-se, assim, que a confissão como requisito do acordo acarreta problemas, visto que gera ofensa ao princípio constitucional do nemu tenetur se detegere. Isto posto, faz com que o acusado admita a culpa, configurando em sua autoincriminação.
A partir do momento em que o acusado confessa a prática da conduta delituosa, gera uma divergência entre aqueles que compõe a relação jurídica, acarretando uma maior vantagem a acusação acerca do acordo de não persecução penal. Tanto que, caso haja a extinção do acordo por qualquer motivo, o MP poderá realizar a denúncia, bem como utilizar aquela confissão como fundamento para a ação penal. Configura-se, portanto, que a confissão constitui em um pressuposto prejudicial ao acusado, pelo fato de que o MP poderá utilizá-la como meio de prova para propor a denúncia.
Portanto, constata-se que o acordo de não persecução penal constitui em um instrumento importante para o ordenamento jurídico, visto que trouxe mais celeridade. Contudo, o pressuposto da confissão como obrigatoriedade acarreta uma problemática, sendo desnecessário e garantindo maior vantagem ao Ministério Público propor denúncia. Sendo assim, constata-se que esse pressuposto gera uma ofensa ao princípio da não autoincriminação, uma vez que a confissão gera prejuízos ao réu, bem como obriga ao acusado confessar a prática do crime com o objetivo de garantir o benefício proposto no acordo.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante das considerações, coube analisar as controvérsias aplicadas a esse instituto, no tocante a problemática da confissão como requisito para a homologação do acordo.
Portanto, primeiramente analisou acerca desse instituto, qual constitui em uma nova forma de resolução de conflitos, baseado em um modelo de negócio jurídico adaptado pelo norte-americano, o qual também configura uma exceção ao princípio da obrigatoriedade da ação penal e que se aplica em diversas situações, causando um grande impacto no sistema de justiça penal brasileira. Além disso, verificou-se que a exigência da confissão no acordo, afronta o princípio constitucional da não autoincriminação ou nemu tenetur se detegere.
-----------------------------------
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20.05.22.
_______. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. Acesso em: 20.05.22.
_______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6345. Requerente: Associação Nacional das Defensoras e dos Defensores Públicos (ANADEP). Relator: Ministro Luiz Fux. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?in cidente=5881168. Acesso em: 20.05.22
CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do Acordo de Não Persecução Penal. 2. ed. rev. atual. e ampl. Salvador: Editora JusPodivm, 2021.
CABRAL, Antonio do Passo. Acordos Processuais no Processo Penal. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, nº 64, abr./jun. 2017. p. 69-93. Disponível em: http://www.mprj.mp.br/documents/20184/1255811/Antonio_do_Passo_Cabral.pdf. Acesso em: 20.05.22.
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. Disponível em: https://app.saraivadigital.com.br/leitor/ebook:725093. Acesso em: 20.05.22.
CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Resolução nº 181, de 7 de agosto de 2017. Disponível em: https://bit.ly/3q8v9SY. Acesso em: 20.05.22.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021. Disponível em: https://app.saraivadigital.com.br/leitor/ebook:753414. Acesso em: 20.05.22.
MALAQUIAS, Roberto Antônio Darós. Princípio nemo tenetur se detegere no estado democrático de direito. Revista dos Tribunais,[S.l], v. 941, p. 145 - 176, Mar. 2014
MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
________. Curso de Processo Penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021. Disponível em: https://app.saraivadigital.com.br/leitor/ebook:759393 Acesso em: 20.05.22.
MARTINS, Flávio. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021. Disponível em: https://app.saraivadigital.com.br/leitor/ebook:759923. Acesso em: 20.05.22.
MENEZES, Daniel Feitosa de; VASCONCELOS, Mônica Carvalho. Resolução consensual de conflitos com aportes da justiça restaurativa. Revista Brasileira de Ciências Criminais, [S.l],v. 161, p. 163-186, Nov. 2019.
MORAIS, Hermes Duarte. "Pacote Anticrime": a nova configuração do acordo de não persecução penal. In: Pacote Anticrime: comentários à lei n. 13.964/2019. Coord.: NETO, Alamiro Velludo Salvador; BRUNI, Aline Thaís; AMARAL, Claudio do Prado; SAAD-DINIZ, Eduardo; MORAIS, Hermes Duarte. 1. ed., São Paulo: Alamedina Brasil, 2020.
NETO, Pedro Faraco e LOPES, Vinícius Basso, artigo científico. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL - A retroatividade da lei penal mista e a possibilidade dos acordos após a instrução processual, 2020.


