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Cliente, dá-me os fatos...

Advogados não vieram ao mundo para julgar o outro, mas para lhe confortar frente às adversidades da existência.

terça-feira, 12 de março de 2024

Atualizado às 07:30

O bacharel em Direito não se torna advogado, quando ultrapassa os desafios do exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Recebe a carteira da OAB e dela deve se orgulhar, mas o exercício da profissão, que o qualifica, depende da mescla de disciplina profissional, estudo constante, experiência e algum talento. 

Trinta anos depois, gosto de compartilhar aspectos de nossa atividade com colegas, com a intenção de contribuir com a formação de alguns, tão encantados quanto eu sou, com aquilo que fazemos. 

Neste texto, conversemos sobre a primeira reunião com o cliente, envolto com procedimentos investigatórios e processos judiciais. Há tendência de certos causídicos de quererem impressionar. Mostram cultura jurídica, conhecimento de jurisprudência e os menos sérios afirmam-se próximos do magistrado, ou de outro funcionário público envolvido na questão. 

Nada disso. Este encontro inicial apresenta-se importantíssimo para conhecer o cliente e entender os fatos, objeto do problema jurídico. Trata-se do momento fundamental para se fazerem perguntas e tomar notas. Entreviste o cliente com atenção. Comece com o simples: o que, quem, quando, onde e o porquê. Ouça a história e, sem constrangimento, questione tudo o que achar relevante e pertinente à causa. 

No íntimo, pergunte-se se é verdade, ou inverdade, o que lhe narram, para avaliar se necessários mais questionamentos, também, com vistas à compreensão da dinâmica dos acontecimentos. Tenha paciência com o interlocutor, há quem demore a descortinar o que aconteceu. Anote nomes e diferencie partes e testemunhas. Busque exaurir o cliente - por exemplo, nos acidentes trágicos - quanto a pontos da causalidade empírica e teste na mente a causalidade jurídica. 

Não tenha vergonha de dizer que não entendeu algo, ou mesmo que não conhece o significado de determinadas palavras. Pense nas pessoas do mercado financeiro que lhe descrevem negócios jurídicos inovadores, os quais jamais nos deparamos, ainda com bom número de vocábulos em inglês desconhecidos.  

Na mesma reunião, anote quais provas os clientes indicam e quais se precisa produzir em juízo, ou fora dele. Pense em arquivos digitais, atas notariais, declarações, perícias particulares, dentre outras, que possam melhor nos aproximar da realidade fática. Guarde sempre os cuidados com a cadeia de custódia, com a legalidade das provas e com os passos iniciais da estratégia jurídica. 

Existe falsa noção de que o cliente sabe o que quer, em particular, quando ocupa a posição de vítima. Calma! Bem possível que o turbilhão de sofrimento e sentimentos embaralhem o que ele, ou ela, almejam. Dedique-se a esse ponto com tempo. Não adianta fomentar a raiva, ou prometer a vingança por meio do processo judicial. Todos sabemos as distopias reinantes no sistema judiciário. Jamais garanta ao ofendido que o agente causador do ilícito será responsabilizado. O processo judicial exibe-se longo e desgastante, sem tantas certezas.  

Muitas vezes, os culpados variam quanto ao que desejam. Uns sonham com a absolvição apesar da culpa, outros querem preservar a família, sem falar daqueles que preferem ser logo punidos - mediante acordo de colaboração processual, ou confissão - para acabar com o martírio do tempo do processo. 

Terminada a reunião, sugiro pedir 24 a 48 horas para estudar melhor o caso, bem assim preparar a proposta de honorários advocatícios. Não se precipite no diagnóstico, nem na estimativa de valor pelos serviços jurídicos.  Leitura atenta de autos e documentos pode alterar as perspectivas.    

Ao final, o que surge importante desde o começo da relação advogado-cliente é a pessoa atendida sentir-se confortada com a dedicação que se deu ao problema, com a concentração que se conferiu a buscar a melhor solução, com a empatia pelo drama humano. Advogados não vieram ao mundo para julgar o outro, mas para lhe confortar frente às adversidades da existência. 

Este sentido me parece engrandecer o que fazemos, ao servir a alguém na advocacia. Impõe-se visão aberta - ou melhor, concepção fraterna - quanto aos comportamentos das pessoas em sociedade, sem juízos apriorísticos de valor, com o objetivo precípuo de ajudar quem nos procura diante de um conflito.     

Antônio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo

Antônio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo

Advogado, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Advoga no escritório Moraes Pitombo Advogados.

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