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Fato ou direito: A cooperação dolosamente distinta no Tribunal do Júri

O artigo expõe o paradoxo no Tribunal do Júri quando jurados avaliam o elemento subjetivo na cooperação dolosamente distinta, desafiando a separação entre questões fáticas e jurídicas prevista no CPP.

quinta-feira, 13 de março de 2025

Atualizado às 14:01

O Tribunal do Júri, instituição democrática consagrada na CF/88 como cláusula pétrea (art. 5º, XXXVIII, CF/88), apresenta-se como órgão especial da justiça, cuja competência constitucional abarca o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. A estrutura procedimental do júri, regulamentada pelo CPP, estabelece uma rígida (e quase impossível) separação de funções: ao juiz togado competem as questões de direito, enquanto aos jurados, representantes da sociedade, são reservadas as questões de fato.

Esta dicotomia, aparentemente clara sob o prisma dogmático, revela-se, na prática forense, eivada de complexidades hermenêuticas que desafiam a própria estrutura basilar do procedimento especial. O presente artigo propõe-se a analisar criticamente um dos aspectos mais controversos desta delimitação: a votação pelos jurados do elemento subjetivo do tipo penal nos casos de cooperação dolosamente distinta, em aparente desconformidade com o disposto nos arts. 482 e 483 do CPP.

O legislador, ao estruturar o procedimento do Tribunal do Júri, estabeleceu no art. 482 do CPP que "o Conselho de Sentença será questionado sobre matéria de fato e se o acusado deve ser absolvido". Complementarmente, o art. 483 determina a ordem da quesitação, estabelecendo um rito procedimental específico para a deliberação dos jurados.

Esta configuração normativa fundamenta-se no princípio da íntima convicção, pelo qual os jurados não precisam fundamentar suas decisões, e no princípio da soberania dos veredictos, que confere caráter quase intangível às deliberações do Conselho de Sentença. Interpretando a lição de parcela da doutrina "a separação entre questões de fato, atribuídas aos jurados, e questões de direito, reservadas ao juiz presidente, decorre da própria natureza do Tribunal do Júri como instituição democrática de participação popular na administração da justiça".

A distinção entre questões de fato e questões de direito, todavia, não se reveste da nitidez que o texto legal poderia sugerir. A pretensão de estabelecer uma fronteira objetiva entre fato e direito no processo penal revela-se como um resquício do paradigma positivista que ainda permeia nossa dogmática processual. Esta dicotomia, contudo, não resiste a uma análise mais profunda da experiência jurídica: o fato processual não é uma realidade pré-existente e autônoma que se apresenta à cognição judicial, mas uma construção narrativa já impregnada de categorias normativas; simultaneamente, o direito não existe como abstração etérea, mas como dimensão valorativa e significante que só se materializa na concretude dos acontecimentos intersubjetivos.

De fato, a qualificação jurídica de uma conduta pressupõe, necessariamente, a análise valorativa dos elementos fáticos que a compõem. A tipicidade, por exemplo, não é mera subsunção mecânica do fato à norma, mas processo hermenêutico complexo que envolve elementos descritivos e normativos. Nesse sentido, questiona-se: onde termina o fato e começa o direito?

Esta zona obscura é particularmente problemática no âmbito do Tribunal do Júri, onde a estrutura procedimental exige uma delimitação precisa entre o que compete aos jurados e o que compete ao juiz togado.

A cooperação dolosamente distinta, prevista no art. 29, §2º do CP, configura-se quando o agente quis participar de crime menos grave do que o efetivamente praticado pelo autor, respondendo, neste caso, pelo crime menos grave cuja prática era por ele pretendida. Trata-se de hipótese de "desvio subjetivo de conduta" que limita a responsabilidade penal do partícipe ao seu elemento volitivo.

Caracteriza-se fundamentalmente pela assimetria cognitivo-volitiva entre partícipe e autor, manifestando-se quando o horizonte subjetivo do partícipe se circunscreve a um resultado menos grave que o efetivamente produzido pelo executor material. Trata-se de construção dogmática que relativiza o princípio unitário do concurso de pessoas, reconhecendo a individualização da responsabilidade penal conforme o alcance do elemento subjetivo de cada agente. Esta figura exige, portanto, uma análise meticulosa do substrato psíquico que informou a conduta do partícipe, demandando verdadeira incursão na interioridade anímica do agente para determinar os contornos de sua culpabilidade.

Aqui reside o cerne da questão: quando a tese defensiva no Tribunal do Júri invoca a cooperação dolosamente distinta, os jurados são inevitavelmente chamados a decidir sobre o elemento subjetivo do agente - se este quis participar de homicídio ou de lesão corporal, por exemplo. Esta deliberação, contudo, transcende a mera análise fática, adentrando o campo da valoração jurídica.

O paradoxo evidencia-se na seguinte constatação: ao decidir sobre a cooperação dolosamente distinta, os jurados inevitavelmente realizam um exercício hermenêutico que transcende a mera constatação factual, adentrando o universo normativo-valorativo da tipicidade subjetiva. Este fenômeno revela a artificialidade da dicotomia fato-direito no processo penal, especialmente considerando que o elemento subjetivo não é empiricamente verificável, mas inferido por meio de indicadores objetivos e contextuais da conduta.

A quesitação sobre o elemento volitivo-intencional do partícipe constitui, portanto, um momento de ruptura na dinâmica do júri, onde a suposta linearidade entre verificação factual e valoração jurídica cede lugar a uma circularidade hermenêutica: o jurado só pode compreender o "fato" do elemento subjetivo à luz de categorias normativas, e só pode aplicar estas categorias mediante a reconstrução narrativa do contexto fático. Esta interpenetração indissolúvel entre fato e direito desafia a própria arquitetura procedimental do Tribunal do Júri, revelando sua insuficiência paradigmática diante da complexidade do fenômeno jurídico-penal contemporâneo.

Identificado o aparente descompasso entre a previsão legal e a prática procedimental, indaga-se: estaria justificada esta exceção à regra da separação entre questões fáticas e jurídicas no Tribunal do Júri?

Alguns argumentos podem ser aduzidos em favor da legitimação desta prática excepcional:

  1. Princípio da plenitude de defesa: Consagrado constitucionalmente como garantia fundamental do Tribunal do Júri (art. 5º, XXXVIII, "a", CF), o princípio da plenitude de defesa exige que todas as teses defensivas sejam submetidas à apreciação dos jurados, inclusive aquelas que envolvem elementos subjetivos;
  2. Soberania dos veredictos: A CF/88 assegura a soberania dos veredictos (art. 5º, XXXVIII, "c"), o que pressupõe a competência ampla dos jurados para decidir sobre todas as questões relevantes para a formação de seu convencimento;
  3. Interpretação teleológica: Uma interpretação finalística dos arts. 482 e 483 do CPP sugere que o objetivo do legislador não foi estabelecer uma separação absoluta e intransponível, mas garantir que os jurados decidam sobre os aspectos centrais da imputação, o que inclui, necessariamente, o elemento subjetivo nas hipóteses de cooperação dolosamente distinta.

Este redimensionamento implica reconhecer que os jurados, ao julgarem, não apenas constatam fatos, mas participam ativamente da construção discursiva da verdade processual, mediante operações valorativas que, embora não exijam conhecimento técnico-jurídico formal, constituem autêntico equilíbrio entre a legitimidade técnica e a legitimidade democrática na construção da decisão penal. A cooperação dolosamente distinta no Tribunal do Júri desafia-nos, assim, a superar a ilusão de uma fronteira objetiva entre fato e direito, revelando a natureza essencialmente interpretativa, comunicativa e democrática do procedimento especial do Tribunal do Júri.

Por fim, a análise do elemento subjetivo na cooperação dolosamente distinta pelos jurados representa, assim, não uma anomalia, mas a concretização dos princípios constitucionais da plenitude de defesa, da soberania dos veredictos e da participação popular na administração da justiça.

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1 BADARÓ, Gustavo Henrique - Processo Penal - 12. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024.

2 LOPES Jr., Aury - Direito Processual Penal - 22. ed. - São Paulo: Saraiva Jur, 2025.

3 DIREITO PENAL PARTE GERAL: lições fundamentais/ João Paulo Orsini Martinelli, Leonardo Schmitt de Bem. - 9. Ed. - Belo Horizonte, São Paulo: D'plácido, 2024.

4 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal - v. 1: parte geral(arts. 1 a 120). 24. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2018.

Florence Rosa

VIP Florence Rosa

Advogada Criminalista. Especialista em Direito Constitucional, Direitos Humanos e Tribunal do Júri. Professora de Processo Penal. Vice-presidente da Comissão Nacional do Tribunal do Júri da Abracrim.

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