O anteprojeto do Código Civil: Bem-vindo ao passado
Reflexões sobre o anteprojeto do CC apontam riscos de retrocesso na liberdade contratual e ativismo judicial, comprometendo a segurança jurídica nas relações empresariais.
sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025
Atualizado às 15:15
1. Uma breve introdução
O presente artigo visa apresentar algumas reflexões preliminares sobre propostas apresentadas no anteprojeto do CC (PL 4/25), devidamente protocolado pelo senador Rodrigo Pacheco no último dia 31/1/25 no que tange ao tratamento dos contratos. O objetivo é o de analisar dois dispositivos propostos pelo referido anteprojeto, ambos na seara do Direito Contratual com aplicação ao campo empresarial, especialmente no que se refere a cláusulas abertas inseridas em seu texto, bem como a probabilidade de que tais modificações possibilitem e autorizem, ainda mais, um alto grau de ativismo judicial. Ou seja, está-se deixando de fora da presente reflexão qualquer tipo de análise com relação a contratos não paritários, como os de consumo.
A lei da liberdade econômica (lei 13.874/19) - ao prescrever a intervenção mínima nos contratos empresariais - teve como intuito reduzir o alto grau de discricionariedade judicial praticado pelos Tribunais. Dito de outro modo, visa evitar que princípios jurídicos com alta vagueza semântica existentes, até então, em nossa legislação civil, pudessem ser utilizados de forma ideológica e inconsequente por julgadores, conforme já alertado em recentes artigos publicados.
Na atual legislação em vigor, portanto, as dúvidas e as ambiguidades suscitadas por uma ou mais cláusulas contratuais têm, assim, de ser resolvidas ponderando, antes de mais nada, a vontade exteriorizada pelas partes na gênese do contrato e materializada no documento firmado pelas partes (e já não a vontade manifestada por cada contraente durante a fase da execução contratual)1. Isso diminui o espaço para o oportunismo da parte que busca rever as regras negociadas do contrato empresarial com base em princípios legais de elevada vagueza semântica como função social do contrato e boa-fé objetiva.
Diga-se de passagem que a 3ª turma do STJ, em REsp 1.799.039/SP, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, foi precisa ao diferenciar os contratos empresariais dos demais ao privilegiar os termos efetivamente pactuados entre as partes, em decorrência do seu equilíbrio econômico2.
No entanto, o anteprojeto do CC caminha em direção oposta; ou seja, vai de encontro à liberdade contratual e às liberdades econômicas. Em certa medida, corre-se o risco de voltarmos ao passado e estimular o julgador à tomada de decisão além dos termos e condições efetivamente pactuados.
Sendo assim, sem o intuito de fazermos uma análise exaustiva sobre a temática, elencamos dois dispositivos de forma preliminar que trazem esse risco premente e que, como estão, não podem permanecer. São eles: o art. 421, §2º3 e o art. 422-A4.
2. O art. 421, §2º do anteprojeto do CC
A referida inovação legislativa nos parece ser típico caso de dispositivo legal carregado de alta vagueza semântica. Faltam em sua redação diretrizes claras de aplicação e agrega insegurança jurídica e abre espaço para litigância oportunista e arbítrio judicial (as quais se alimentam mutuamente). Em um contrato empresarial, o que seria uma cláusula que violaria a função social do contrato que ensejaria nulidade do negócio? Imagine-se esse dispositivo legal somado à litigância aditivada pelo instituto da assistência judiciária gratuita, que isenta a parte do pagamento de custas e sucumbência. Trata-se de uma verdadeira licença para processar!
Contratos empresariais têm como escopo a obtenção de uma vantagem econômica por agentes presumivelmente racionais e sofisticados. Essa situação é natural e faz parte das relações empresariais cotidianas. Nos parece que essa foi a intenção da parte final do enunciado 29 aprovado na I jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal e que agora seria colocado em xeque pela redação do projeto.
3. O art. 422-A do anteprojeto do CC
Da mesma forma, como a proposta de redação do dispositivo anterior, o art. 422-A traz também em sua redação princípios com alta vagueza semântica. De pronto, já paira uma dúvida: a ideia de confiança e probidade não estariam abarcados pelo conceito de boa-fé objetiva? A própria 3ª turma do STJ, em outro caso, menciona, expressamente, essa correlação direta entre os conceitos e princípios5. Mas, mesmo que assim não fosse, o que ganhamos analiticamente com esses acréscimos? Parece-nos apenas que aumentam os espaços de litigância oportunista, insegurança jurídica e risco de ativismo judicial.
Outra questão que nos parece relevante é considerar que tais princípios, nos termos do dispositivo, seriam de ordem pública, possibilitando partes argumentar e até juízes mais interventivos e paternalistas atuarem, em qualquer grau de jurisdição, a fim de modificar a relação contratual empresarial utilizando como base princípios altamente vagos. A partir dessa perspectiva, inclusive haveria prejuízo claro ao ônus da prova processual (art. 373 do CPC).
Dito de outro modo, o devedor, sem a necessidade de sequer comprovar o nexo de causalidade entre determinada situação fática com a suposta violação à boa-fé objetiva e aos princípios da probidade e confiança, pode sustentar o suposto inadimplemento contratual a qualquer momento do processo.
Outro aspecto que nos parece relevante é o possível reflexo nas decisões internacionais proferidas, tanto em processos arbitrais quanto judiciais, com necessária homologação de sentença perante o STJ. Eventual litígio existente referente a contrato firmado, poderá a parte devedora, na homologação de sentença estrangeira, alegar, justamente, a aplicação do referido dispositivo legal. De que forma será analisado pelo STJ se houve a quebra da boa-fé objetiva naquela relação contratual analisada por jurisdição estrangeira? Qual seria o parâmetro para essa apreciação?
Parece-nos que tal "solução" legislativa apenas fomentará, ainda mais, o alto grau de litigância, ativismo judicial e insegurança jurídica existente as custas do próprio Estado de Direito6. Infelizmente, não podem ser aprovadas como redigidas. Não aguentamos mais a intervenção estatal nas relações privadas. A economia do país não suporta mais!
_________
1 ANTUNES, Ana Filipa Morais. A interpretação do contrato. In: Revista de Direito Comercial. P. 103/132, 2024-07-28.
2 PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO PARITÁRIO. EQUILÍBRIO ECONÔMICO. AUTONOMIA PRIVADA. LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA. CLÁUSULA ABUSIVA. NÃO DEMONSTRADA. BOA-FÉ. FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO. EXPECTATIVA DAS PARTES. 1. Cuida-se de ação de cobrança da qual foi extraído o presente recurso especial. 2. O propósito recursal consiste em definir se a cláusula que desobriga uma das partes a remunerar a outra por serviços prestados na hipótese de rescisão contratual viola a boa-fé e a função social do contrato. 3. A Lei 13.874/19, também intitulada de Lei da Liberdade Econômica, em seu art. 3°, VIII, determinou que são direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal, ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública. 4. O controle judicial sobre eventuais cláusulas abusivas em contratos empresariais é mais restrito do que em outros setores do Direito Privado, pois as negociações são entabuladas entre profissionais da área empresarial, observando regras costumeiramente seguidas pelos integrantes desse setor da economia. 5. A existência de equilíbrio e liberdade entre as partes durante a contratação, bem como a natureza do contrato e as expectativas são itens essenciais a serem observados quando se alega a nulidade de uma cláusula com fundamento na violação da boa-fé objetiva e na função social do contrato. 6. Em se tratado de contrato de prestação de serviços firmado entre dois particulares os quais estão em pé de igualdade no momento de deliberação sobre os termos do contrato, considerando-se a atividade econômica por eles desempenhada, inexiste legislação específica apta a conferir tutela diferenciada para este tipo de relação, devendo prevalecer a determinação do art. 421, do Código Civil. 7. Recurso especial não provido. (REsp n. 1.799.039/SP, relator Ministro Moura Ribeiro, relatora para acórdão Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 4/10/2022, DJe de 7/10/2022.)
3 Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. § 1° Nos contratos civis e empresariais, paritários, prevalecem o princípio da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual. § 2° A cláusula contratual que violar a função social do contrato é nula de pleno direito.
4 Art. 422-A. Os princípios da confiança, da probidade e da boa-fé são de ordem pública e sua violação gera o inadimplemento contratual.
5 REsp n. 1.862.508/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, relatora para acórdão Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/11/2020, DJe de 18/12/2020.
6 O Estado de Direito convive com a segurança jurídica como um componente da sua essência. Ou seja, sem segurança jurídica, não haveria Direito. Para Norberto Bobbio, a segurança jurídica não seria apenas uma exigência decorrente da coexistência ordenada do homem, mas também um "elemento intrínseco ao Direito", destinado a afastar o arbítrio e a garantir a igualdade, não se podendo sequer imaginar um ordenamento jurídico sem que subsista uma garantia mínima de segurança jurídica (BOBBIO, Noberto. La certeza del Diritto è un mito? Revista Internazionale di Filosofia del Diritto, Roma, v. 28, p. 150-151, 1951).



