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A apresentação espontânea e suas implicações jurídicas

O Código de Processo Penal define prisão em flagrante em diversas situações. Anteriormente, a apresentação espontânea impedia a prisão em flagrante, sendo considerada incompatível, conforme Aury Lopes Jr.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Atualizado às 14:53

O Código de Processo Penal prescreve que a prisão em flagrante ocorre quando se está cometendo a infração penal; acaba de cometê-la; é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração (art. 302).

Na redação originária do CPP constava que àquele que se apresentasse espontaneamente à autoridade policial ficaria sujeito à decretação da prisão preventiva, caso a lei autorizasse (art. 317). Como pode ser observado, a apresentação espontânea era impeditiva da prisão em flagrante, tratando-se de incompatibilidade genética, consoante o professor Aury Lopes Jr. (LOPES, Aury Jr. Prisões Cautelares. 2017. p. 89) 

Contudo, tal dispositivo legal fora revogado pela lei 12.403/11, deixando de existir na lei processual penal regramento acerca da impossibilidade da prisão em flagrante quando da livre apresentação. Os professores Nestor Távora e Rosmar Rodriguez acentuam que a modificação legislativa retratou o óbvio, não obstante a possibilidade de decretação da prisão preventiva ou temporária, ou seja, a apresentação espontânea e prisão em flagrante continuam incompatíveis. (TÁVORA, Nestor e RODRIGUEZ, Rosmar Alencar. Curso de Processo Penal e Execução Penal. 2021. p. 950)

De acordo com os autores acima, o dispositivo legal trazia benefícios ao agente - sua razão de ser-, pois àquele que se tiver apresentado espontaneamente à prisão, confessando crime de autoria ignorada ou imputada a outrem, não terá efeito suspensivo a apelação interposta da sentença absolutória, nos termos do art. 318 do CPP, também revogado.

Cabe registrar as causas que implicam periculum libertatis e ensejam decreto de prisão preventiva: garantia da ordem pública; garantia da ordem econômica; por conveniência da instrução criminal; assegurar a aplicação da lei penal (art. 312 do CPP). Qualquer uma dessas causas podem fundamentar uma decisão. O que não se pode tolerar é o uso de interpretação retórica para enquadrar em uma das hipóteses. Por exemplo, a alegação da gravidade abstrata do crime, uma vez sua consideração já ter sido feita quando da tipificação da conduta, para enquadrar na garantia da ordem pública. Em outras palavras, a fundamentação deve conter fatos concretos e plausíveis, pois a liberdade é a regra e a presunção de inocência o norte do processo penal, até trânsito em julgado.

Além do mais, não se satisfaz qualquer das causas do periculum libertatis com o comparecimento pessoal e espontâneo do imputado diante da autoridade policial reconhecendo a prática de um crime recém-ocorrido, conforme o professor Aury Lopes Jr. Continua ele dizendo, ainda que seja lavrado o auto de prisão em flagrante tal circunstância deve ser devidamente avaliada pelo juiz ao recebê-lo, em cumprimento ao art. 310 do CPP. (LOPES, Aury Jr. Prisões Cautelares. 2017. p. 90) 

Olvida-se, no entanto, das medidas cautelares diversas da prisão, conforme assenta o art. 319 do CPP. Dentre elas, destacamos o comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; monitoração eletrônica. Tais medidas podem satisfazer plenamente o papel de instrumento do instrumento (processo), nas palavras do mestre Carnelutti.

Um projeto de lei (1910/11) pretendendo tipificar como prisão em flagrante a apresentação espontânea de quem cometeu um delito foi rejeitado pela Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado. Autor deputado Eduardo da Fonte (PP-PE). O deputado Alessandro Molon (PT-RJ), relator, ressaltou o seguinte:

Na hipótese de apresentação espontânea do acusado, a prisão em flagrante não somente deve ser excluída pela lógica e pelo bom senso, mas também por falta de amparo legal, com ou sem a redação original do art. 317 do CPP.

O relator ainda fez constar o caráter relativo da confissão, bem como da possibilidade de decretação da prisão preventiva.

Outra questão a ser debatida é sobre eventual conversão em prisão preventiva ou temporária a partir de auto de prisão em flagrante ilegal. Nesse caso, cabe somente relaxar a prisão em flagrante, jamais ratificar ilegalidades. A questão é de ordem pública, portanto, de nulidade absoluta.

A violência vivida por todo o Brasil não pode justificar prisões ilegais, assim como antecipar eventual cumprimento de pena a ser imposta após decreto condenatório com trânsito em julgado. Não é inverter a ordem das coisas que irá mudar o que está posto - violência extrema-, uma vez que a liberdade é a regra, a prisão, exceção, esta tendo lugar quando bem fundamentada por fatos concretos.

A população infelizmente quer prisão imediata, instantânea, falta-lhe instrução formal e jurídica. O que é muito bem explorado por alguns políticos. O processo requer maturação para ser julgado, e isso implica tempo, sem, todavia, exceder a razoável duração do processo. São vidas em jogo. E o que se espera do Poder Judiciário- contramajoritário por excelência- é sobretudo respeito ao ordenamento jurídico.

No entanto, o STF através da sua segunda turma, ao analisar uma situação de apresentação espontânea, asseverou que:

Com efeito, a segregação do ora indiciado mostra-se necessária, in casu, com o fito de assegurar a ordem pública, devido haver fortes indícios de que ele executara o delito descrito em sede de inquérito e pode encontrar os mesmos estímulos para cometer outras práticas criminosas. A periculosidade do acusado pode ser evidenciada pelo modus operandi violento do agente, que teria executado a vítima, mediante o uso de arma de fogo, atingindo-a em frente a sua residência, de inopino, supostamente motivado por discussão banal ocorrida no dia anterior. (AG.REG. NO HABEAS CORPUS 211.284 CEARÁ)                    

O Estado continua sendo o maior produtor- pela omissão- da criminalidade violenta. Precisa-se enxergar além de dois palmos à frente.

Michel França

VIP Michel França

Advogado Criminalista. Especialista em Direito Processual Penal. Professor e Palestrante.

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