Conflitos societários: Quando se tornam arena para disputas pessoais
Interesses pessoais em sociedades minam a confiança e geram litígios. Contratos ajudam, mas a chave está em governança, equilíbrio e compromisso coletivo.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2025
Atualizado às 14:54
Há uma questão curiosa no mundo empresarial: sociedades empresárias, criadas para gerar riqueza coletiva entre os sócios, muitas vezes transformam-se em campos de batalha onde interesses pessoais se sobrepõem ao propósito comum. Não é raro que sócios, outrora unidos por projetos ambiciosos, transformem reuniões de gestão em tribunais informais, nos quais acusações de má-fé e deslealdade substituem planos de negócios. O que começa como um desacordo sobre estratégias de investimento ou políticas de contratação pode rapidamente escalar para litígios que consomem recursos financeiros e, principalmente, um dos ativos mais valiosos de qualquer sociedade: a confiança.
O Direito Societário estabelece uma distinção entre o interesse social, que corresponde metaforicamente ao da sociedade empresária como pessoa jurídica, e os interesses individuais dos sócios, evidenciando que nem sempre estão alinhados, resultando no que a doutrina reconhece como uma contradição dialética inerente às relações societárias1. No cenário ideal, os interesses particulares são colocados em segundo plano, priorizando o bem coletivo e fomentando um ambiente empresarial capaz de gerar benefícios econômicos para todos os sócios.
Embora em sociedades limitadas essa dinâmica possa sugerir relações pautadas no "fim comum" ou "fim social"2 na hora de discutir e decidir assuntos empresariais, tal percepção não representa toda a variedade de relações societárias contemporâneas, demonstrando que há diferentes configurações de poder e interesses entre os sócios3.Cada sócio deseja exercer poder proporcional ao capital investido, buscando influência correspondente ao montante aportado.
Nesse tipo societário, a predominância da vontade depende do valor investido e convertido em quotas, e não do número de sócios, demonstrando um critério mais econômico do que democrático. Quem injeta mais recursos, por assumir riscos maiores, obtém maior influência nos destinos da empresa, o que torna as relações internas essencialmente antidemocráticas4. Exemplificando, um único sócio que detenha a maioria do capital social poderá determinar os rumos da sociedade empresária a despeito da existência de outros 5 sócios, na ausência de quórum qualificado, conforme preveem os arts. 1.010 e 1.072 do CC.
A experiência no setor nos revela que muitos dos conflitos nascem de uma ilusão de que o Direito Societário é um mero instrumento técnico e desvinculado das relações humanas que sustentam os negócios. Por isso, equivocadamente acredita-se que contratos bem elaborados são garantias absolutas contra os desentendimentos, e que seriam vacinas contra a arrogância, a ganância ou a incompetência disfarçada de opinião técnica. A realidade demonstra que cláusulas jurídicas, por mais sofisticadas que sejam, podem ser instrumentalizadas para fins contrários à função social da empresa quando a desavença se instala.
O exercício do "poder de controle" e a capacidade de "controle sobre esse poder" são questões fundamentais no Direito Societário. Pode-se dizer que o equilíbrio entre essas duas forças - que atuam como um mecanismo de freios e contrapesos - é um dos pilares da regulamentação jurídica das sociedades empresariais, conforme muito bem ressaltam Spinelli, Scalzilli e Tellechea5.
Os autores também fazem referência à tese de doutorado de Marcelo von Adamek6 para destacar que os conceitos e existência de maioria e minoria não representam obstáculos ou situações indesejadas, mas, pelo contrário, componentes fundamentais na construção de uma vontade coletiva, que se estabelece conforme a decisão da maioria. Explicam que, ao longo do tempo, foram desenvolvidos mecanismos para lidar com conflitos, como as assembleias gerais, que funcionam com base no princípio majoritário.
No entanto, os instrumentos societários como as reuniões ou assembleias gerais nem sempre são suficientes para resolver de forma eficaz os conflitos ou uma desinteligência entre sócios. Nessas situações de impasse assemblear, a legislação prevê a necessidade de se recorrer ao Judiciário para garantir a resolução das divergências como previstos nos arts 1.010, § 2º, do CC, e 129, § 2º, da lei 6.404/76.
A jurisprudência7 tem direcionado para um equilíbrio na intervenção judicial nas sociedades empresariais, resistindo à tentação de transformar juízes em administradores ad hoc, e evitando interferências que desestabilizam a autonomia societária.
Decisões recentes reiteram que o desgaste emocional entre sócios ou "perda de afinidade", por si sós, não justificam medidas radicais como a exclusão de sócios, exigindo-se prova concreta de danos à atividade empresarial, como tive oportunidade de escrever aqui no Migalhas sobre uma revisitação da affectio societatis na dissolução societária8.
Destaco também outro viés. Não se deve pressupor que as relações empresariais são movidas apenas por racionalidade econômica, e nem se deve ignorar que, por trás de cada acordo de sócios, deadlock provisions, cláusula de tag-along ou insistência em uma cláusula compromissória9, há indivíduos cujas motivações nem sempre cabem em planilhas ou atas de assembleias.
A doutrina tradicional trata o affectio societatis, ou o fim comum10, em superação conceitual defendida pela doutrina moderna, como elemento estrutural das sociedades, mas não é com a mesma intensidade que discute como essa "vontade de colaboração" se corrói não por eventos grandiosos, mas por gestos cotidianos: um desencantamento pelo negócio, um veto sistemático às propostas de um sócio, o silêncio estratégico em assembleias decisivas ou a sutil desvalorização pública de contribuições dos sócios.
Essa erosão silenciosa é tão perigosa quanto o desvio de recursos, pois não deixa rastros contábeis. Um sócio pode aparentemente agir dentro da estrita legalidade e, ainda assim, minar a empresa com práticas em exercício abusivo de direitos. O desafio reside em distinguir entre prudência gerencial e sabotagem velada.
A judicialização como reflexo da cultura empresarial
Sociedades empresárias brasileiras, especialmente as familiares, muitas vezes misturam patrimônio particular e social, gestão profissional e afetos pessoais. Herdamos uma tradição de personalismo, em que a lealdade a indivíduos supera o compromisso com o organismo societário. Não por acaso, muitos litígios também decorrem de sucessões hereditárias mal planejadas, em que a segunda geração, sem o mesmo vínculo emocional com o negócio, trata a sociedade como espólio a ser dividido, e não como organismo a ser preservado.
Tal percepção é mensurada nas empresas familiares. Segundo o site do IBGC - Instituto Brasileiro de Governança Corporativa11, a pesquisa "Governança em empresas familiares: Evidências brasileiras", realizada em parceria com a PwC em 2019 com empresas familiares de capital fechado, revelou que os conflitos familiares lideraram as razões para a saída de sócios (42%), superando fatores como profissionalização da gestão (35%) e dificuldades financeiras (26%). A pesquisa também identificou que cerca de 44% das empresas pesquisadas não possuem um plano de sucessão estabelecido.
A frequência com que conflitos societários chegam aos tribunais diz mais sobre nossa cultura empresarial, ou até mesmo uma "cultura da sentença"12, do que sobre falhas na lei. Ganha destaque, neste contexto, o princípio da intervenção mínima do Judiciário nas sociedades empresárias, reforçado pela lei da liberdade econômica (lei 13.874/19), a qual, em seu art. 2º, III, prevê a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas13.
Também, ao incluir o termo expressamente no parágrafo único do art. 421 do CC, a lei da liberdade econômica deixou claro que a interferência judicial em questões contratuais - e, por que não, societárias, em especial diante da natureza contratualista das limitadas - só é admitida quando houver previsão legal específica, afastando interpretações ampliadas que possam levar juízes a assumir o papel de gestores de empresas. Esse posicionamento já era defendido pela doutrina e consolidou-se no enunciado 21 da I Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal14.
Aqui, a lei é só um paliativo. Normas como as dos arts. 1.030 e 1.085 do CC, que fazem previsão da exclusão de sócio, pouco resolvem quando o conflito é geracional e cultural. Juízes podem determinar a exclusão de um herdeiro ou sócio litigioso, mas não podem infundir nos remanescentes a mesma paixão que moveu o fundador ou sócios que foram ou são a razão de existir do negócio. A empresa sobrevive no papel, mas perde sua alma - e, com o tempo, seu mercado.
A solução não está em contratos mais longos ou cláusulas mais punitivas, mas em resgatar a essência de que empresas são, antes de tudo, projetos coletivos. Isso exige mudanças estruturais, com educação sobre gestão empresarial, governança corporativa e suas melhores práticas15, dentre outros avanços.
Conclusão
Conflitos societários não são meras disfunções técnicas. Em alguma medida, são sintomas de algo mais profundo: a dificuldade humana de conciliar ambição individual e bem comum. Empresas que sobrevivem a crises não são aquelas com os melhores contratos ou pactos parassociais, mas as que entendem que confiança é um ativo tão vital quanto o capital social ou o patrimônio da pessoa jurídica.
Cabe a nós, advogados, lembrar-nos que, por trás de cada ação judicial, há uma história de expectativas frustradas. Nossa missão não é apenas aplicar a lei, mas ajudar a reescrever - ainda que parcialmente - essas histórias, substituindo os conflitos por soluções que honrem o propósito original da sociedade empresária com a qual estamos lidando.
__________
1 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial - Vol. 2 - Ed. 2021. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2024, p. 343-354.
2 ADAMEK, Marcelo Vieira von; FRANÇA, Erasmo Valladão. A. e. N. "Affectio societatis": um conceito jurídico superado no moderno direito societário pelo conceito de fim social, 'in' Revista de Direito Mercantil Industrial, Econômico e Financeiro, v. 149/150, p. 108-130, 2009.
3 LAUX, Francisco. Mediação Empresarial: Aplicação de Mecanismos Alternativos para Solução de Disputas Entre Sócios. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2018.
4 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial - Vol. 2 - Ed. 2021. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2024, p. 347.
5 SPINELLI, Luis Felipe, SCALZILLI, João Pedro, TELLECHEA, Rodrigo. Intervenção Judicial na Administração de Sociedades. São Paulo: Almedina, 2018. p. 21.
6 ADAMEK, Marcelo Von. Abuso de Minoria no Direito Societário (abuso das posições subjetivas minoritárias). São Paulo. 2010. 436 p. Tese (Doutorado em Direito Comercial) - Faculdade de Direito da USP, p. 27.
7 STJ - REsp: 2142834 SP 2023/0040724-0, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 11/06/2024, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/06/2024
8 Papel da perda da Affectio Societatis como justa causa ou falta grave - Migalhas. Disponível em:
9 Arbitragem: Os problemas da cláusula compromissória vazia. Disponível em:
10 ADAMEK, Marcelo Vieira von; FRANÇA, Erasmo Valladão. A. e. N. op. cit.
11 IBGC - Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. Três problemas familiares. Disponível em: https://www.ibgc.org.br/blog/tres-problemas-familiares. Acesso em: 15 fev. 2025.
12 WATANABE, Kazuo. Cultura da sentença e cultura da pacificação, in YARSHELL, Flávio Luiz e MORAES, Maurício Zanoide. Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover, São Paulo: DPJ Editora, 2005.
13 NETO, Floriano; JÚNIOR, Otavio; LEONARDO, Rodrigo. Comentários à Lei da Liberdade Econômica - Lei 13.874/2019. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2020
14 Enunciado 21: Nos contratos empresariais, o dirigismo contratual deve ser mitigado, tendo em vista a simetria natural das relações interempresariais.
15 Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa - 6° edição. Disponível em:


