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A autonomia da vontade kantiana e a pejotização dos hipossuficientes no Brasil

O texto oferece uma análise concisa e informativa sobre as recentes decisões do STF relacionadas à terceirização no Brasil.

quarta-feira, 27 de março de 2024

Atualizado às 08:34

O conflito entre autonomia e coerção, sob a ótica kantiana, levanta questionamentos sobre a verdadeira autonomia da vontade dos trabalhadores hipossuficientes.

A filosofia de Immanuel Kant, especialmente no que tange à autonomia da vontade, tem sido amplamente discutida e aplicada em diversos campos, incluindo o direito e a ética. No entanto, quando confrontada com a realidade socioeconômica brasileira, marcada por profundas desigualdades e pela crescente pejotização dos trabalhadores hipossuficientes, surge um aparente conflito entre a teoria kantiana e a prática social.

Este artigo busca questionar essa correlação, tem em vista os dados da Síntese de Indicadores Sociais 2023 do IBGE e refletindo sobre as implicações éticas e jurídicas desse fenômeno.

A Autonomia da Vontade segundo Kant postula que a autonomia da vontade é o princípio supremo da moralidade, segundo o qual o indivíduo age de acordo com a lei moral que ele próprio se impõe, livre de influências externas.

Para Kant, a autonomia é a capacidade de autodeterminação, de agir conforme princípios universais que a razão estabelece para si mesma. Essa concepção de autonomia pressupõe que o indivíduo seja capaz de fazer escolhas livres e racionais, sem coerção ou manipulação.

A Realidade Socioeconômica Brasileira e os dados da Síntese de Indicadores Sociais 2023 do IBGE revelam uma realidade preocupante: 60,1% da população brasileira vive com até um salário-mínimo per capita por mês, enquanto apenas 8,1% recebem mais de três salários-mínimos per capita mensalmente.

Essa disparidade gritante evidencia a profunda desigualdade social que permeia o mercado de trabalho brasileiro. Os 8,1% mais bem remunerados concentram não apenas a renda, mas também as oportunidades e a autonomia de decisão, enquanto os demais 91,9% dos trabalhadores enfrentam uma realidade de escassez, vulnerabilidade e falta de opções.

Essa concentração de privilégios nas mãos de poucos é um reflexo das estruturas sociais e econômicas do país, que perpetuam a desigualdade e limitam o acesso da maioria da população a condições dignas de trabalho e remuneração.

Diante desse cenário, é imperativo que o Estado e a sociedade se mobilizem para enfrentar essa disparidade e promover políticas públicas que visem à redução das desigualdades e à garantia de direitos e oportunidades para todos os trabalhadores, independentemente de sua faixa de renda.

A Pejotização, prática em que empresas contratam trabalhadores como PJs em vez de funcionários com carteira assinada, tem se tornado cada vez mais comum no Brasil. Embora apresentada como uma forma de flexibilização das relações de trabalho e de empreendedorismo individual, a pejotização muitas vezes mascara uma precarização dos direitos trabalhistas e uma imposição de condições desfavoráveis aos trabalhadores hipossuficientes.

O conflito entre autonomia e coerção, sob a ótica kantiana, levanta questionamentos sobre a verdadeira autonomia da vontade desses indivíduos. Diante da necessidade de subsistência e da escassez de oportunidades no mercado de trabalho, muitos trabalhadores se veem compelidos a aceitar contratos como PJs, mesmo que isso implique abrir mão de direitos e garantias fundamentais.

Nesse contexto, a escolha pela pejotização parece mais uma imposição das circunstâncias do que uma decisão autônoma e racional.

Implicações Éticas e Jurídicas: A pejotização dos hipossuficientes levanta sérias questões éticas e jurídicas. Do ponto de vista ético, ela coloca em xeque a dignidade do trabalhador e o respeito à sua autonomia, princípios caros à filosofia kantiana. Juridicamente, a pejotização, muitas vezes, pode ser entendida como uma forma de fraude às leis trabalhistas, que visam justamente proteger a parte mais vulnerável da relação de trabalho.

Conclusão

A correlação entre a autonomia da vontade kantiana e a pejotização dos hipossuficientes no Brasil revela um descompasso entre o ideal filosófico e a realidade social. Enquanto Kant preconiza a autonomia como fundamento da moralidade, a prática da pejotização muitas vezes se apresenta como uma imposição das circunstâncias sobre indivíduos em situação de vulnerabilidade.

Cabe à sociedade e ao Estado refletir criticamente sobre esse fenômeno e buscar mecanismos para garantir a efetiva autonomia e dignidade dos trabalhadores, especialmente dos mais vulneráveis.

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IBGE. Síntese de Indicadores Sociais 2023.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019. 

Ulisses Sousa

VIP Ulisses Sousa

Advogado.

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