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ADPF 635: Um marco na defesa dos direitos humanos

A ADPF 635 questiona operações policiais violentas no RJ, com decisão cautelar do STF alinhada à jurisprudência internacional de direitos humanos.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Atualizado às 13:38

ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, proposta pelo PSB - Partido Socialista Brasileiro, tornou-se um marco no debate sobre segurança pública e direitos humanos no Brasil. A ação questiona a constitucionalidade das operações policiais no estado do Rio de Janeiro, especialmente nas favelas, que têm resultado em elevado número de mortes, incluindo civis não envolvidos em atividades criminosas (o que, vulgarmente, é chamado de "dano colateral"). A ADPF 635 foi motivada por uma série de operações policiais consideradas excessivamente violentas, como a ocorrida no Complexo do Jacarezinho em maio de 2021, que resultou na morte de 28 pessoas, sendo a maioria jovens negros e moradores da comunidade. Esses episódios evidenciaram a necessidade de discutir a legalidade e a proporcionalidade das ações policiais em áreas urbanas vulneráveis.

O contexto que deu origem à ADPF 635 é marcado por décadas de violência policial nas periferias e favelas do Rio de Janeiro, onde operações militares são frequentemente justificadas como necessárias para o combate ao tráfico de drogas e ao crime organizado. No entanto, tais operações têm sido criticadas por seu caráter letal e discriminatório, atingindo principalmente populações negras e pobres. A ação do PSB busca, portanto, responsabilizar o Estado por violações sistemáticas de direitos humanos, como o direito à vida, à segurança e à dignidade, garantidos pela CF/88 e por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

A ADPF 635 foi apresentada ao STF, em 2021, solicitando a suspensão imediata de operações policiais em favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia de Covid-19, com exceção de casos absolutamente excepcionais e previamente autorizados pela Justiça. A ação argumenta que as operações violam preceitos fundamentais da CF, como o direito à vida e à proibição de tratamentos cruéis e desumanos, além de contrariar decisões da CIDH - Corte Interamericana de Direitos Humanos, que já condenou o Brasil por práticas semelhantes em casos como o da Favela Nova Brasília.

O debate em torno da ADPF 635 envolveu diversos atores, incluindo organizações da sociedade civil, especialistas em segurança pública e direitos humanos, e representantes do governo do Rio de Janeiro. As organizações civis destacaram o caráter discriminatório e letal das operações policiais, enquanto o governo estadual defendeu a necessidade de ações enérgicas para combater o crime organizado. O STF, por sua vez, teve que equilibrar esses interesses, considerando tanto a segurança pública quanto a proteção dos direitos fundamentais.

Em junho de 2022, o ministro Edson Fachin, relator da ADPF, concedeu decisão cautelar determinando a suspensão das operações policiais em favelas do Rio de Janeiro, exceto em situações excepcionais e com autorização judicial prévia. A decisão foi fundamentada no princípio da proporcionalidade e na necessidade de proteger a vida e a dignidade dos moradores das comunidades afetadas. Fachin destacou que as operações policiais não podem ser realizadas de forma indiscriminada e que o Estado deve adotar medidas que minimizem o risco de mortes e violações de direitos humanos.

A decisão cautelar foi amplamente elogiada por organizações de direitos humanos, que a consideraram um avanço na proteção de populações vulneráveis. No entanto, também enfrentou críticas, especialmente de setores que defendem uma abordagem mais dura no combate ao crime. Argumentou-se que a suspensão das operações poderia enfraquecer a capacidade da polícia de atuar em áreas dominadas pelo crime organizado, aumentando a sensação de insegurança entre os moradores. Além disso, houve questionamentos sobre a competência do STF para interferir em questões operacionais da segurança pública.

As objeções à decisão cautelar também incluíram alegações de que a medida poderia ser interpretada como uma forma de proteger criminosos, em detrimento da segurança da população em geral. No entanto, essa perspectiva ignora o fato de que a ADPF 635 não busca impedir a atuação policial, mas sim garantir que ela seja realizada de forma legal e proporcional, sem violar direitos fundamentais. A decisão do ministro Fachin reforça a ideia de que a segurança pública não pode ser alcançada à custa da violação de direitos humanos, um princípio fundamental em um Estado Democrático de Direito. Ou seja, as operações policiais não foram proibidas, tão somente foi determinado que deveria haver planejamento e um objetivo.

Do ponto de vista dos direitos humanos, a decisão cautelar é correta porque alinha-se com a jurisprudência da CIDH - Corte Interamericana de Direitos Humanos, que já estabeleceu parâmetros claros para a atuação policial em contextos de alta vulnerabilidade. Em casos como o da "Favela Nova Brasília", a CIDH condenou o Brasil por violações ao direito à vida e à integridade pessoal, destacando a necessidade de adotar medidas que previnam o uso excessivo da força e garantam a investigação de mortes decorrentes de operações policiais. A decisão do STF reflete esses princípios, ao exigir que as operações sejam realizadas de forma planejada e supervisionada, com o objetivo de minimizar danos à população civil.

Além disso, a decisão cautelar está em consonância com a CF/88, que estabelece o direito à vida, à segurança e à dignidade como pilares fundamentais do Estado brasileiro. A suspensão das operações policiais em favelas durante a pandemia também considerou o contexto de emergência sanitária, em que a proteção da vida e da saúde deve ser priorizada. A medida reforça o compromisso do STF com a defesa dos direitos humanos, mesmo em situações complexas e desafiadoras, como a segurança pública no Rio de Janeiro.

A decisão do ministro Fachin também reflete uma compreensão aprofundada dos impactos sociais e psicológicos da violência policial em comunidades vulneráveis. Operações excessivamente violentas não apenas resultam em mortes e ferimentos, mas também geram trauma coletivo, desestabilizam comunidades e perpetuam ciclos de violência. Ao suspender essas operações, o STF reconhece a necessidade de adotar abordagens mais humanizadas e eficazes para a segurança pública, que priorizem a prevenção e o diálogo com as comunidades.

Outro aspecto importante da decisão cautelar é o reforço ao controle judicial sobre as ações policiais. Ao exigir autorização prévia para operações em favelas, a medida estabelece um mecanismo de freios e contrapesos que impede abusos de poder e garante maior transparência. Esse controle é essencial para assegurar que as operações sejam realizadas dentro dos limites da lei e com respeito aos direitos fundamentais, evitando que se tornem instrumentos de opressão e violência, além de suprimir dúvidas sobre a atuação da polícia em algumas áreas para supostamente favorecer certas facções criminosas.

A decisão também contribui para a construção de uma cultura de responsabilização no âmbito da segurança pública. Ao estabelecer parâmetros claros para a atuação policial, o STF envia uma mensagem de que violações de direitos humanos não serão toleradas, mesmo em nome do combate ao crime. Essa postura é fundamental para restaurar a confiança da população nas instituições policiais e no sistema de justiça, que frequentemente são vistos como cúmplices da violência e da impunidade.

Do ponto de vista da jurisprudência internacional, a decisão cautelar está alinhada com os padrões estabelecidos pela CIDH e por outros organismos de direitos humanos. A Corte Interamericana tem reiterado que o uso da força por parte do Estado deve ser excepcional, proporcional e estritamente necessário, com mecanismos de controle e supervisão para prevenir abusos. A decisão do STF reflete esses princípios, ao exigir que as operações policiais sejam realizadas de forma planejada, supervisionada e limitada a situações excepcionais.

Além disso, a decisão reforça o papel do STF como guardião da CF e dos direitos fundamentais, em um contexto em que as instituições democráticas enfrentam crescentes desafios. Ao tomar uma posição firme em defesa dos direitos humanos, o STF demonstra seu compromisso com a proteção das populações mais vulneráveis e com a promoção de uma sociedade mais justa e igualitária. Essa postura é essencial para fortalecer a democracia e garantir que o Estado cumpra suas obrigações internacionais em matéria de direitos humanos.

A decisão cautelar também tem implicações importantes para o futuro da segurança pública no Brasil. Ao estabelecer parâmetros claros para a atuação policial, a medida abre caminho para a adoção de políticas públicas mais eficazes e humanizadas, especialmente para deixar claro que a atuação das forças de segurança, isoladamente, não é suficiente para enfrentar o crime organizado. O Estado deve atuar em outras frentes, ocupando os espaços com saúde, educação e cultura. Essa abordagem é fundamental para romper com o ciclo de violência e impunidade que tem marcado a segurança pública no país, especialmente nas áreas urbanas mais vulneráveis.

Por fim, a ADPF 635 e a decisão cautelar do ministro Fachin representam um marco na luta por justiça e dignidade para as populações marginalizadas no Brasil. Ao reconhecer a necessidade de proteger os direitos fundamentais mesmo em contextos de alta complexidade, o STF reafirma seu papel como defensor da democracia e dos direitos humanos. A decisão é um passo importante na direção de uma segurança pública mais justa e eficiente, que respeite a vida e a dignidade de todos os cidadãos, sem distinção de raça, classe ou origem.

João Paulo Martinelli

VIP João Paulo Martinelli

Advogado Criminalista, Consultor Jurídico e Parecerista; Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP, com pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra; Autor de livros e artigos jurídicos; Professor.

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