Concessão da COMPESA: Colocando os pingos nos "is"
Debate sobre o caso da concessão da Companhia Pernambucana de Saneamento e Abastecimento.
terça-feira, 4 de fevereiro de 2025
Atualizado às 11:40
O debate sobre a privatização de parte das atividades da COMPESA - Companhia Pernambucana de Saneamento e Abastecimento começa a ganhar corpo. Sua natureza jurídica é a de uma Sociedade Anônima de Economia Mista, com fins de utilidade pública. A COMPESA está vinculada ao Governo do Estado de Pernambuco por meio da Secretaria de Recursos Hídricos e Saneamento. Criada pela lei estadual 6.307, de 29/7/71, a companhia tem o objetivo de levar água e esgotamento sanitário aos pernambucanos.
Quase todos os 184 municípios do Estado, incluindo o distrito de Fernando de Noronha, estão na rota de trabalho da companhia.
O Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco elaborou um painel de saneamento, que revela que apenas 30,8% da população do Estado dispõe de serviços de coleta de esgoto, enquanto 83,56% têm acesso à água. Esses números estão abaixo das médias nacionais, que são, respectivamente, 84% para água e 55,81% para esgoto. No Recife, os serviços de água e esgoto são disponibilizados a 96,43% e 44,99% da população, respectivamente. O painel de saneamento aponta ainda que, das localidades avaliadas, apenas 21 (12%) oferecem água a 100% de seus habitantes.
Muitos de nós temos críticas em relação às atividades da COMPESA, especialmente no que diz respeito à interrupção do abastecimento, à ausência de saneamento e aos atrasos nos programas de expansão.
Para esclarecer o tema, vamos entender suas nuances: (a) a COMPESA pode ser privatizada e esse é o projeto do Governo do Estado? (b) Qual é o regime normativo que fundamenta essa possibilidade? (c) Já houve privatizações semelhantes em lugares do Brasil ou do mundo? (d) Isso seria positivo para a comunidade, com base nas experiências de privatização brasileira? (e) Para onde iriam os recursos auferidos com a venda parcial da companhia?
1. Impactos da lei do saneamento
A lei do saneamento é a lei 11.445, de 5/1/07, que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico. Em 2020, foi alterada pela lei 14.026/20, conhecida como o novo marco legal do saneamento básico. A previsão da lei permite o investimento privado na área de saneamento na forma de PPP - Parcerias Público-Privadas.
Seria possível a privatização da companhia, mas não é esse o caso. O que pretende o governo estadual é transferir a parte da exploração do serviço de abastecimento e saneamento para a iniciativa privada mediante concessão.
A lei do saneamento prevê, no art. 10, que "a prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular depende da celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação, nos termos do art. 175 da Constituição Federal, vedada a sua disciplina mediante contrato de programa, convênio, termo de parceria ou outros instrumentos de natureza precária".
O art. 10-A, introduzido em 2020, ainda prevê as condições da concessão, permitindo a outorga dos recursos hídricos para a concessionária. Além disso, o contrato pode utilizar arbitragem e outros meios de resolução de conflitos e deve estabelecer as áreas de expansão do serviço de abastecimento e saneamento.
Um dos grandes desafios do saneamento e abastecimento é o fato de que o serviço exige um grande investimento de capital e, como outros serviços públicos essenciais, opera de forma deficitária. A única empresa de saneamento no Brasil que não é deficitária é a SABESP. Informo isso porque as empresas de saneamento têm imunidades tributárias estendidas a si justamente por operarem com prejuízos e, em geral, terem monopólio dentro do Estado.
Do ponto de vista público, a situação deficitária de uma empresa pública que exerce atividades de impacto e importância social é irrelevante, desde que o benefício social perseguido se justifique. Desde a criação do modelo, ainda hoje debatido no keynesianismo, o investimento estatal sem retorno é fundamental para o desenvolvimento econômico. Os sistemas de transporte público de metrô do mundo cumprem essa função. O que não podemos é imaginar que um investidor privado consiga suportar uma operação com prejuízos, nas dimensões do serviço de abastecimento e por longo tempo.
Muitos analistas criticaram a possibilidade de concessão dos serviços de água e saneamento, pois os investidores privados dificilmente conseguiriam realizar os investimentos necessários para a melhoria do serviço e a ampliação da área de cobertura, sem onerar demasiadamente as tarifas dos serviços.
Em Pernambuco, uma PPP com a BRK Ambiental foi celebrada em 2013 com a finalidade de ampliar a rede de saneamento do Grande Recife, com a meta de atingir 90% dos domicílios da região metropolitana até 2025. No entanto, até o momento, apenas 38% da rede foi saneada.
2. Privatização no Brasil e no mundo
Na década de 1990, tivemos um processo paulatino de privatizações. A privatização que mais sentimos foi a dos serviços de iluminação pública. Durante décadas, o Brasil foi iluminado por grandes investimentos públicos, com empresas em todos os Estados que operavam o serviço público de geração e distribuição de energia elétrica.
Esse processo pode ter sido avaliado como positivo por muitos anos, mas, nos últimos três anos, enfrentamos uma série interminável de problemas, como a situação da ENEL em São Paulo, com interrupções de serviço que duravam dias e a saturação do sistema, sem que houvesse a substituição de cabos e fios. O sistema opera com postes de mais de 30 anos, sem a substituição de equipamentos básicos, como transformadores. Apesar de tantos atropelos, os investidores mantiveram a remuneração de capital e distribuíram dividendos. As principais empresas de distribuição de energia elétrica no Brasil incluem Alupar, AES, Celesc, Cemig, CPFL, Copel, Eletrobras, Eneva, Energisa e Equatorial. Algumas dessas empresas são Neoenergia, Copel (PR), ESS (SP), Coelba (BA), Elektro (SP), Cemig (MG), CPFL-Piratininga, COPEL-DIS, CEB-DIS e CELESC-DIS.
Mais de 25 anos depois, estamos sentindo os efeitos da falta de investimento dessas empresas e dos desafios de regulação. Os problemas nas agências reguladoras são conhecidos por todos, sendo o principal, sem dúvidas, a captura do setor regulado por grandes corporações. Antes CEO das empresas concessionárias ocupam cargos importantes na ANEL e egressos da agência nas empresas.
No âmbito internacional, uma experiência extremamente negativa de privatização foi a guerra da água na Bolívia, que ocorreu na cidade de Cochabamba. Devido ao encarecimento do serviço para a população e à revolta da sociedade, foi necessária a reestatização do serviço, o que culminou em um processo milionário contra o Estado boliviano.
Os dados do IBGE de 2020 informam que somente em casos excepcionais o serviço de saneamento era realizado pela iniciativa privada no Brasil. A PNSB mostra que, em 2017, dos 5.570 municípios brasileiros, incluindo o Distrito Federal e o distrito estadual de Fernando de Noronha, 5.517 (99%) possuíam o serviço de abastecimento de água por rede em funcionamento e realizado por, ao menos, uma entidade executora. Em 31 cidades, o serviço estava em fase de implantação ou paralisado, e em 22, ele não existia. Isso foi verificado em 13 cidades do Nordeste, seis do Norte e duas do Centro-Oeste.
A pretensão de transferir a iniciativa privada parte dos servicos prestados pela COMPESA pode até melhorar o serviço de distribuição, mas, com certeza, vai encarecer a tarifa e, por conseguinte, o preço de bens, serviços e custos domésticos.
O argumento do presidente da Companhia Alex Campos é que não a privatização (com venda dos ativos da companhia), mas a exploração pela iniciativa privada, naquilo que orienta a lei do saneamento. Do ponto de vista legal, não é qualquer impasse jurídico, porém, quanto à conveniência política e o aumento de custos das tarifas pode não ser a melhor alternativa.
3. Cumprimento das metas dos ODS - Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e os desafios da redução dos recursos hídricos
O ODS 6 é o objetivo de desenvolvimento sustentável que visa garantir o acesso universal e equitativo à água potável e ao saneamento básico. Esse objetivo está presente na Agenda 2030. Porém, o Brasil já estendeu um pouco o prazo. De acordo com o art. 11-B: "os contratos de prestação dos serviços públicos de saneamento básico deverão definir metas de universalização que garantam o atendimento de 99% (noventa e nove por cento) da população com água potável e de 90% (noventa por cento) da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033, assim como metas quantitativas de não intermitência do abastecimento, de redução de perdas e de melhoria dos processos de tratamento".
Nós estamos muito longe de cumprirmos os compromissos firmados do Brasil junto a ONU, conforme os ODSs e de acordo com a Agenda 2030.
No recorte regional, a Região Norte é a que tem menor índice de atendimento total de esgoto, chegando a 13,1%. Já o Sudeste lidera o índice de atendimento total, com 80,5%. Em seguida vem o Centro-Oeste (59,5%), o Sul (47,4%), e o Nordeste (30,3%), com dados do próprio IBGE de 20222.
É importante lembrar que, além dos desafios governamentais de viabilizar o acesso à água e ao saneamento, há também a redução dos recursos hídricos.
Participei de um evento em 2024, na FIEPE, e uma das palestrantes era a presidente da APAC, Suzana Maria Gico Lima Montenegro, que também é professora da UFPE e possui ampla experiência e conhecimento na área. Em sua apresentação técnica, uma das questões levantadas foi o estresse hídrico, com a previsão de redução de 40% das chuvas e o processo de desertificação no semiárido.
4. Para onde iria os recursos captados na concessão de parte da COMPESA?
Caso houvesse a venda de parte dos ativos da companhia os recursos seriam destinados ao Tesouro Estadual e aplicados conforme os projetos e áreas de interesse do Estado. Para que a privatização de parte da companhia seja realizada, é imprescindível a autorização da ALEPE - Assembleia Legislativa de Pernambuco.
Mas não é esse o caso. O que a COMPESA pretende é que a prestação dos serviços sejam realizada pela iniciativa privada na modalidade concessão. Considera que essa opção seria vantajosa pois permitiria que a empresa se concentrasse nas suas atividade mais diretas como a gestão dos recursos hídricos. Outro ponto seria a alocação de investimentos privados. Essa foi a estratégia da lei do saneamento como expomos anterior.
Vale lembrar ainda que o aproveitamento dos recursos hídricos constitui patrimônio estadual, na forma do art. 219 e seguintes da Constituição do Estado de Pernambuco.
A COMPESA não possui a melhor governança, apesar dos esforços, mas talvez isso não seja motivo suficiente para a concessão do servico à iniciativa privada. A mesma dinâmica quanto à possibilidade de concessão dos serviços de distribuição também poderia ser aplicada ao serviço de coleta de resíduos sólidos. Os resíduos sólidos são geralmente terceirizados, ou a coleta é realizada pela própria municipalidade, em municípios pequenos. Em geral, a destinação é realizada por meio de sistemas de consórcios públicos.
Como entendo o caso...
Acredito que é viável, do ponto de vista jurídico, a concessão dos serviços de distribuição de água de forma segmentada e até mesmo seria privatização. Em geral, as empresas concessionárias apresentam uma governança mais eficiente e há melhorias na prestação do serviço. Contudo, atrelar a ineficiência e a má gestão às empresas públicas é, no mínimo, uma interpretação ideológica reducionista. O Banco do Brasil, por exemplo, possui excelente governança, apesar de ser também uma sociedade de economia mista, inclusive com capital negociado em bolsa.
A concessão dos serviços de abastecimento e saneamento é um condicionante para que os Estados tenham acesso aos recursos do BNDES. Para 2025, mais dezoito Estados aderem ao modelo de prestação do serviço. Isso nos obriga a chegar a conclusão que não é viável a ampliação do serviço se a adesão ao modelo de concessão dos serviços. Assim:
"Os Estados são: Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia, Santa Catarina, Sergipe e Tocantins. Três deles - Rio de Janeiro, Rondônia e Pará - já tiveram seus projetos incluídos na primeira reunião do Conselho do PPI, realizada em setembro. O BNDES, designado pelo Governo Federal para conduzir o processo de concessões e atuar na estruturação de projetos, apresentará as 15 novas propostas ao Conselho do PPI em sua próxima reunião"3.
As concessões no Brasi sao reguladas pela lei 8987/95.
Em Pernambuco a agência de fiscalização é a ARPE- Agência Reguladora de Pernambuco (lei estadual 11.921/00). No caso fiscalização das concessões, ainda temos muito a melhorar em termos de fiscalização das agências reguladoras. Continuamos sendo reincidentes na captura econômica do setor regulado e enfrentamos intensa litigiosidade. As empresas de telefonia são um grande exemplo de como a ampliação do serviço pode ocorrer com um aumento proporcional da insatisfação, do compartilhamento indevido de dados e da judicialização.
Além das dificuldades e desafios inerentes à concessão em si, enfrentamos um momento delicado do ponto de vista climático.
Privatizar ou não o serviço, eis a questão?
Antes e acima de qualquer decisão, é necessário que a sociedade civil organizada e os debates políticos sejam realizados nas audiências públicas. Outro ponto foi que haveria uma tarifa social custeada por recursos públicos para garantir o acesso ao serviço essencial para pessoas de baixa renda. Conforme exposto, a transferência a iniciativa privada é praticamente obrigatória, pois sem isso não há a possibilidade de acesso aos recursos de financiamento.
Desde o mês de dezembro de 2024 o debate se iniciou na ALEPE. Inicialmente, as concessões iniciariam nas regiões do Sertão4.
As audiências públicas precisam contar com participação efetiva da sociedade. Como se trata de uma decisão de grande impacto social, econômico e político, é fundamental que haja amadurecimento e clareza, ou seja, a decisão precisa ser democrática.
__________
1 https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/28325-em-apenas-3-6-dos-municipios-empresas-privadas-sao-responsaveis-pelo-abastecimento-de-agua
2 https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2022-08/cerca-de-19-mil-municipios-nao-tem-rede-coletora-de-esgoto-diz-mdr
3 https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/imprensa/noticias/conteudo/saneamento-18-estados-confirmam-ao-bndes
4 https://www.alepe.pe.gov.br/2024/11/05/legislativo-discute-possivel-concessao-de-servicos-da-compesa-a-iniciativa-privada/