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A pessoa jurídica e o criminal compliance em Portugal

O texto examina a evolução do regime jurídico português no que concerne à RPPJ e sua relação com os programas de compliance.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Atualizado às 14:37

1. Introdução

O avanço da criminalidade corporativa e a crescente complexidade das atividades empresariais impuseram desafios significativos à legislação penal contemporânea, exigindo respostas mais eficazes para prevenir e reprimir infrações cometidas no âmbito das organizações. A RPPJ - responsabilidade penal das pessoas jurídicas surge como uma resposta a essas demandas, sendo adotada em diversos ordenamentos jurídicos ao redor do mundo. Portugal incorporou essa possibilidade ao seu CP em 2007 e, posteriormente, consolidou e aprimorou sua regulamentação por meio da lei 94/21, de 21 de dezembro. Esse marco normativo trouxe inovações relevantes, especialmente no que diz respeito à influência dos programas de compliance sobre a responsabilidade penal das empresas.

O presente estudo examina a evolução do regime jurídico português no que concerne à RPPJ e sua relação com os programas de compliance, destacando suas implicações práticas, desafios e possíveis pontos de aprimoramento. Além disso, busca-se avaliar a viabilidade da transposição desse modelo para o Brasil, considerando as peculiaridades do ordenamento jurídico pátrio e os desafios enfrentados no combate à criminalidade empresarial.

2. Evolução e fundamentação da responsabilidade penal das pessoas jurídicas em Portugal

A exclusão da responsabilidade penal das pessoas jurídicas foi, durante muito tempo, um dogma do Direito Penal clássico, baseado no princípio "societas delinquere non potest" - segundo o qual apenas pessoas físicas poderiam ser responsabilizadas criminalmente. No entanto, a ascensão da criminalidade empresarial e a dificuldade de individualização das condutas ilícitas dentro das organizações levaram a uma mudança paradigmática. Assim, diversos países começaram a adotar regimes de RPPJ, de forma a evitar a impunidade e a garantir maior efetividade ao Direito Penal.

Em Portugal, o primeiro passo nesse sentido ocorreu no chamado "direito penal secundário", isto é, em normas especiais que previam a responsabilidade de PJ para infrações específicas, como crimes aduaneiros e infrações contra a economia e a saúde pública. Apenas em 2007 a reforma do CP trouxe disposições gerais sobre a RPPJ, através da lei 59/07. Essa reforma incluiu um rol de crimes passíveis de imputação a pessoas jurídicas e estabeleceu os requisitos necessários para que essa imputação ocorresse.

A promulgação da lei 94/21, por sua vez, representou um avanço significativo, pois não apenas ampliou os critérios de imputação da RPPJ, como também introduziu disposições processuais específicas e conferiu relevância jurídica aos programas de compliance como elementos atenuantes ou agravantes da responsabilidade penal das empresas.

3. Modelo de imputação da responsabilidade penal das pessoas jurídicas

O modelo adotado pelo CP português segue a teoria da responsabilidade penal derivada ou indireta, também chamada de heterorresponsabilidade. Isso significa que a responsabilidade penal da PJ decorre da prática delitiva de uma pessoa física ligada à empresa, desde que preenchidos certos requisitos.

De acordo com o art. 11 do CP português, uma pessoa jurídica poderá ser responsabilizada penalmente nas seguintes hipóteses:

  • Quando um crime for cometido por uma pessoa em posição de liderança, atuando em nome, por conta e no interesse direto ou indireto da PJ;
  • Quando um crime for cometido por um funcionário subordinado, desde que a infração decorra do incumprimento dos deveres de vigilância ou controle por parte dos superiores hierárquicos.

A adoção desse modelo tem gerado controvérsias. Parte da doutrina defende que a RPPJ deveria ser direta e autônoma, baseada em uma culpa organizacional - ou seja, na falha estrutural da empresa em prevenir crimes. Outros, no entanto, argumentam que a RPPJ não pode se afastar do princípio da culpabilidade e, portanto, deve sempre estar vinculada a uma infração cometida por um indivíduo que aja em nome da organização.

Um ponto controverso do regime português é a possibilidade de exclusão da RPPJ caso haja comprovação de que a infração foi cometida contra ordens expressas da alta administração da empresa. Esse dispositivo tem sido criticado por criar uma brecha que pode levar à impunidade, pois bastaria a existência de um manual de boas práticas ou uma comunicação formal para afastar a responsabilidade da empresa, ainda que, na prática, a cultura corporativa incentive condutas ilícitas.

4. Criminal compliance e seus efeitos na responsabilidade penal das pessoas jurídicas

O conceito de criminal compliance refere-se à implementação de mecanismos internos de governança corporativa para prevenir, detectar e corrigir atos ilícitos dentro das organizações. No contexto português, a lei 94/21 introduziu regras específicas sobre os efeitos dos programas de compliance na determinação da RPPJ.

Esses efeitos podem ser divididos em três categorias principais:

  • Atenuação da pena: Se a PJ tiver implementado um programa de compliance antes da infração, de modo que ele seja considerado adequado para prevenir o crime, o tribunal deverá atenuar especialmente a pena aplicada.
  • Conversão da multa: Caso a PJ implemente um programa de compliance eficaz após a infração, a pena de multa poderá ser substituída por outra penalidade alternativa.
  • Imposição judicial de compliance: Quando a PJ for condenada, o tribunal poderá determinar a adoção e implementação de um programa de compliance como uma penalidade acessória.

No entanto, a legislação não definiu o que constitui um programa de compliance adequado, o que gera insegurança jurídica e abre margem para decisões inconsistentes entre os tribunais. Essa lacuna legislativa pode incentivar práticas de "window dressing", ou seja, a adoção de programas meramente formais, sem efetiva implementação.

5. Aplicabilidade do modelo português no Brasil

O Brasil já possui um arcabouço normativo voltado para a responsabilização das PJ em certos âmbitos, notadamente na esfera administrativa e civil. A lei anticorrupção (lei 12.846/13) prevê sanções para PJ envolvidas em atos contra a Administração Pública, e a lei de crimes ambientais (lei 9.605/1998) estabelece a responsabilidade penal das empresas para delitos ambientais. No entanto, a responsabilidade penal das PJ ainda não é amplamente aplicada no Brasil para crimes econômicos e corporativos.

A experiência portuguesa pode servir como base para um aprimoramento do modelo brasileiro, especialmente em três frentes:

  • Ampliação do rol de crimes passíveis de imputação às PJ, incluindo delitos financeiros e contra o mercado de capitais;
  • Um modelo de imputação à pessoa jurídica: Um sistema de imputação que reconheça a ação - causalidade - resultado dentro dos processos dos exercícios de atividade da PJ1.
  • Criação de regras claras sobre os efeitos dos programas de compliance na atenuação da responsabilidade penal;
  • Reforço das estruturas institucionais de fiscalização, evitando que o compliance seja utilizado apenas como estratégia defensiva.

Contudo, para que a transposição desse modelo seja viável, o Brasil precisaria enfrentar desafios estruturais, como o aprimoramento do sistema investigativo e a mitigação do risco de captura regulatória.

6. Conclusão

A experiência portuguesa demonstra que a RPPJ pode ser um instrumento eficaz no combate à criminalidade corporativa, desde que acompanhada de mecanismos sólidos de compliance e fiscalização. A recente legislação portuguesa conferiu maior relevância aos programas de compliance, estabelecendo seus efeitos sobre a responsabilização penal das empresas, mas ainda enfrenta desafios na definição de critérios objetivos para a avaliação desses programas.

No Brasil, a adoção de um modelo semelhante exigiria ajustes legislativos e institucionais, garantindo que a RPPJ não se limite a um mero simbolismo jurídico, mas sim a uma ferramenta eficaz na promoção de um ambiente corporativo mais íntegro e responsável.

__________

1 Apresentei este modelo em RAMOS, Samuel Ebel Braga. Causalidade corporativa: a possibilidade de atribuição de resultados puníveis à pessoa jurídica. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-graduação em Direito. Orientador: Paulo César Busato - Curitiba, 2024.

Samuel Ebel Braga Ramos

VIP Samuel Ebel Braga Ramos

Advogado em Curitiba/PR - Samuel Ebel Braga Ramos Advogados. Doutor em Direito do Estado pela UFPR. Mestre em Direito (2019). Membro da Comissão de Direito Penal e Advocacia Criminal da OAB/SC.

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