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A estupidez que traumatiza e a vulnerabilidade que mata

Bullying não é um problema só das famílias, mas também do Estado. Por isso, o combate a essa praga deve ser feito por todos.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Atualizado às 14:33

Lembro-me da primeira defesa que fiz na sessão de julgamento no Tribunal do Júri há uns vinte anos atrás.

No dia do julgamento, precisamente, no interrogatório do réu, lembro que o juiz-presidente, não sei qual era o motivo de sua irritação ou estresse, mas iniciou asperamente o interrogatório assim:

- O juiz-presidente: "Seu Zé Pelanca, o senhor quer falar ou prefere ficar em silêncio?"

O réu apenas olhava fixamente para o juiz.

- O juiz-presidente: "Seu Zé Pelanca, o senhor pode ficar em silêncio ou se defender falando sobre a acusação que pesa contra você. Mas precisa dizer o que quer fazer."

O réu continuava olhando fixamente para o juiz, e agora notei que seus olhos estavam arregalados e vermelhos como pimenta malagueta. Nesse momento, o juiz-presidente, já super irritado e impaciente, vociferou para o réu:

- "Seu Zé Pelanca por que o senhor matou a vítima?!"

- O réu: "Matei porque ela me chamou de Zé Pelanca!!...."

Nesse momento, foi preciso muita força e destreza dos policiais para segurarem o réu que avançou em direção ao juiz-presidente. Nesse dia, a enfermaria não havia medicado o réu antes da escolta para o fórum.

O juiz-presidente diante de tamanha explosão do réu ficou imóvel, mudo e pálido como uma cera branca.

Apesar do susto, vale lembrar que houve uma gargalhada generalizada e estrondosa entre as pessoas que assistiam o julgamento.

O caso que levou o réu a julgamento perante o Conselho de Sentença foi o seguinte.

Fulano tinha o apelido de Zé Pelanca por ser muito gordo e sofria de uma doença mental. Sua reação quando provocado pelos moleques da rua não era violenta porque a medicação o continha, mas despertava o interesse destes moleques porque a reação do Fulano os divertia. Por isso, os meninos infernizavam o Fulano toda vez que o viam na rua.

Certo dia, os meninos insultaram e provocaram o Fulano chamando-o de Zé Pelanca insistentemente. Porém, nesse dia Fulano não tinha tomado seus remédios e por isso reagiu violentamente às provocações e insultos recebidos. Jogou uma pedra na direção dos meninos e acertou um deles que caiu e imediatamente Fulano foi para cima dele e desceu o braço sem dó no moleque que veio a falecer.

No dia do julgamento, durante os debates, a defesa sustentou várias teses, mas deu ênfase na inexigibilidade de conduta diversa. O réu que a vida inteira sofreu insultos e provocações ofensivas e traumatizantes não conseguiu resistir sem a ajuda de medicação uma única vez. E repeti esse argumento por quatro vezes seguidas até que o juiz-presidente me interrompeu e disse que a defesa não tinha mais argumentos e estava cansando desnecessariamente os jurados. Apenas respondi ao juiz-presidente que se o juiz-presidente não resistiu a meia hora da fala do defensor como pode exigir do réu, doente mental, que fosse tolerante com seus ofensores por tanto tempo sem nenhuma reação. Com isso, concluí o discurso pedindo que os jurados fizessem justiça ao réu.

O resultado do julgamento foi a absolvição do réu. Por mais que o promotor de Justiça tenha pedido a absolvição imprópria, e a defesa aderido à ela também, diante da evidente e absoluta incapacidade mental do réu, os jurados entenderam e votaram pela absolvição cuja tese subsidiária da defesa foi a inexigibilidade de conduta diversa.

Toda vez que penso nesse caso, lembro como é importante o combate ao bullying. Brincadeiras que para uns são mera diversão, mas que para outros são ofensivas e traumatizantes não merecem vistas grossas de ninguém.

Antonio Oliveira Filho

Antonio Oliveira Filho

Advogado Criminalista. Bacharel em direito pela UFMG. Há 20 anos exercendo a advocacia criminal. Defesa criminal em todos procedimentos comuns e especiais, com destaque para o Tribunal do Júri.

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