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Da vedação ao negócio consigo mesmo e da procuração em causa própria

Vedação ao negócio consigo mesmo visa evitar conflito de interesses entre representante e representado, não se referindo a contratações individuais.

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Atualizado às 13:18

Há uma premissa fundamental para compreender a vedação ao negócio consigo mesmo (art. 117, do Código Civil1): é evidente e inequívoco que, quando o ordenamento jurídico veda a celebração do auto negócio, não se quer impedir que alguém contrate com si próprio, o que só seria explicado pela psicanálise, através do estudo da multipersonalidade do indivíduo (transtorno dissociativo de identidade). Não faz qualquer sentido que exista uma vedação expressa na norma, proibindo, por exemplo, que permita a venda para si próprio ou, por absurdo, que o agente se outorgue procuração2.

Não é esse o espírito3 da vedação ao auto negócio, como é óbvio ululante4.

O que o ordenamento jurídico busca impedir, quando da proibição do negócio consigo próprio, é que o representante, em nome do representado, firme negócio com o representante, o que, genericamente, poderia gerar conflito de interesses.

É fácil perceber que a vedação ao autocontrato, firmado pelo representado, através do representante, que se contrata a si próprio (perdoe-me pelo pleonasmo literário), é norma geral, podendo ser excepcionada através da Procuração em Causa Própria, prevista no art. 685, do CC:

Art. 685. Conferido o mandato com a cláusula "em causa própria", a sua revogação não terá eficácia, nem se extinguirá pela morte de qualquer das partes, ficando o mandatário dispensado de prestar contas, e podendo transferir para si os bens móveis ou imóveis objeto do mandato, obedecidas as formalidades legais.

Da doutrina, há excelentes definições sobre a procuração em causa própria:

"Normalmente, o mandato em causa própria está inserido em outras relações negociais nas quais o mandante já teve esvaziado todo o seu interesse jurídico e, por isso, concede a um terceiro poderes para plenamente atuar em seu nome. Enfim, são negócios celebrados no interesse exclusivo do outorgado, correspondendo, via de regra, a situação jurídica em que o outorgante já viu os seus fins plenamente realizados. Subjacente ao contrato de mandato em causa própria, são localizáveis, frequentemente, outros negócios (contratos atípicos ou contratos interligados). Assim, como os fins almejados pelo outorgante já foram atendidos, conferem-se poderes ao mandatário para, dali em diante, atuar em seu próprio interesse."5

"O mandato ou procuração em causa própria (in rem suam) é uma exceção à vedação do autocontrato.

Sua utilização é extremamente comum para a celebração de contratos de compra e venda, com o fito de facilitar a transmissão da propriedade, evitando a necessidade da 'presença física' do alienante, admitindo-se a sua 'presença jurídica' por meio do mandatário, que é o principal interessado no cumprimento do negócio.

Assim, a procuração em causa própria é estabelecida no interesse exclusivo do mandatário, que recebe poderes para desempenhar o mandato, com a transmissão de bem de titularidade do mandante em seu favor (...)."6

A característica principal da procuração em causa própria, que a distingue da representação contratual normal (em que o outorgado age em nome do outorgante, para defender os interesses do próprio outorgante), decorre dos seus efeitos e dos desmembramentos jurídicos. É fato que, no exercício de direito potestativo, a regra é que o mandante pode revogar o instrumento de representação a qualquer tempo, por se tratar de um negócio jurídico que tem imbuído o elemento da fidúcia, de confiança, em relação ao mandatário.

Porém, como na procuração em causa própria o representante (outorgado/mandatário) age em seu nome, na defesa de seus direitos, não há como permitir que o representado (outorgante/mandante) mantenha a liberdade de revogar a procuração, o que inviabilizaria o negócio jurídico como um todo e a razão de ser do instituto.

E, como se não bastasse o diferencial da irrevogabilidade do negócio jurídico, o curioso é que nem a morte do mandante extinguiria os efeitos do mandato sem representação, pois ainda assim persistiria (mesmo após o óbito do mandante, repita-se, como se depreende do art. 685, do CC) o interesse do negócio por parte do mandatário.

Não há, ao menos dos apontamentos identificados, qualquer registro de alteração do conceito pela Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, o que é excelente notícia para manter hígida a figura tão importante para os negócios jurídicos, especialmente para aqueles de efeitos diferidos.

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1 A vedação, como não poderia deixar de ser, até pela origem romana do ordenamento civil, também consta da norma brasileira, penalizando, no plano da validade, com a anulabilidade do negócio jurídico:

Art. 117. Salvo se o permitir a lei ou o representado, é anulável o negócio jurídico que o representante, no seu interesse ou por conta de outrem, celebrar consigo mesmo.

2 O que não deve ser confundido com advogar em causa própria. É translúcido que o advogado detém a capacidade postulatória, podendo ser parte, ativa ou passiva, de um processo judicial. Embora não seja profissionalmente recomendado, resta claro que o advogado poderá ser seu próprio representante judicial, inexistindo razão para que formalize, através de instrumento procuratório, a outorga de poderes para si próprio, o que seria uma excrescência jurídica.

3 Parafraseando Montesquieu, em sua genial obra De l'esprit des lois.

4 Em referência ao não menos genial Nelson Rodrigues, jornalista e escritor brasileiro, nascido em Pernambuco, mas Fluminense de coração.

5 DE FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson - Curso de Direito Civil vol. 4 - Contratos. 3a ed. Salvador: Editora Juspodium, 2013, pag. 924.

6 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA, Rodolfo - Novo Curso de Direito Civil vol. 4, tomo 2 - Contratos em Espécie. 3a ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, pag. 387.

Pedro Linhares Della Nina

VIP Pedro Linhares Della Nina

Advogado e Professor da Universidade Candido Mendes/RJ, mestre em Ciências Jurídicas pela UAL-Lisboa, pós-graduado em Direito Empresarial e em Litigation, ambos pela FGV-Rio de Janeiro.

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