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Município de Mariana x BHP e, agora, também Vale: Por que uma ação "tão brasileira" será julgada por uma corte britânica?

João Gabriel Volasco Rodrigues

Ação de indenização por rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, envolve £40 bilhões e é julgada por tribunal inglês, levantando questões sobre jurisdição e consequências legais globais.

sábado, 4 de maio de 2024

Atualizado em 3 de maio de 2024 14:41

Muito se fala a respeito da ação por meio da qual cerca de 700.000 autores buscam indenizações pela tragédia envolvendo o rompimento da barragem de Fundão, localizada no município de Mariana, e antes operada pela mineradora Samarco Mineração. Impressionam não apenas o número de vítimas que pleiteiam por meio da famigerada ação, como também a vultuosa cifra demandada pelos autores: £40 bilhões (ou R$240 bilhões).

O que para muitos ainda não está claro é: mas por que uma ação oriunda de um fato gerador ocorrido no Brasil, cuja consumação do dano também se deu em solo brasileiro, ato esse causado por conduta de uma empresa brasileira, em face de pessoas físicas e jurídicas com nacionalidade e domicílios no Brasil, será julgada por um tribunal inglês?

Ora, o que se propõe com o presente artigo é, mais do que buscar esclarecer a base legal utilizada pelas cortes inglesas para aceitar jurisdição e julgar uma ação "tão brasileira", mas chamar a atenção para as relevantes consequências que procedimentos judiciais como município de Mariana & others v BHP Group (UK) Ltd & others podem trazer para os ambientes empresarial e jurídico no mundo.

De início, cabe aduzir que o direito inglês, diferentemente do brasileiro, é baseado na chamada common law rule. Com o perdão do anglicismo, diferentemente da nossa civil law rule, o arcabouço legal que embasa o ordenamento jurídico inglês deriva de julgados das cortes que, após o devido processo legal, acabam por se tornar precedentes e têm de ser seguidos pelos tribunais do país.

Não é a intenção do presente artigo divagar sobre as peculiaridades dos sistemas de precedentes e leis, aplicáveis Inglaterra e Brasil, respectivamente, mas sim fazer uma breve explanação acerca do racional de assunção de jurisdição pelas cortes inglesas no caso de Mariana.

Para entendermos a razão por trás de a ação estar nas cortes inglesas, sugere-se fazer uma breve recapitulação dos fatos relacionados ao caso. Em novembro/15, a barragem de Fundão, situada no município de Mariana, colapsou, liberando cerca de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos, que acabaram por levar a óbito 19 pessoas e causando danos a regiões adjacentes ao município, por meio dos rejeitos levados pelo Rio Doce até o Oceano Atlântico.

A origem da tragédia foi a operação da mineradora Samarco Mineração S.A., uma joint venture detida integralmente e igualmente por Vale S.A. e BHP Billiton Brasil Ltda., essa última um veículo brasileiro dos grupos BHP Group PLC e BHP Group Limited, incorporados no Reino Unido e Austrália, respectivamente.

Os demandantes são cerca de 732 mil pessoas físicas e jurídicas, instituições religiosas e municípios, todas (ou ao menos a enorme maioria) com nacionalidade (ou local de incorporação para pessoas jurídicas) brasileira e com residência e domicílio também no Brasil.

Como já é de se imaginar, o ângulo jurisdicional que os requerentes se valeram para acessar a justiça no Reino Unido, e não no Brasil, deriva do fato de que a companhia causadora tinha como uma de suas acionistas um grupo empresarial estrangeiro, com sedes, como já dito, no Reino Unido e na Austrália.

A Corte de Apelação inglesa (Court of Appeal), após conceder permissão para que os requerentes recorressem da decisão que havia negado jurisdição aos afetados pelo desastre1, proferida pela High Court of Justice2, entendeu por bem reconhecer as cortes inglesas como competentes para julgar a causa, tanto contra a entidade BHP do Reino Unido, quanto contra BHP da Austrália, em decisão posteriormente confirmada pela Suprema Corte (UK Supreme Court). A decisão é interessante não apenas pelas consequências que traz para o cenário jurídico e comercial global, mas por tangenciar duas das mais relevantes bases jurisdicionais: a Recast Brussels Regulation3, aplicável aos países pertencentes à União Europeia, e as chamadas English common law rules ou service of proceedings, atualmente vigente no sistema inglês.

Trataremos primeiro da Recast Brussels Regulation, que versa sobre jurisdição, reconhecimento e exequibilidade de sentenças em questões civis e comerciais, e que era aplicável ao Reino Unido antes do Brexit, a qual foi utilizada como base para demandar em face da entidade inglesa da BHP.

De início, cumpre salientar que a regra geral relativa a jurisdição, prevista no Art. 4 da Recast Brussels Regulation, dispõe que pessoas domiciliadas em um estado membro da União Europeia devem ser demandados nas cortes do referido estado membro4. Todavia, como já explicado acima, a pessoa causadora do dano e, portanto, contra quem se deveria demandar, foi uma companhia brasileira (Samarco Mineração S.A.), de forma que por uma aplicação pura do art. 4 do Recast Brussels Regulation, as cortes inglesas teriam de negar jurisdição.

Ocorre que as cortes inglesas vêm entendendo que as sociedades controladoras (parent companies) têm um dever de vigilância e cuidado (duty of care) àqueles afetados por atos praticados pelas sociedades subsidiária. O aludido entendimento, emanado pelas cortes inglesas nos casos Lungowe v. Vedanta5 e Okpabi v. Royal Dutch Shell Plc6, abriu uma porta para que sociedades controladoras, com domicílio no Reino Unido, fossem demandadas por atos praticados por suas controladas e, por consequência, que tais ações fossem propostas perante as cortes inglesas, uma vez que se estaria demandando diretamente contra a parent company, essa sim domiciliada no Reino Unido, nos termos do art. 4 do Recast Brussels Regulation.

O referido duty of care, nos termos das diretrizes estabelecidas pela Suprema Corte Inglesa, pode ser inferido caso haja (i) similitude nos negócios praticados entre companhia controladora e subsidiária, (ii) ciência por parte da controladora acerca das ações praticadas pela subsidiária, (iii) interferência, controle, supervisão ou assessoria por parte da controladora com relação às operações da subsidiária e (iv) estabelecimento e implementação de políticas e diretrizes pela controladora para cumprimento por parte da administração da subsidiária.

E foi justamente com base na aludida construção, lastreada no dever de vigilância e cuidado atribuível às parent companies vis-à-vis suas subsidiárias, bem como na aplicação da regra geral do art. 4 do Recast Brussels Regulation, aplicável às sociedades domiciliadas na União Europeia, que a Court of Appeal, e posteriormente a Supreme Court do Reino Unido, entenderam que o processo deveria seguir com relação à entidade inglesa da BHP, pelo fato de possuir um duty of care com relação à Samarco, sob a competência das cortes do Reino Unido.

Compreendido o racional para admissão de jurisdição pelas cortes do Reino Unido com relação à entidade inglesa da BHP, propõe-se entender qual a base legal utilizada pela Court of Appeal aceitar a ação também contra a entidade australiana da BHP.

De início, cumpre salientar que, por ser uma entidade incorporada na Austrália e não domiciliada em país pertencente à União Europeia, o Recast Brussels Regulation não se aplicaria à BHP Group Limited (BHP Austrália).

Dessa forma, as cortes inglesas, ao analisarem o pleito de jurisdição em face da entidade BHP Austrália, aplicaram a teoria hoje vigente para pessoas físicas e jurídicas domiciliadas no Reino Unido, comumente conhecidas como English common law rules  ou service of proceedings. Como já destacado acima, com a decisão pelo Brexit, o regime do Recast Brussels Regulation deixou de ser aplicável ao Reino Unido, levando os países pertencentes ao reino a retomarem as regras vigentes anteriormente.

Diferentemente da regra geral de jurisdição prevista no art. 4 do Recast Brussels Regulation, que tem como elemento principal para aferição de jurisdição o domicílio, por ser matéria constitucional de proteção do réu, nas chamadas English Common Law Rules o aspecto jurisdicional é matéria de procedimento, devendo se dar a partir do service of claim. Tal conceito nada mais é do que uma espécie de notificação que deve ser enviada ao réu situado no Reino Unido, para adverti-lo a respeito da ação, sendo essa uma condição para sua propositura.

Para que fique claro, tal notificação (service) só pode ser feita caso o réu esteja situado na Inglaterra, de forma que caso o autor queira demandar em face de réu não presente em solo inglês, deve pedir permissão para as cortes inglesas para notificá-lo fora do país. A breve explanação é relevante para se entender o racional por trás das English common law rules, qual seja a abordagem territorial, de presença em solo inglês, para que as cortes inglesas admitam uma ação em face de determinado indivíduo ou pessoa jurídica.

Não é também o intuito do artigo discutir o conceito de presença de uma companhia em solo inglês, sob a ótica das cortes inglesas, mas apenas para efeito de ilustração, há precedentes no sentido de que uma companhia realizar negócios por apenas nove dias na Inglaterra7, ou apenas locar um imóvel em Londres, sem realizar nenhum tipo de negócio relacionado ao seu objeto social por meio de tal imóvel8, podem ser consideradas presentes em território inglês e, portanto, se submeterem à jurisdição do Reino Unido.

Dito isso, e restando clara a interpretação nada restritiva feita pelas cortes inglesas quanto ao conceito de presença, a Court of Appeal no caso de Mariana, na decisão que permitiu que os autores apelassem da decisão que havia declinado jurisdição, aplicou o chamado princípio de two-stage test, estabelecido quando do julgamento do caso Spiliada9, que demanda os seguintes questionamentos: (i) podem as cortes inglesas, com base em sua lei processual, assumir jurisdição sobre o caso? Se a resposta for positiva, questiona-se: (ii) devem as cortes inglesas assumir jurisdição sobre o caso?

O segundo questionamento é a ratio por trás da doutrina do forum non conveniens, que prevê que ainda que as cortes inglesas possam assumir jurisdição sobre o caso, devem os julgadores questionarem se são eles a corte em melhor posição, a partir dos elementos fáticos do caso, para decidirem a questão. Em outras palavras, devem os julgadores fazer uma análise sobre se são de fato o fórum natural para dirimir a lide.

No caso de Mariana, foram analisados quatro elementos: (i) o ilícito civil (tort) ocorreu no Brasil; (ii) a lei material aplicável ao caso é a lei brasileira; (iii) as cortes inglesas estariam muito menos acessíveis à maioria das partes e testemunhas, sem falar das dificuldades linguísticas; e (iv) o juiz da disputa envolvendo as partes no Brasil já detinha bom conhecimento das complexidades das ações movidas no Brasil, em contrapartida às cortes inglesas que teriam que começar do zero.

A despeito de os elementos para análise sob o prisma do forum non coveniens inegavelmente levarem a disputa ao Brasil, o entendimento adotado pela Court of Appeal no caso de Mariana considerou o segundo aspecto da parte (ii) do teste de Spiliada, ao dispor que ainda que o réu demonstre que existe fórum mais adequado para julgar a causa, caso o autor logre êxito em demonstrar que há risco de que um julgamento justo não seja obtido na jurisdição supostamente mais próxima dos elementos fáticos do caso, as cortes inglesas assumirão jurisdição, exercendo sua prerrogativa de garantidora da justiça.

No caso em discussão, a Court of Appeal analisou uma série de ponderações dos experts brasileiros sobre a ferramenta da ação civil pública no Brasil, para concluir que haveria um risco real que uma nova ação civil pública no Brasil para os autores da ação inglesa não seria viável, e que os municípios presentes na ação inglesa não estariam dispostos a iniciar novas ações civis públicas contra os réus no Brasil10.

A postura paternalista da jurisprudência jurisdicional das cortes inglesas, ao mesmo tempo em que pode ser vista sob um viés positivo de protecionismo àqueles submetidos a jurisdições cujos regimes jurídico e político não garantam o devido acesso à justiça, pode também se mostrar preocupante, ao passo em que implica naturalmente em uma avaliação discricionária pelas cortes inglesas sobre a qualidade de acesso à justiça em outros países.

A mensagem que se pretende deixar é sobre as consequências que pessoas físicas e jurídicas podem estar sujeitas ao viverem e operarem em um mundo cada vez mais globalizado, não apenas sob o prisma econômico, mas, como se vê em município de Mariana & others v BHP Group (UK) Ltd & others, também sob o prisma legal.

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1 Município de Mariana v BHP Group (UK) Ltd [2022] EWCA Civ 951. Disponível em: https://www.bailii.org/ew/cases/EWCA/Civ/2022/951.html

2 Município de Mariana v BHP Group (UK) Ltd [2020] EWHC 2930 (TCC). Disponível em: https://www.bailii.org/ew/cases/EWHC/TCC/2020/2930.html

3 Regulation (EU) No 1215/2012 of the European Parliament and of the Council of 12 December 2012 on jurisdiction and the recognition and enforcement of judgments in civil and commercial matters (recast).

4 Article 4 1. Subject to this Regulation, persons domiciled in a Member State shall, whatever their nationality, be sued in the courts of that Member State.

5 Vedanta Resources plc and another v. Lungowe and others and Okpabi and others v. Royal Dutch Shell lc and another [2019] UKSC 20.

6 Okpabi and others v. Royal Dutch Shell Plc and another [2021] UKSC 3.

7 Dunlop Pneumatic Tyre v Cudell [1902] 1 KB 342

8 South India Shipping v Expo-Impo Bank of Korea [1985]

9 Spiliada Maritime v Cansulex [1986] 3 All ER 843 (HL)

10 §§113 a 122 de Município de Mariana v BHP Group (UK) Ltd [2022] EWCA Civ 951. Disponível em: https://www.bailii.org/ew/cases/EWCA/Civ/2022/951.html

João Gabriel Volasco Rodrigues

João Gabriel Volasco Rodrigues

Advogado, pós-graduado em direito societário e mestrando em resolução de disputas sob a perspectiva de direito comparado e internacional na Queen Mary University of London.

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