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Entre a concorrência e a ética ambiental nas contratações com o Poder Público

Como estabelecer critérios que prestigiem o meio-ambiente sem descuidar da ampla concorrência nas contratações com o setor público.

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Atualizado às 09:03

O mundo está mais quente. Podemos sentir isso a cada bolsão de calor que invade o continente pelo mar. Lugares que nunca sofreram com enchentes estão sendo inundados pelas águas de tempestades que parecem não cessar. O mais radical dos negacionistas hoje hesita em dizer que não estamos sendo afetados por um aumento de temperatura global, que vem sendo alertado por décadas por cientistas ambientais. O fato é que esperamos o limiar das tragédias para nos darmos conta de que somos responsáveis pelo meio-ambiente, pela nossa e pela próxima geração. Pessoas jurídicas de direito internacional, com pompa e circunstância, assinam tratados internacionais buscando mitigar os efeitos daquilo que é inexorável.

Mas não apenas isso: Refletindo a preocupação das grandes nações, os mercados mundiais parecem se juntar em uma cruzada contra o poluidor, estabelecendo novos critérios para se fazer negócio dentro de um capitalismo que tem uma grande parcela de responsabilidade nesse jogo climático.

E assim critérios de governança baseados em boas práticas ambientais se tornam uma exigência para empresas de todos os portes, como se fosse uma carteira para ingressar no clube dos que "estão fazendo a sua parte" na construção de um mundo possível para os que virão no futuro incerto. Certificações ambientais se tornaram um ativo extremamente importante para grandes negociações e as relações contratuais refletem isso muito bem.

Um dos maiores players na circunscrição das relações contratuais é o Poder Público, e justamente ele não poderia ir na contramão da busca por um mundo com qualidade de vida. Assim, orientado por valores ambientais, a estratégia das contratações que obedecia (na maioria das vezes) critérios de economicidade e técnica passou a ter por norte também o valor do desenvolvimento sustentável.

Obviamente que tal regulação no eixo das contratações públicas não se deu em um susto. A constituição vigente foi pioneira (em escala mundial) em ter um capítulo inteiramente dedicado ao meio-ambiente. Não bastasse esse privilégio, o meio ambiente é um dos vetores que regulam a atividade econômica no Brasil, conforme pode ser lido do art. 170 que inaugura o capítulo sobre a ordem econômica. Isso significa que toda a atividade econômica deve respeitar o meio ambiente na condução dos negócios (art. 170 VI). Essa previsão está no texto original da constituição. Em 2003, A Emenda Constitucional 42 estabeleceu que o Estado (lato sensu) daria "tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação";      

Pouco a pouco, a legislação brasileira foi incorporando a governança ambiental como um paradigma na construção das relações com o setor privado. Assim, em 2010, a lei geral de licitações e contratos (a revogada lei 8.666/93) passou a prever como critério de contratação com a Administração Direta a promoção do desenvolvimento nacional sustentável.i

Com o advento da nova lei geral de licitações e contratos (lei 14.133/21) houve uma mudança que foi pouco percebida pela doutrina. Se no diploma anterior a promoção do desenvolvimento nacional sustentável era uma diretriz, na nova legislação torna-se princípio. E como princípio, norma complexa de tessitura flexível, é mandamental para o agente público nas suas escolhas. Além disso, nos termos do art. 11 da citada lei geral, o desenvolvimento sustentável é, além de princípio, um objetivo a ser perseguido na licitação. Trata-se de uma bomba retórica armada para o gestor público incauto: O que vem a ser o desenvolvimento nacional sustentável? Na prática trata-se do espelhamento das práticas de governança social e ambiental que o mercado consagrou, aliada a uma preocupação de que as escolhas administrativas sejam capazes de gerar o desenvolvimento do próprio país, cortejando o bem produzido segundo critérios de inovação nacional. Interessa-nos aqui, especificamente, o pilar ambiental. Cada vez mais, torna-se mandatório para o administrador público fazer escolhas (procedimentais e contratuais) que reflitam uma preocupação com o meio ambiente.

Significa dizer que nas licitações e contratações administrativas, o administrador deve dar preferência a produtos que sejam ambientalmente corretos; bens que não produzam resíduos tóxicos, que sejam eles mesmos atóxicos, que sejam recicláveis, que sejam biodegradáveis.

A produção industrial desde o século XIX não se preocupou com o impacto ambiental do que produzia. Assim todo um sistema de linha de produção foi desenvolvido - ao longo de dois séculos - produzindo plástico, zinco, aço, celulose. Em determinado ponto da linha do tempo, esse sistema de produção foi questionado. As empresas, para se adequarem a uma nova ética geracional, passaram a fazer investimentos com o objetivo de atenuar os efeitos poluentes dos seus produtos. Ser ambientalmente correto se tronou um ativo e passou a ser uma tecnologia, no sentido grego da palavra: Um saber fazer.

Do outro lado da janela, o Estado (lato sensu) passou a procurar no mercado empresas que fornecessem bens e serviços ambientalmente corretos para se justificar perante uma sociedade cada vez mais faminta dessa nova ética de um futuro sustentável.

As contratações pela Administração Pública que sempre almejaram a melhor oferta em uma concorrência ampla, vinculada pela isonomia entre os proponentes, passou a privilegiar também uma oferta ambientalmente correta, e isso, muitas vezes, põe em sacrifício regras de isonomia e de ampla concorrência prejudicando a melhor oferta do ponto de vista econômico para o Estado. Se, por exemplo, um departamento de trânsito precisa de um aparelho que meça eventuais índices de álcool nos motoristas, ele vai buscar a empresa que forneça aparelhos tecnicamente de qualidade a um melhor preço de mercado. Essas eram as regras de julgamento mais utilizadas no sistema licitatório contemporâneo; assim se depreende do art. 33 da lei geral de licitações. Todavia, o parágrafo primeiro do art. 34 da mesma lei, determina que os custos indiretos, que muitos traduzem como externalidades,ii devem ser levados em consideração na avaliação do melhor preço na oferta. Dentre essas externalidades, está a questão da melhor solução ambiental. No exemplo do aparelho para medir os índices de álcool nos motoristas, o administrador público possui autorização legal para exigir na licitação que tais aparelhos sejam ecologicamente corretos. Tal exigência impõe um ônus tecnológico para as empresas.

Imaginemos que o Departamento de Trânsito exija que os aparelhos sejam biodegradáveis. Não há empresas que ofereçam aparelhos biodegradáveis ou há apenas uma empresa que possui o bem dentro das exigências feitas pelo bem-intencionado administrador. O choque de realidade que se impõe ao certame finda por prejudicar a ampla concorrência, causando um problema na oferta do produto que poderá nem ser feita ou ainda ser feita a um preço que frustre a previsão orçamentária do órgão. O mundo começa a se adequar às exigências da ética ambiental, mas esse processo é lento, uma vez que pressupõe estudos, testes e patentes que engessam ainda mais a pretensão de ampla concorrência da Administração Pública. Como ofertar a melhor contratação ao Estado e, ao mesmo tempo, ser ambientalmente correto?

Em primeiro lugar, admitindo que isso nem sempre será possível. Mas quando for, deve-se levar em consideração que a solução ambiental deve caminhar lado a lado com a ampla concorrência. Se é feita uma exigência de sustentabilidade ambiental que inviabiliza a competição, o certame pode ser anulado por ter restringido sobremaneira a concorrência. E esse é o pior dos mundos para a gestão pública. 

Boa parte dos problemas advindos da convivência muitas vezes antagônica entre os dois princípios (ampla concorrência e desenvolvimento sustentável) vai se resolver nas fases que antecedem a confecção do edital.iii Uma boa pesquisa de mercado dará ao gestor público a dimensão da realidade em que deverá se inserir sua boa vontade. Essa pesquisa é o primeiro passo para o estudo técnico preliminar que informará se é possível fazer uma escolha ambientalmente correta. Ao observar que a oferta do que se pretende contratar quedará restringida pela boa intenção ambiental, frustrando a concorrência, o gestor público deve abdicar da exigência, fundamentando sua decisão em não concretizar ali, na prática, o princípio socioambiental. Aliás, seja na presença ou na ausência da possibilidade de se buscar um bem produzido de acordo com a nova ética ambiental, a decisão do gestor público deve ser muito bem fundamentada, inclusive através de critérios objetivos que permitam seu questionamento e controle pelos administrados.

Não existe um único meio de ser ambientalmente correto. No seu art. 26, a lei geral de licitações estabelece que a preferência a produtos ambientalmente corretos poder transitar entre processos de reciclagem e biodegradação. Há muito mais bens passíveis de reciclagem, uma tecnologia com mais tempo de existência no mercado, do que bens biodegradáveis. Em ambos os casos, a solução se adequa ao princípio do desenvolvimento sustentável. Se o administrador percebe que a biodegrabilidade é um requisito que tende a restringir a concorrência, deve dar preferência à reciclagem como elemento socioambiental que legitime, perante a nova ética legislativa, sue escolha.

Uma licitação em que a tônica é a massiva desclassificação por não atendimento da exigência de sustentabilidade ambiental é um indício que há algo estranho no Reino da Dinamarca.

Bem por isso, o TCU, no acórdão 1.666/19, alertou para os casos em que a regra de sustentabilidade leva à desclassificação de grande parte dos licitantes, recomendando ao órgão (no caso o Tribunal Regional Federal da 2ª Região) que fizesse uma análise de mercado antes de estabelecer uma exigência tão restritiva (no caso a certificação CTF do Ibama) que trouxesse mais prejuízo do que benefício na obtenção de um bem.iv

Todas essas considerações podem ser resumidas em uma palavra: Ponderação. Mas uma ponderação prima-irmã da proporcionalidade, sobretudo nas decisões administrativas que buscam um mundo melhor, mas que também têm que considerar que não vamos resolver dois séculos de industrialização poluidora em vinte anos de conscientização ambiental. Em determinados casos, a melhor solução ambiental restringirá ou tornará impossível a concorrência. As pressões legítimas por um futuro de bem-estar devem sempre se lembrar que a realidade não é tão simples quanto escrever um princípio em uma norma. A realidade é quente, é úmida e vem nos alertando há várias décadas que não vai adiantar querer resolver tudo de uma só vez. Já estamos pagando esse preço na conta do ar-condicionado que provavelmente possui o selo de ambientalmente correto.

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i Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.     

ii Justen Filho, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratações administrativas (Portuguese Edition) (p. 477). Thomson Reuters Revista dos Tribunais. Edição do Kindle.

iii Nesse sentido, observar o Guia Nacional de Contratações Sustentáveis. Brasil. Advocacia-Geral da União (AGU). Consultoria-Geral da União. Guia Nacional de Contratações Sustentáveis. 6a ed. Barth, Maria Leticia B.G; Bliacheris, Marcos W.; Brandão, Gabriela da S.; Cabral, Flávio. G.; Clare, Celso V.; Fernandes, Viviane V. S.; Paz e Silva Filho, Pereira, Rodrigo M.; Santos, Murillo Giordan; Villac, Teresa.

iv "9.6.1. avalie a conveniência e a oportunidade de rever as exigências contidas no item 7.2.1 do edital do Pregão 7/2019, quando da ocorrência de outras licitações promovidas pelo órgão para aquisição de objeto similar, tendo em vista o número excessivo de desclassificações ocorridas no certame, de forma a adotar requisitos técnicos e exigências que o mercado está preparado para atender, sem prejuízo de fomentar a sustentabilidade ambiental e buscar garantir a qualidade dos produtos licitados;" disponível em https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/documento/acordao completo/*/NUMACORDAO%253A1666%2520ANOACORDAO%253A2019/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/0/%2520

André Mussalem

VIP André Mussalem

Advogado especialista em Direito Administrativo, Tributário e Contratual, sócio do Cossart Mussalem Advogados, Professor de Direito Constitucional, Mestre em Direito/UFPE

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