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A declaração de inidoneidade pelo Tribunal de Contas e os efeitos criminais da contratação inidônea

A sanção de declaração de inidoneidade objetiva concretizar o princípio da moralidade administrativa no âmbito dos processos licitatórios e das contratações públicas, buscando impedir a oferta de produtos ou serviços para a administração pública por pessoas, físicas ou jurídicas, desonestas, desleais e inescrupulosas.

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Atualizado às 11:14

A sanção de declaração de inidoneidade: requisitos e consequências

A sanção de declaração de inidoneidade objetiva concretizar o princípio da moralidade administrativa no âmbito dos processos licitatórios e das contratações públicas, buscando impedir a oferta de produtos ou serviços para a administração pública por pessoas, físicas ou jurídicas, desonestas, desleais e inescrupulosas.

Em regra, a declaração de inidoneidade para licitar ou contratar somente pode ser aplicada1 ao responsável que:

i) apresentar declaração ou documentação falsa exigida para o certame ou prestar declaração falsa durante a licitação ou a execução do contrato;

ii) fraudar a licitação ou praticar ato fraudulento na execução do contrato;

iii) comportar-se de modo inidôneo ou cometer fraude de qualquer natureza;

iv) praticar atos ilícitos com vistas a frustrar os objetivos da licitação; ou

v) praticar atos lesivos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, nos termos da Lei Anticorrupção1.

Portanto, a declaração de inidoneidade depende, geralmente, da existência de condutas fraudulentas, ardilosas ou enganosas perpetradas com o objetivo de obter vantagem indevida, seja durante o procedimento licitatório ou após a adjudicação do objeto, no decorrer da execução contratual.

Exemplificativamente, caso o Tribunal de Contas da União identifique, no desempenho regular de suas competências constitucionais e legais, indícios de superfaturamento decorrente de prática de sobrepreço em licitação cujos participantes estiveram reunidos em conluio, todos eles podem ser declarados inidôneos para licitar ou contratar com a administração pública2, após o devido processo administrativo no qual se garanta o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa.

Outro caso que ilustra a possibilidade de aplicação da declaração de inidoneidade, relaciona-se com a utilização de informações e documentos fraudulentos, com a finalidade de demonstrar a qualificação econômica ou financeira do licitante perante a administração pública competente, conforme precedente do Tribunal de Contas da União3.

No âmbito da Corte de Contas, a inidoneidade deverá ser declarada sempre que verificada a ocorrência de fraude comprovada à licitação, que pode ser demonstrada e consubstanciada em elementos indiciários, nos termos do Acórdão 918/2023 - TCU - Plenário, de relatoria do Ministro Augusto Nardes4.

Importante destacar que, uma vez declarada a inidoneidade de determinada empresa, a referida entidade estará impedida de contratar no âmbito da Administração Pública direta e indireta de todos os entes federativos, pelo prazo mínimo de 3 (três) anos e máximo de 6 (seis) anos, nos termos da legislação específica5.

Cumpre frisar ainda que a declaração de inidoneidade imposta pelo Tribunal de Contas a determinada empresa, pode ser estendida a outra empresa de propriedade dos mesmos sócios, quando restar demonstrado ter sido esta constituída com o propósito de tornar sem efeito a declaração de inidoneidade aplicada à primeira, ainda que a constituição da segunda tenha ocorrido antes da aplicação da referida sanção6.

Nesse sentido, a personalidade jurídica pode ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para contornar a sanção de declaração de inidoneidade imposta a empresa da qual determinada pessoa seja sócio, podendo-se estender os efeitos da declaração de inidoneidade para outras empresas, desde que, obviamente, seja respeitado o contraditório, a ampla defesa e a obrigatoriedade de análise jurídica prévia7

Em decorrência da possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica da empresa inidônea, a jurisprudência do Tribunal de Contas entende que a Administração Pública contratante deve adotar as providências necessárias para avaliar se a nova sociedade está sendo utilizada para burlar a sanção imposta pela Administração Pública8, adotando-se as providências cabíveis para mitigar o risco desse tipo de fraude.

Em caso de reparação integral do dano causado à Administração Pública, do pagamento da multa cominada e após transcorrido o prazo mínimo definido em lei9, a empresa inidônea pode requerer a sua reabilitação para licitar e contratar, desde que todas as condições definidas no ato punitivo estejam cumpridas e seja realizada uma análise jurídica prévia e conclusiva acerca do cumprimento dos referidos requisitos para a reabilitação.

Ademais, a empresa inidônea também deve implementar ou aperfeiçoar o seu programa de integridade como pré-requisito necessário à reabilitação perante a autoridade que aplicou a penalidade.

Possíveis efeitos criminais relacionados à inidoneidade de licitar e contratar com a Administração Pública

A decisão administrativa que declara a inidoneidade de determina pessoa, física ou jurídica, não impede a responsabilização criminal dos responsáveis pelas condutas fraudulentas, ardilosas ou enganosas que deram origem à sucumbência administrativa e que impuseram aos responsáveis a vedação de licitar ou contratar no âmbito da Administração Pública direta e indireta de todos os entes federativos.

Tal possibilidade decorre do fato de que as condutas que ensejam a sanção administrativa de declaração de inidoneidade também se encontram, em grande medida, tipificadas como infrações criminais10, no Código Penal, cujas penas privativas de liberdade podem chegar a 12 (doze) anos de reclusão, além da aplicação de multa.

A legislação penal também abarcou a possibilidade de responsabilização criminal do agente público que admitir à licitação11 ou celebrar contrato12 com empresa ou profissional declarado inidôneo.

Com o intuito de impedir que empresas ou profissionais declarados inidôneos sejam admitidos à licitação ou celebrem contratos com a Administração Pública, a norma de regência determina que, antes da formalização ou prorrogação do prazo de vigência contratual, a Administração consulte o Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspeitas (Ceis) e o Cadastro Nacional de Empresas Punidas (Cnep), com a finalidade de gerar as respectivas certidões negativas de inidoneidade e anexá-las ao respectivo processo13.

A ausência dessa conduta diligente no âmbito do processo licitatório ou da contratação pode gerar riscos de responsabilização criminal do agente público envolvido na contratação de empresa ou profissional declarado inidôneo.

De fato, a inexistência de procedimentos internos que imponham uma conduta diligente ao agente público, com o objetivo de mitigar os riscos de admissão ao procedimento licitatório e de contratação de empresa ou profissional declarados inidôneos, ou a sua completa inobservância, aumenta o risco de responsabilização penal do agente público responsável pelo procedimento licitatório e pela contratação pública, seja em virtude da teoria da cegueira deliberada14, seja pela aplicação direta do conceito de dolo eventual15.

Portanto, entende-se que os órgãos e as entidades da Administração Pública, direta e indireta, devem implementar procedimentos e controles internos capazes de minimizar os riscos de contratação inidônea (CP. Art. 337-M), inclusive mediante adoção de recursos de tecnologia da informação e implementação de segregação de funções, tanto nos procedimentos licitatórios como nos de formalização e de aumento da vigência do prazo contratual.

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1 Lei 14.133/2021. Art. 156, inciso IV, § 5º e Art. 155, incisos de VIII a XII.

2 Lei 12.846/2013. Art. 5º.

3 Acórdão 1484/2022 - Plenário - Ministro Jorge Oliveira. Constatado superfaturamento decorrente da prática de sobrepreço em licitação cujos participantes estiveram reunidos em conluio, apresentando lances de cobertura ou se abstendo de apresentar propostas no certame, o débito deve ser imputado apenas ao licitante vencedor (contratado), enquanto os demais competidores podem ser punidos pelas fraudes ao processo licitatório, na forma de declarações de inidoneidade (art. 46 da Lei 8.443/1992) para participar de licitação na Administração Pública federal ou nos certames promovidos pelos estados, Distrito Federal e municípios a partir da aplicação de recursos federais.

4 Acórdão 59/2022 - Plenário - Ministro Walton Alencar Rodrigues. O uso de demonstrações financeiras inidôneas com a finalidade de demonstrar qualificação econômico-financeira justifica a declaração de inidoneidade da empresa responsável para participar de licitações no âmbito da Administração Pública Federal (art. 46 da Lei 8.443/1992), bem como de licitações realizadas por estados e municípios que contem com o aporte de recursos federais.

5 Acórdão 918/2023-Plenário - Ministro Augusto Nardes. A prova indiciária, constituída por somatório de indícios que apontam na mesma direção, é suficiente para caracterizar fraude a licitação, o que conduz à declaração de inidoneidade das empresas envolvidas para licitar com a Administração Pública Federal (art. 46 da Lei 8.443/1992).

6 Lei 14.133/2021. Art. 156. § 5º.

7 Precedente. Acórdão 1890/2022 - Plenário - Ministro Antonio Anastasia.

8 Lei 14.133/2021. Art. 160.

9 Acórdão 397/2024-Plenário - Ministro Anastasia. A criação de nova sociedade empresária com o mesmo objeto e por qualquer um dos sócios ou administradores de empresa declarada inidônea pelo TCU (art. 46 da Lei 8.443/1992), após a aplicação dessa sanção e no prazo de sua vigência, exige da Administração a adoção de providências necessárias à inibição de sua participação em licitações, em processo administrativo específico, assegurado o contraditório e a ampla defesa aos interessados.

10 Nos termos do art. 163 da Lei 14.133/2021.

11 Código Penal. Fraudar o caráter competitivo da licitação (Art. 337-F); fraudar a realização de ato de processo licitatório (Art. 337-I); fraude em licitação ou contrato (Art. 337-L); Corrupção ativa (Art. 333); Corrupção ativa em transação internacional (Art. 337-B).

12 Código Penal. Art. 337-M. Admitir à licitação empresa ou profissional declarado inidôneo. Pena - reclusão, de 1 (um) ano a 3 (três) anos, e multa.

13 Código Penal. Art. 337-M. § 1º Celebrar contrato com empresa ou profissional declarado inidôneo. Pena - reclusão, de 3 (três) anos a 6 (seis) anos, e multa.

14 Lei 14.133/2021. Art. 91. § 4º Antes de formalizar ou prorrogar o prazo de vigência do contrato, a Administração deverá verificar a regularidade fiscal do contratado, consultar o Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas (Ceis) e o Cadastro Nacional de Empresas Punidas (Cnep), emitir as certidões negativas de inidoneidade, de impedimento e de débitos trabalhistas e juntá-las ao respectivo processo.

15 Teoria da cegueira deliberada consiste em instituto do direito criminal que, por meio da ampliação do espectro conceitual de autor e partícipe de delitos, possibilita a responsabilização criminal daqueles que, deliberadamente, evitam o conhecimento sobre o caráter ilícito do fato para o qual concorrem, ou acerca da procedência ilícita de bens adquiridos ou movimentados (Soares, p. 114).

16 Código Penal. Art. 18. Diz-se o crime: I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.

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BRASIL. Presidência da República. Lei 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm. Acesso em 26 de março de 2024.

Presidência da República. Lei 12.846, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional e estrangeira. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm. Acesso em 26 de março de 2024.

Presidência da República. Lei 8.443, de 16 de junho de 1992. Dispõe sobre a Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8443.htm. Acesso em 26 de março de 2024.

Presidência da República. Decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em 26 de março de 2024.

SOARES, Jucelino Oliveira. A teoria da cegueira deliberada e sua aplicabilidade aos crimes financeiros. Revista Acadêmica Escola Superior do Ministério Público do Ceará. 2019. Disponível em https://www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2019/12/artigo-6.pdf. Acesso em 26 de março de 2024.

UNIÃO, Tribunal de Contas. Acórdão 397/2024 - TCU - Plenário. Relator Ministro Antonio Anastasia. Data da sessão: 6/3/2024. Disponível em https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/acordao-completo/acordao-completo-2631322. Acesso em 26 de março de 2024.

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Tribunal de Contas. Acórdão 918/2023-Plenário. Relator Ministro Augusto Nardes. Data da sessão: 10/5/2023. Disponível em https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/jurisprudencia-selecionada/jurisprudencia-selecionada-150622. Acesso em 26 de março de 2024.

Tribunal de Contas. Acórdão 1890/2022-Plenário. Relator Ministro Antonio Anastasia. Data da sessão: 17/8/2022. Disponível em https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/jurisprudencia-selecionada/jurisprudencia-selecionada-138201. Acesso em 26 de março de 2024.

Tribunal de Contas. Acórdão 1484/2022-Plenário. Relator Ministro Jorge Oliveira. Data da sessão: 29/6/2022. Disponível em https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/jurisprudencia-selecionada/jurisprudencia-selecionada-135565. Acesso em 26 de março de 2024.

Tribunal de Contas. Acórdão 59/2022-Plenário. Relator Ministro Walton Alencar Rodrigues. Data da sessão: 19/1/2022. Disponível em https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/jurisprudencia-selecionada/jurisprudencia-selecionada-125486. Acesso em 26 de março de 2024.

Tribunal de Contas. Acórdão 1986/2013 - TCU - Plenário. Relator Ministro Raimundo Carreiro. Data da sessão: 31/7/2013. Disponível em https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/acordao-completo/acordao-completo-1282927. Acesso em 26 de março de 2024.

Thiago da Cunha Brito

VIP Thiago da Cunha Brito

Auditor Federal de Controle Externo do Tribunal de Contas da União. Advogado. Mestrando em Direito Econômico e Desenvolvimento(IDP). LLM Direito Penal Econômico (IDP). Graduado em Direito (IDP).

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