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O contrato built to suit e o preço de mercado

Contratos BTS no Brasil promovem a locação de imóveis comerciais com especificações do locatário, incluindo prévia aquisição ou reforma, prazo determinado e condições pactuadas, permitindo renúncia à revisão de aluguéis.

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Atualizado em 9 de abril de 2024 14:49

     1. Introdução
Os contratos de locação built to suit ("Contratos BTS") têm encontrado grande espaço de difusão no Brasil, vendo sua utilização alcançar produtos imobiliários os mais diversos1.

Dentro de sua estrutura, os contratos BTS contemplam os seguintes elementos: (i) "prévia aquisição, construção ou substancial reforma" pelo empreendedor-locador ou por terceiros; (ii) especificação do imóvel "pelo pretendente à locação"; para que o imóvel seja então locado "por prazo determinado"; de modo que prevaleçam (iii) "as condições livremente pactuadas no contrato respectivo"; podendo ser (iv) "convencionada a renúncia ao direito de revisão dos aluguéis durante o prazo de vigência do contrato de locação"2.

É a presença desses elementos, atualmente disciplinados pelo art. 54-A, da lei 8.245, de 18/10/91 ("lei de locações")3, que confere aos contratos BTS a aptidão para bem promover o encontro de interesses entre quem pretende ocupar um imóvel não residencial, sem imobilizar capital, nem tampouco investir em aquisição, construção ou reformas, com os interesses daqueles que, em geral munidos de maior especialização, dispõem, portanto, de expertise e sobretudo capital para investir na aquisição, construção ou reforma substancial desse imóvel, customizando-o para o pretendente a ocupante.

Este, por sua vez, compromete-se a retornar esse investimento do empreendedor-locador, mediante pagamento de determinado número de aluguéis-parcelas, reajustáveis pelo índice de correção eleito contratualmente pelas partes, por um prazo definido à partida, em geral de 10 ou 15 anos.

Tais contratos contam com um modelo econômico e social, como também de distribuição de riscos, que lhes é muito próprio, e bastante diferente dos contratos de locação típicos, os quais têm por fim apenas disciplinar a cessão onerosa do uso e gozo de imóveis.

Os contratos BTS são conhecidos como "contratos de locação atípicos", expressão esta que é de ampla e disseminada adoção no mercado imobiliário brasileiro em geral. Essa expressão, ainda que inapropriada tecnicamente4, serve ao propósito prático de traçar a linha divisória jurídica que separa os contratos BTS dos contratos de locação típicos; embora ambos, ao fim e ao cabo, enderecem a locação de imóveis urbanos, fazem-no por meio de estruturas jurídicas distintas em sua essência socioeconômica.

Não obstante essas diferenças estruturais, ambas as modalidades contratuais estão sujeitas às disposições procedimentais da lei de locações. No caso específico dos contratos BTS, tal sujeição decorre do teor da parte final do caput do art. 54-A, onde lemos que, para tais contratos, prevalecerão "as disposições procedimentais previstas" na lei de locações.

Assim, ainda que o art. 54-A tenha tido por fim último justamente afastar dos contratos BTS a aplicação do regime de direito material das locações típicas, por razão de incompatibilidade de seus respectivos DNAs estruturais, a intersecção do conjunto desses contratos com os contratos de locação típicos permanece na submissão comum de ambas as modalidades contratuais às disposições procedimentais da lei de locações.

Em razão dessa intersecção de conjuntos, que por vezes encontra a incompreensão de determinados agentes em relação às diferenças de fundamentos socioeconômicos entre os contratos BTS e os contratos de locação típicos, determinados conceitos que são mais próprios dos contratos típicos, por vezes circulam em meio a discussões (judiciais ou arbitrais) que têm por objeto contratos BTS.

Foi o que ocorreu, por exemplo, com o conceito de "preço de mercado" no processo 1058270-93.2020.8.26.0100, que tramitou na 22ª Vara Cível, do Foro da Comarca da Capital do Estado de São Paulo, tendo como partes o banco Santander (Brasil) S.A. (requerente) e o Fundo de Investimento Imobiliário Rio Bravo Varejo - FII (requerido), no qual um alegado descolamento do valor do aluguel em relação a um dado preço de mercado foi apontado pelo requerente como um argumento (dentre outros) para tentar revisar o valor das prestações mensais no âmbito de um contrato de locação sob o regime built to suit5, que tinha o requerente como locatário, e o requerido como empreendedor-locador.

Sem pretensão de esgotar o assunto, este artigo visa justamente discutir o descabimento do uso desse argumento (i.e., o elemento "preço de mercado") quando tratamos de contratos BTS.

2. O Preço de Mercado

Contratos de locação em geral, típicos ou atípicos, compreendem uma série de elementos, dos quais o valor do aluguel é, via de regra, o mais importante para ambas as partes. Para a formação desse valor, contribuem vários fatores: área locada, prazo, garantia, localização e demais características do imóvel6.

Cada um desses elementos, em maior ou menor grau, participará da composição do valor final do aluguel; certamente, algumas cláusulas do instrumento contratual hão de ter um impacto maior na valoração do aluguel que outras - cláusulas que versem sobre alguns dos pontos acima referidos muito provavelmente terão maior destaque e importância na composição do valor do aluguel que aquelas mais ancilares, quase sempre padronizadas, que compõem a parte do contrato usualmente conhecida como "disposições gerais" (miscellaneous).

A título meramente ilustrativo, vale dizer que, dentre os elementos que impactam na formação do valor do aluguel, a localização é, por certo, um dos mais importantes, na tradução fiel do maior mantra do mercado imobiliário: "location, location, location".

O ponto é que, qualquer que seja o elemento considerado, para chegarmos ao preço de mercado precisaremos angariar uma base de dados que, dentro de um determinado espaço amostral (i.e., um conjunto definido de imóveis), permita-nos compará-los entre si (comparabilidade), pois na ausência de um conjunto de elementos comparáveis, não há como se chegar a esse parâmetro - não há o que se comparar, ou a comparação diz respeito a elementos não comparáveis.

O preço de mercado nada mais é, portanto, que um parâmetro de comparação, de ampla e disseminada utilização no mercado imobiliário, para orientar a formação do valor a ser adotado para uma determinada locação de imóvel7. No mínimo, o preço de mercado pode servir como norteador no estabelecimento do parâmetro-base para o assim chamado "preço pedido", ou seja, o preço inicial na negociação entre o proprietário/locador e o pretendente a locatário.

Para além de sua aplicação no âmbito das tratativas negociais com vistas à formação do contrato, o preço de mercado também encontra espaço nas locações quando o assunto é ação revisional, pois, pelo disposto no art. 19, da lei de locações, esse parâmetro é colocado na posição de principal balizador finalístico dessas disputas:

"Art. 19. Não havendo acordo, o locador ou locatário, após três anos de vigência do contrato ou do acordo anteriormente realizado, poderão pedir revisão judicial do aluguel, a fim de ajustá-lo ao preço de mercado." (grifamos)

Esse dispositivo integra as tais disposições procedimentais da lei de locações.

3. Não aplicabilidade do conceito de preço de mercado aos Contratos BTS

Ainda que os contratos BTS, como se pode extrair do próprio texto da parte final do caput do art. 54-A8, estejam sob a égide das disposições procedimentais da lei de locações, é-nos facultado, nos termos do §1º, do art. 54-A, convencionar (ou não) a renúncia ao "direito de revisão do valor dos aluguéis durante o prazo de vigência do contrato de locação".

Ora, ao convencionarmos tal renúncia, a utilidade do art. 19 da lei de locações cai por terra, e o preço de mercado o acompanha nessa queda, pois afinal o dispositivo que lhe serve de suporte deixa de ser aplicável. Isso ocorrendo, a referência a preço de mercado, antes mesmo de qualquer análise de pertinência conceitual, resulta inaplicável, para qualquer fim.

Porém, pensando exclusivamente no aspecto conceitual, convencionada ou não tal renúncia teria algum fundamento abordarmos essa variável - preço de mercado - quando tratamos dos contratos BTS e os imóveis compreendidos por essa modalidade contratual?

Como já abordado no início deste artigo, os contratos BTS são aqueles em que é avençada a "locação não residencial de imóvel urbano na qual o locador procede à prévia aquisição, construção ou substancial reforma, por si mesmo ou por terceiros, do imóvel então especificado pelo pretendente à locação, a fim de que seja a este locado por prazo determinado", e em relação aos quais, "prevalecerão as condições livremente pactuadas no contrato respectivo" (Art. 54-A, caput, da lei das locações).

Comumente, tais contratos resultam de um sofisticado ajuste comercial entre as partes (empreendedor-locador e locatário), por meio do qual se estabelece que o empreendedor-locador compra, constrói e/ou reforma substancialmente determinado imóvel, customizando-o, de modo a conferir a tal imóvel características sob medida (bespoke), encomendadas pelo locatário, a quem, por sua vez, normalmente interessa mais locar um imóvel com um grau maior de personalização - tal imóvel deverá contemplar características que, no todo, melhor atendam às necessidades do pretendente a ocupante.

Em contrapartida ao investimento do empreendedor-locador e como garantia de seu retorno, o locatário obriga-se a pagar aqueles aluguéis derivados do contrato BTS por um prazo determinado, sendo este, no mínimo, o necessário para que o empreendedor-locador possa obter o retorno de seus investimentos (i.e., investimento propriamente dito e lucratividade)9.

O contrato BTS tem, portanto, a singularidade como característica fundamental: Promove-se a criação de um bem novo, especificamente para atender a uma demanda única e específica.

Logo, para essa modalidade de contrato há que se levar em conta apenas aquilo que as partes convencionaram por meio do respectivo instrumento, de modo que, no tocante especificamente ao valor do aluguel, a lente de análise (tal como um olhar) deve se direcionar para dentro do contrato, a fim de buscar entender a complexa rede de interesses (direitos e obrigações) que formam o seu todo, compondo o quebra-cabeças da distribuição de riscos adotada pelas partes.

Pelo caminho de ideias percorrido até aqui, com razoável consistência podemos dizer que, para qualquer contrato BTS, não importa o que o mercado dita como preço para fins de locação, pois o valor do aluguel, no caso desses contratos, resulta da combinação de uma série de fatores endógenos próprios de cada um deles, tais como: Risco de crédito do locatário, investimento do empreendedor-locador na aquisição, construção ou reforma substancial do imóvel, e respectiva margem de lucro pretendida nesse investimento, dentre outros.

Além disso, é sabido que o valor pago pelo locatário ao empreendedor-locador, a título de aluguel, tem dupla função, pois deve não apenas garantir o retorno do investimento do empreendedor-locador, remunerando-o conforme o contrato, como também servir de contraprestação à ocupação, per se, do imóvel pelo locatário. Juridicamente, vale dizer, não há como dissociar uma função da outra nem distinguir os valores que supostamente caberiam a cada uma delas, pois fazem parte de um complexo negocial único e indivisível. Essa "separação" é apenas para fins conceituais e de melhor entendimento da natureza sui generis do contrato BTS.

Assim, para um determinado contrato BTS, o preço de mercado praticado em qualquer outra relação locatícia (não importando se típica ou atípica) é um elemento exógeno, completamente estranho à relação entre empreendedor-locador e locatário, estabelecida por meio daquele contrato. O mercado é, neste caso, insular, pois formado apenas por um locatário, justamente aquele com quem o empreendedor-locador contratou o contrato BTS. Ninguém mais.

Tem-se, assim, um espaço amostral formado por um único elemento; logo, a comparabilidade de lastros, considerando-se determinado conjunto de elementos, que é comum quando falamos de preço de mercado em relação a contratos de locação típicos, está ausente (não encontra aplicação) nos contratos BTS. Daí que, para fins de determinação do valor do aluguel, o preço de mercado não é outro senão o preço praticado para aquele, e somente aquele, contrato BTS, lui-même.

Entendemos, portanto, que seria dentro dessa circunscrição semântica restrita10, pois, que a expressão preço de mercado deve ser compreendida quando nos referimos a contratos BTS.

Oportuno lembrar de uma cláusula comum nos contratos BTS, que justamente serve ao propósito de afastar qualquer desvirtuamento de compreensão sobre a não aplicação do preço de mercado a essa modalidade de negócio jurídico. Essa cláusula, mutadis mutandi, em geral conta uma redação nos seguintes termos: "As partes declaram, neste ato, que o valor do aluguel não foi previsto em função das condições de mercado para locação, não estando, portanto, sujeito, para qualquer fim, ao disposto no art. 19 da lei do inquilinato".

4. Conclusão

Por contarem com fundamentos econômicos e funcionais muito próprios e particulares, resulta que os contratos BTS são singulares na sua essência. Daí que, para tais contratos, os elementos materiais de formação do valor de aluguel são eminente e intrinsecamente endógenos (intracontratuais), não havendo o porquê de se falar, para fins de formação desse valor11, no conceito de preço de mercado, conceito esse de uso comum e generalizado para contratos de locação típicos.

Ante a radical singularidade dos contratos BTS, falta-lhes elementos para composição de um espaço amostral, para além daquela relação contratual única e singular entre o empreendedor-locador e o locatário.

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1."Built to suit: como está esse mercado no Brasil", disponível em: https://blog.conectaimobi.com.br/built-to-suit/. Acesso em: 04 de abril de 2024.

2. Esses elementos integram, ipsis litteris, o próprio teor do Art. 54-A, caput e §1º, da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991.

3. Introduzido pela Lei nº 12.744, de 19 de dezembro de 2012.

4.  Inapropriada tecnicamente, pois traz uma contradição em termos: os contratos de locação são típicos, logo, por princípio, não caberia designá-los "atípicos".

5. No caso, um contrato de sale and leaseback.

6. A ação desses elementos na formação do preço do aluguel dá-se em conjunto com a oferta e demanda, que são elementos externos ao contrato, mas cujo impacto no processo de formação do seu "preço" é claro.

7. Uma metodologia técnica para o cálculo do preço de mercado, que inclusive aborda métodos diversos (que não estão sendo considerados neste artigo), pode ser encontrada na NBR 14653-1:2001, da Associação Brasileira de Normas Técnicas - ABNT.

8. Como afirma José Ortega y Gasset, em seu "Qu'est-ce que lire", em tradução livre da edição francesa: "[D]ito de outra forma, 'ler' começa necessariamente por um projeto de perfeita compreensão de um texto. No entanto, isso é impossível. Podemos, quando muito, ao preço de um grande esforço, deduzir uma parte mais ou menos importante daquilo que o texto quis dizer, comunicar, declarar, mas sempre subsistirá um resíduo 'ilegível'".

9. Nos termos do §2º, do art. 54-A, "[e]m caso de denúncia antecipada do vínculo locatício pelo locatário, compromete-se este a cumprir a multa convencionada, que não excederá, porém, a soma dos valores dos aluguéis a receber até o termo final da locação.". Este dispositivo representa mais um reforço na segurança de retorno, pelo empreendedor-locador, de seu investimento em aquisição, construção ou substancial reforma de determinado imóvel, para fazer frente às demandas de customização do pretendente a ocupante.

10. Que, de qualquer forma, no caso de renúncia ao direito à revisional, resta, aqui mais ainda, inaplicável para qualquer fim.

11. Ou mesmo para sua eventual revisão, se tal direito puder ser aplicado, diante de outras circunstâncias de fato e de direito, a serem analisadas em determinado caso concreto.

Farley Menezes

VIP Farley Menezes

Advogado pela Universidade de São Paulo. Atuação nos segmentos do Mercado Financeiro, de Capitais, Fusões e Aquisições (M&A), Private Equity, Societário, Imobiliário e Contratos

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