A devolução em dobro no CDC: Análise do Tema 929 do STJ
O CDC (lei 8.078/90) estabelece em seu art. 42, parágrafo único, a regra da repetição do indébito em dobro nos casos de cobrança indevida de valores ao consumidor.
terça-feira, 4 de fevereiro de 2025
Atualizado às 14:18
1. Introdução
O CDC - Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/90) estabelece em seu art. 42, parágrafo único, a regra da repetição do indébito em dobro nos casos de cobrança indevida de valores ao consumidor.
Este dispositivo tem gerado significativas discussões jurisprudenciais quanto aos requisitos para sua aplicação, especialmente no que tange à necessidade de comprovação da má-fé do fornecedor.
2. Dispositivo legal
O art. 42, parágrafo único, do CDC dispõe:
"O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável."
3. Entendimento do STJ - Tema 929
O STJ, no julgamento do Tema 929 (EAREsp 600663/RS), sob o rito dos recursos repetitivos, fixou a seguinte tese:
"A repetição em dobro, prevista no parágrafo único do art. 42 do CDC, é cabível quando a cobrança indevida consubstanciar conduta contrária à boa-fé objetiva, ou seja, deve ocorrer independentemente da natureza do elemento volitivo. modulação dos efeitos".
3.1. Fundamentação do acórdão
O STJ fundamentou seu entendimento nos seguintes pontos:
- A única excludente da repetição em dobro prevista no CDC é o engano justificável por parte do fornecedor;
- O ônus da prova do engano justificável é do fornecedor, por se tratar de fato impeditivo do direito do consumidor;
- A má-fé não é requisito para a aplicação da sanção, sendo suficiente a demonstração da cobrança indevida e do pagamento pelo consumidor.
3.2. Requisitos para a devolução em dobro
Para que o consumidor tenha direito à devolução em dobro, são necessários os seguintes requisitos:
- Pagamento efetivo da cobrança indevida: O consumidor deve ter efetivamente pago o valor indevido. Se a cobrança foi feita mas não foi paga, o consumidor tem o direito de contestar a dívida, mas não de exigir a devolução em dobro;
- Comprovação da cobrança indevida: O consumidor precisa comprovar que foi cobrado indevidamente, utilizando documentos como notas fiscais, boletos, faturas, etc.;
- Ausência de engano justificável: A devolução em dobro não é devida se a empresa comprovar que o erro da cobrança se deu por meio de um engano justificável, ou seja, um erro não intencional e corrigido de boa-fé.
3.3. A importância do Tema 929
O julgamento do Tema 929 representa um avanço significativo na proteção dos direitos do consumidor, pois:
- Fortalece a tutela dos direitos consumeristas: Ao facilitar o acesso à repetição em dobro, o STJ incentiva os consumidores a buscarem seus direitos em juízo e desestimula práticas abusivas por parte dos fornecedores;
- Coíbe práticas abusivas: A aplicação da repetição em dobro, de forma mais ampla, contribui para a criação de um mercado mais justo e equilibrado;
- Oferece maior segurança jurídica: A pacificação da jurisprudência sobre a matéria proporciona maior segurança jurídica tanto para consumidores quanto para fornecedores.
3.4. Da conclusão sobre o Tema 929
O Tema 929 do STJ representa um marco importante na interpretação do art. 42, parágrafo único, do CDC.
Ao adotar a boa-fé objetiva como critério para a aplicação da repetição em dobro, o STJ fortalece a tutela dos direitos do consumidor e contribui para a construção de um mercado mais justo e equilibrado.
4. Análise doutrinária
A doutrina consumerista, representada por autores como Cláudia Lima Marques, sustenta que a devolução em dobro constitui uma sanção civil pedagógica, visando coibir práticas abusivas no mercado de consumo.
Herman Benjamin, por sua vez, defende que o dispositivo tem caráter punitivo-pedagógico, servindo como desestímulo às cobranças indevidas e como forma de compensação ao consumidor pelo tempo e recursos dispendidos na solução do problema.
5. Jurisprudência complementar
O entendimento tem sido aplicado de forma consistente pelos tribunais:
Responsabilidade civil. Ação declaratória de inexigibilidade de débito c.c. repetição de indébito e indenização por danos morais. Descontos indevidos no benefício previdenciário do autor. Sentença de parcial procedência. Repetição dobrada (art. 42, par. único, do CDC e STJ, EAREsp 600.663/RS). Dano moral "in re ipsa" caracterizado. Associação requerida envolvida em inúmeras demandas idênticas, denotando um modus operandi irregular ou, ao menos, a significativa desorganização de seus procedimentos associativos. Indenização fixada em R$ 10.000,00. Precedentes. Redistribuição dos ônus sucumbenciais. Sentença reformada, em parte. Recurso provido. (TJ/SP - Apelação Cível: 1027935-76.2023.8.26.0071 Bauru, Relator: Alexandre Marcondes, Data de Julgamento: 20/5/24, 1ª câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 20/5/24)
CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL. SERVIÇOS BANCÁRIOS. COBRANÇA INDEVIDA. CULPA DA CONCESSIONÁRIA. DEVOLUÇÃO EM DOBRO. ART. 42, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CDC. PRESSUPOSTO. MÁ-FÉ. PRESCINDIBILIDADE. DEFINIÇÃO DO TEMA PELA CORTE ESPECIAL DO STJ (EARESP 600.663/RS, DJE DE 30/3/21). MODULAÇÃO DOS EFEITOS. PREVISÃO DE QUE OS RETROMENCIONADOS EARESP SÓ PRODUZIRIAM EFEITOS AOS INDÉBITOS POSTERIORES À DATA DE PUBLICAÇÃO DE SEU ACÓRDÃO. SOLUÇÃO EXCEPCIONAL NO CASO CONCRETO. INDÉBITO E ACÓRDÃO EMBARGADO ANTERIORES À PUBLICAÇÃO DO ACÓRDÃO DOS EARESP 600.663/RS. HISTÓRICO DA DEMANDA 1. Nos presentes embargos, discute-se a prescindibilidade ou não de se aferir a má-fé como condição essencial para se exigir a restituição em dobro de quantia cobrada indevidamente, nos termos do art. 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor. DISCIPLINA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR 2. Consoante o art. 42, parágrafo único, do CDC, na relação de consumo, o pagamento de cobrança indevida, a restituição do indébito dar-se-á em dobro, salvo se o fornecedor provar, no caso concreto, o engano justificável. A norma analisada não exige culpa, dolo ou má-fé do fornecedor quando este cobra - e recebe - valor indevido do consumidor. Ao fornecedor, a imputação que se lhe faz a lei é objetiva, independentemente de culpa ou dolo. DEFINIÇÃO PELA DA CORTE ESPECIAL DO STJ 3. A Corte Especial do STJ definiu a questão, em data posterior à prolação do acórdão embargado, no julgamento dos EAREsp 600.663/RS (rel. ministra Maria Thereza de Assis Moura, rel. para acórdão ministro Herman Benjamin, Corte Especial, DJe de 30/3/21.). Assentou a tese: "A repetição em dobro, prevista no parágrafo único do art. 42 do CDC, é cabível quando a cobrança indevida consubstanciar conduta contrária à boa-fé objetiva, ou seja, deve ocorrer independentemente da natureza do elemento volitivo. modulação dos efeitos". MODULAÇÃO DOS EFEITOS 4. A regra geral é a devolução, na forma dobrada, dos valores debitados. Contudo, no caso concreto, há um detalhe, em especial, que o exime da aplicação do entendimento prevalecente no STJ. É o fato de os anteditos EAREsp 600.663/RS terem trazido critério de modulação de efeitos na aplicação de sua tese. Consoante os itens 24 a 27 da sua ementa, ficou estabelecido que, não obstante a regra geral, "o entendimento aqui fixado seja aplicado aos indébitos de natureza contratual não pública cobrados após a data da publicação deste acórdão". 5. Ora, a data dos indébitos (a partir de 3/14), ou mesmo a publicação do acórdão ora embargado (17/12/19), são anteriores ao julgamento e publicação do acórdão dos EAREsp 600.663/RS, da Corte Especial do STJ (DJe de 30/3/21). 6. Portanto, excepcionalmente, a solução do caso concreto contará com comando distinto do atual posicionamento vigente no STJ, por atender ao critério de modulação previsto nos EAREsp 600.663/RS. Logo, o embargado não deverá devolver, de forma dobrada, os valores debitados na conta da embargante. CONCLUSÃO 8. Embargos de divergência não providos. (STJ - EAREsp: 1501756 SC 2019/0134650-5, relator: ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 21/2/24, CE - CORTE ESPECIAL, Data de Publicação: DJe 23/5/24).
6. Conclusão geral
O entendimento consolidado pelo STJ no Tema 929 representa importante avanço na proteção dos direitos do consumidor, ao dispensar a comprovação da má-fé para a aplicação da sanção prevista no art. 42, parágrafo único, do CDC.
Esta interpretação fortalece o caráter preventivo-pedagógico da norma e simplifica a tutela jurisdicional em favor do consumidor, parte vulnerável da relação de consumo.
A tese fixada contribui para a efetividade do diploma consumerista, desencorajando práticas abusivas e garantindo a reparação adequada aos consumidores lesados por cobranças indevidas, sem a necessidade de comprovação do elemento subjetivo, tradicionalmente de difícil demonstração.
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MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.