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A autonomia das partes na resolução de disputas e a interseção com métricas de jurimetria: um exame da abordagem Uber

O uso da jurimetria é um total avanço à forma como os jurisdicionados pagadores de impostos veem como está a atuação do Poder Judiciário como um todo

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Atualizado às 07:13

O avanço da prestação otimizada de serviços jurídicos é uma realidade indelével, fruto da imersão social naquilo que se convencionou qualificar de "quarta revolução industrial"1, ou, melhor dizendo, era dos aplicativos e da inteligência artificial. 

E, como cediço, na esteira das mudanças, o direito:

é um organismo vivo, peculiar, porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza (Eros Grau, ADPF 46/DF)

Essa revolução não tem o propósito de substituir o profissional do direito, mas sim de auxiliá-lo com poderosas ferramentas que o capacitarão a tomar as melhores decisões diante do emaranhado de processos cotidianos de um escritório ou departamento jurídico.

Novas plataformas emergem a todo momento, sendo o Brasil um campo fértil para o crescimentos de tecnologias voltada ao direito, tendo em vista a quantidade de sistemas processuais digitais e dados advindos dos tribunais. Com uma sociedade culturalmente voltada à litigância e diante do advento da digitalização nacional dos processos judiciais, encontra-se um "oceano azul" de oportunidades com as legaltechs e lawtechs. Através dessas tecnologias, é possível realizar uma rápida apuração e melhor compreensão dos dados provenientes de decisões judiciais, o que se qualifica de jurimetria.

O termo "jurimetria" advém do conceito de econometria e foi inicialmente cogitado pelo professor e advogado estadunidense Lee Loevinger em seu artigo publicado em 1949 pela revista Minnesota Law Review com o título: Jurimetrics: the next step foward2.  

O professor Marcelo Guedes Nunes, precursor deste importante assunto no Brasil, define jurimetria como "a aproximação de dois conhecimentos, o jurídico e o estatístico". 

A ideia pode ser inicialmente assustadora para uma classe que ingressou no mundo jurídico buscando escapar de gráficos, porcentagens e cálculos. No entanto, a jurimetria busca, por intermédio de múltiplos instrumentos, a exemplo do big data, data science, design thinking, visual law, entre outros, materializar com maior assertividade o princípio da segurança jurídica, levando aos profissionais do Direito e, via de consequência, aos cidadãos, seja individualmente ou empresarialmente organizados - destinatários finais das normas - maior previsibilidade a assuntos hodiernamente tratados nos tribunais.

Trata-se de uma nova revolução estrutural do sistema jurídico que bate à porta. As inteligências artificiais são uma realidade, e é hora de incorporá-las no direito para uma prestação jurisdicional mais efetiva, célere e consentânea à tão festejada Teoria dos Precedentes Judiciais, instrumentalizada no Código de Processo Civil de 2015. 

Como todo fato disruptivo, que altera o fluxo normal do status quo, a utilização generalizada da jurimetria por órgãos públicos e a iniciativa privada, enfrenta debates intensos entre juristas de todas as áreas. 

A título de exemplo, tem-se o notável caso da empresa Uber, em relação ao qual parcela de Juízes do Trabalho argumenta que a adoção de jurimetria pelas empresas busca mascarar entendimentos divergentes nos tribunais sobre vínculo empregatício, criando uma falsa aparência de favorabilidade à tese patronal

O julgado aqui destacado como paradigma é o Acórdão (0011710-15.2019.5.15.0032) oriundo do TRT da 15ª Região. Em princípio, trata-se de um acordo firmado entre as partes, apresentado um dia antes do julgamento do Recurso Ordinário interposto pela Reclamada onde, em primeiro grau, fora reconhecido o vínculo empregatício.

O Ministério Público do Trabalho aduz que a empresa Uber se utiliza de sistemas para monitorar Turmas de Julgamento favoráveis tanto em âmbito dos TRT's quanto do TST e onde a empresa julga ser desfavorável a sua tese de não reconhecimento do vínculo fazem acordo, do contrário, seguem com a tramitação.

Alguns argumentos utilizados no Judiciário é que tal prática fere um princípio constitucional/processual implícito que é a paridade de armas e se torna uma vantagem desproporcional para a empresa que detém de recursos para se utilizar de ferramentas que, a princípio, os motoristas não teriam.

Com o devido respeito, tal entendimento, s.m.j., pune a eficiência de algumas bancas que buscam otimizar a sua prestação de serviços, pois, os dados estão aí para serem consultados e estudados, a fim de auxiliar na coerência de um sistema que pretende ser seguro aos jurisdicionados. Não por outra razão, todos os anos o próprio CNJ disponibiliza em seu site o informativo "Justiça em Números", onde se extraem  informações sobre a atuação da própria Justiça do Trabalho em âmbito nacional.

Assim, evidente que o uso da jurimetria não fere o princípio da paridade de armas, pois é nada mais que uma ferramenta que trata informações, dados e estimativas em sítios públicos - na maioria das vezes vinculados ao próprio Poder Judiciário - para garantir ao jurisdicionado maior previsibilidade em relação à condução do caso, o que revela, no fim do dia, a materialização de maior segurança jurídica. 

Na hipótese do caso UBER, percebe-se que a conduta adotada pelo TRT da 15ª Região  fere a autonomia da vontade das partes em tentar resolver a demanda através de uma atitude conciliatória, onde, no jargão popular, as partes são "juízes da própria causa", indo contra ao espírito da justiça multiportas, onde, não há apenas o caminho contencioso para a resolução de uma disputa trabalhista.

Aos magistrados cabem, de acordo com a legislação pátria, analisar se ali naquele acordo há as condições de validade do negócio jurídico, art. 104 do Código Civil, em havendo, a homologação do que foi acordo entre as partes, representada cada um por seu advogado.

Ir em desencontro ao entendimento acima, sob o manto de que a Uber se utiliza de "litigância manipulativa" é negar a tecnologia e o avanço da sociedade com a criação de formas alternativas à judicialização no país que de maneira sociocultural protagoniza a sociedade do processo, em que temos, segundo estatísticas, um processo a cada dois habitantes.

Utilizar-se de softwares para analisar estas jurisprudências e fazer uma análise de risco, legalmente, não há o condão de ferir qualquer ordenamento jurídico vigente pelo país, pelo contrário, são várias as notícias de criação de ferramentas pelos próprios Tribunais nacionais e do próprio Ministério Público, que acusa a Uber, se utilizam de dados para melhorar a prestação jurisdicional.

Um exemplo concreto é o Supremo Tribunal Federal que através do Projeto Victor criou uma ferramenta para análise de requisitos básicos e objetivos de admissão do Recurso Extraordinário, como a tempestividade, e a Rafa que integra a Agenda 2030 da ONU adotada pela Corte Constitucional.

Voltando a "litigância manipulativa" que o MPT aduz que a Uber faz é deveras contraditório, pois, inclusive, em uma Ação Civil Pública (0010531-94.2023.5.03.0111) promovida no TRT-3 (Minas Gerais) contra a empresa e, vale ressaltar que foi onde se deu o início da tese, houve uma decisão dissonante, no qual a magistrada aduziu:

Não se pode olvidar que, na atualidade, a tecnologia faz parte, em menor ou maior escala, do cotidiano de todos. Não seria diferente no ramo jurídico, o qual não pode ignorar a realidade. Não se mostra razoável, no mundo moderno, quedar-se alheio ou insurgir-se contra movimento que já se apresenta de forma permanente no cotidiano dos aplicadores do direito.

Destaco, também, que foi por meio do uso dessa mesma inovação tecnológica que o autor apurou e demonstrou sua tese, apresentando, de forma pormenorizada, a cronologia de fatos, por meio de dados estatísticos. Não há qualquer assimetria no acesso à informação utilizada tanto pelo autor quanto pelo réu.

Nesse ponto, observo que a primeira avaliação geral apresentada pelo autor indica que, dos 1.029 processos julgados neste Tribunal, apurou-se que, entre 2017 e 2022, celebrou-se acordo em 69,29%, sendo os 30,7% restantes levados a julgamento do mérito (tabela 3; f. 16).

A argumentação foi no sentido de que, a utilização dos dados é democrática e está disponível para todos, pois até mesmo para se acusar a empresa de tal conduta o MPT se utilizou dessas inovações tecnológicas através de tabelas, cálculos, porcentagens e outras ferramentas para demonstrar os dados coletados contra a Uber.

Por fim, a abordagem da Uber com o uso de jurimetria para enfrentamento do seu passivo trabalhista é extremamente válida, a tecnologia não está condicionada a uma pequena parcela da classe do direito, pelo contrário, a justiça do trabalho é inteiramente digital, com vários dados disponíveis a todos e estes dados, cumpre dizer, em nada vincula o entendimento e o livre convencimento do julgador, no caso concreto, em posse de um processo de reconhecimento de vínculo de emprego.

Concluindo, o uso da jurimetria é um total avanço à forma como os jurisdicionados pagadores de impostos veem como está a atuação do Poder Judiciário como um todo, além de oportunizar uma melhor prestação do serviço público e o uso inteligente de recursos públicos e privados na estabilização e redução dos conflitos surgidos na Justiça Comum e Especializada, negar o avanço da tecnologia é tentar trazer de volta o obscurantismo que tanto já permeou o mundo.

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1 https://mundoeducacao.uol.com.br/historiageral/quarta-revolucao-industrial.html

2 LOEVINGER, Lee. Jurimetrics: The Next Step Forward. Minnesota Law Review. Minneapolis: University of Minnesota Law School. Apr. 1949.

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Descubra o que é a Uber e veja como funciona | Uber Blog

Nunes, Marcelo Guedes. Jurimetria: Como a estatística pode reinventar o Direito. 1, ed. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2016. Pág. 9

STF finaliza testes de nova ferramenta de Inteligência Artificial Supremo Tribunal Federal (stf.jus.br)

Ação Civil Pública Cível 0010531-94.2023.5.03.0111

Recurso Ordinário Trabalhista 0011710-15.2019.5.15.0032

https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/

Leonardo Guido

Leonardo Guido

Atuante na área de Direito do Trabalho Empresarial. Advogado trabalhista no Fraga & Trigo Advogados Associados. Pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul e atualmente está cursando pós-graduação em Direito e Processo do Trabalho na Escola Paulista de Direito em São Paulo.

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