Insegurança jurídica na aplicação da lei 13786/18 nos loteamentos
A divergência ou inaplicabilidade da lei pelo Judiciário afeta a previsibilidade dos contratos e encarece os lotes, prejudicando a todos. Com o julgamento do REsp 2104086/SP será o fim?
terça-feira, 8 de abril de 2025
Atualizado às 11:07
Não conseguir prever os impactos financeiros de uma resolução devido a um ambiente juridicamente instável eleva os riscos para o mercado, refletindo diretamente no custo dos lotes. A proteção que o Judiciário busca dar ao consumidor em dissonância com o texto legal torna o mercado menos acessível.
A segurança jurídica é um dos pilares essenciais para o bom funcionamento das relações contratuais e restabelecer o equilíbrio com a aplicação da lei 13.786/18 demonstra-se necessário para atender aos interesses de consumidores e loteadores, gerando a possibilidade de precificar de forma justa o lote, a fim de permitir melhores preços aos adquirentes, em especial àqueles que cumprem as suas obrigações e que hoje pagam o preço pelos inadimplentes e pelo protecionismo ilegítimo.
Aprendemos nos bancos acadêmicos a famosa criação de Montesquieu do século XVIII que propõe a divisão do poder estatal entre: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Essa divisão tem por objetivo evitar a concentração de poder em uma única entidade e garantir um sistema de freios e contrapesos, onde cada poder tem a capacidade de limitar as ações dos outros.
A questão é: qual é o limite desse sistema de freios e contrapesos?
Não é novidade em nosso país o reclamo dos profissionais do direito sobre a insegurança jurídica gerada pelos diversos entendimentos conflitantes do Poder Judiciário, em todos os seus níveis, sobre uma mesma matéria.
Isso tem ocorrido, também, quanto à aplicação do art. 32-A da lei 6766/79, incluído pela lei 13.786/18 que regulou as consequências do desfazimento de contratos firmados para a aquisição de lotes, quando a culpa por ele é atribuída ao adquirente.
Referido artigo prescreve que:
Art. 32-A. Em caso de resolução contratual por fato imputado ao adquirente, respeitado o disposto no § 2º deste artigo, deverão ser restituídos os valores pagos por ele, atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, podendo ser descontados dos valores pagos os seguintes itens:
I - os valores correspondentes à eventual fruição do imóvel, até o equivalente a 0,75% (setenta e cinco centésimos por cento) sobre o valor atualizado do contrato, cujo prazo será contado a partir da data da transmissão da posse do imóvel ao adquirente até sua restituição ao loteador;
II - o montante devido por cláusula penal e despesas administrativas, inclusive arras ou sinal, limitado a um desconto de 10% (dez por cento) do valor atualizado do contrato;
III - os encargos moratórios relativos às prestações pagas em atraso pelo adquirente;
IV - os débitos de impostos sobre a propriedade predial e territorial urbana, contribuições condominiais, associativas ou outras de igual natureza que sejam a estas equiparadas e tarifas vinculadas ao lote, bem como tributos, custas e emolumentos incidentes sobre a restituição e/ou rescisão;
V - a comissão de corretagem, desde que integrada ao preço do lote.
Como se vê, referida Lei Federal é clara, objetiva e estabelece parâmetros matemáticos para a efetivação do cálculo da devolução ao adquirente que deu causa a resolução contratual.
Verifica-se que para o inciso I e II, que trata da fruição e da cláusula penal, há uma flexibilidade dos percentuais estabelecidos pelo legislador, que a nosso ver, foi deixada pelo legislador a cargo dos contratantes, em respeito ao princípio da autonomia da vontade das partes, no entanto, mesmo se considerarmos que tal encargo reste ao Poder Judiciário em determinada demanda, ainda que os percentuais sejam flexíveis, devem ser aplicados, qualquer que seja, dentro do limite legal.
Devido ao caráter frugífero do lote e sua ascensão ao patrimônio do adquirente, que deixa de ser disponível à loteadora, a lei estabeleceu uma presunção de prejuízo a ela por essa indisponibilidade em contrapartida da posse do comprador que deu causa a resolução.
A essa disponibilização se denominou fruição, como vemos no inciso I acima, que deve ser descontada desde a sua transmissão até a resolução. Note-se que essa condição se aplica mesmo a um lote sem edificação, pois ela em nada interfere nos motivos que sustentam a sua cobrança.
Quanto ao inciso II, além das despesas administrativas que são naturais a operação de comercialização e cobrança, temos de fato uma cláusula penal pelo descumprimento do contrato. O inciso não se refere à "percentual de retenção", mas sim a verdadeira pena a ser aplicada pela inadimplência para compensar não só as despesas, mas os prejuízos pela quebra contratual.
Já em relação ao que disposto no inciso III, sua presunção é lógica, e no IV, até pelo caráter propter rem do tributo e taxa mencionados, não poderia ser diferente.
Por fim, o inciso V, destaca o preço da corretagem, vez que é verba remuneratória paga ao corretor, devida por lei, em razão do seu trabalho para concretização do negócio.
Mesmo diante de tal clareza, nota-se que há uma tendencia do STJ em se fixar um percentual de até 25% de retenção, genericamente, negando a aplicação do art. 32-A da lei 6.766/79 que regulou a matéria, como vemos, por exemplo, no AgInt no AREsp 2597051/GO e AgInt no AREsp 1.568.920/GO.
Imaginemos, hipoteticamente, que o montante pago pelo comprador seja inferior a taxa de corretagem e, mesmo assim, que seja fixada de forma genérica o percentual de 25% de retenção dos valores pagos a título de "todos os encargos". A taxa de corretagem pelo serviço efetivamente prestado pelo corretor e que por lei lhe é devida (Art. 725 do CC.), seria inadimplida sob o argumento de que o percentual é aplicável para que comprador "não perca tudo o que pagou".
Foi muito bem acertado pelo legislador o estabelecimento de percentual sobre o valor do contrato nos casos de resolução. O estabelecimento de percentual genérico pelo Judiciário que em geral se limita a 25% de retenção do valor pago, não traz coerência ou fundamento.
Temos por essa aplicação desacertada de retenção que um adquirente que tenha adimplido 90% de seu contrato sofrerá uma perda maior do que aquele que tenha adimplido apenas 10%. Como pode aquele que mais inadimpliu ter consequências menores, em função do que pagou e não do valor do negócio ajustado?
O art. 413 do CC e outros do CDC (6º, V, 39, V, 51, IV, § 1º, III, e 53) podem ser balizadores para a redução de eventuais penalidades abusivas, no entanto, não há abusividade se o contrato tem suas cláusulas pactuadas nos limites da lei especial.
A generalidade das decisões também se estende a aplicação do CDC indiscriminadamente aos contratos imobiliários, sob alegação de "contrato de adesão", sem a observação da individualidade do adquirente, que em muitas assim não se enquadra.
Trazer segurança jurídica e estabelecer uniformidade na aplicação da Lei que tem sido em muitos casos ignorada é imperioso. Esses entendimentos diversos têm encorajado a propositura de numerosos casos que abarrotam o Poder Judiciário e desestimula o mercado.
A alteração legislativa de 2018 que trouxe a redação do artigo 32-A, buscou efetivamente terminar com a discussão do tema de percentuais de retenção em casos de resolução que eram levados ao Judiciário, trazendo de forma analítica e determinada as regras aplicáveis a situação para que loteadores e consumidores as tivessem bem definidas antes da contratação. Por que a relutância na aplicação?
No que tange a fruição sobre os lotes, tema que tem gerado ainda mais divergência entre todos do referido art. 32-A, o E. Superior Tribunal de Justiça tem se utilizado de sua sumula 568, insculpida em 16/03/2016, que prevê que "O relator, monocraticamente e no Superior Tribunal de Justiça, poderá dar ou negar provimento ao recurso quando houver entendimento dominante acerca do tema", para negar a aplicação aos lotes não edificados, sob alegação que esse é o entendimento consolidado, como, por exemplo, vemos nos julgados: Recursos Especiais nº 2051406 - SP; 2078355 - SP; 2067041 - MT; 2073381 - SP; 2073381 - SP; 2067521 - SP; 1988464 - SP; 2067041 - MT; 2073381 - SP; Agravo em Recurso Especial nº 2270754 - SP.; AgInt no AREsp 2541026 / SP.
Vemos, ainda, manifestações por parte do STJ na negativa da aplicação da fruição aos contratos firmados antes da vigência da lei 13.786/18, sob esse fundamento, como demonstrado no RESP 2020232 - SP, que, no entanto, não se vê alterado, para os casos em que os contratos foram celebrados após a regulamentação da referida lei.
No entanto, além da premissa legal e do caráter frugífero, com esse entendimento o Judiciário também tem ignorado que muitas vezes estamos diante de lotes que disponibilizam a seus adquirentes a possibilidade de usufruir, em razão da aquisição, de verdadeiros resorts com ampla estrutura que independem de qualquer edificação no lote, trazendo direto benefício a eles apenas pela posse do lote.
Por outro lado, o E. TJ/SP, vem aplicando a taxa de fruição a lotes, em diversos precedentes a exemplo dos processos 1041650-62.2022.8.26.0576, 1007497-88.2020.8.26.0344, 1005517-81.2020.8.26.0320, 1069590-09.2021.8.26.0100, porém com diferenças a cada julgamento.
A mesma observação sobre as divergências na aplicação da Lei vale para cada um dos tribunais pesquisados, inclusive com, ao nosso ver, o louvável entendimento do Tribunal de Tocantins na Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) 0009560-46.2017.8.27.0000, pela aplicação integral do art. 32-A.
Temos que a insegurança é tão grande que, mesmo diante de lote edificado, encontramos julgado, com o devido respeito, contrário à lei, como nos autos do Recurso Especial 2113745 / SP (2023/0439294-7), com relatoria da eminente Ministra NANCY ANDRIGHI, com a seguinte ementa:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL CUMULADA COM REINTEGRAÇÃO DE POSSE E PERDAS E DANOS. RECONVENÇÃO. DIREITO DE RETENÇÃO POR BENFEITORIAS. TAXA DE FRUIÇÃO DE IMÓVEL. VENDA DE LOTE NÃO EDIFICADO. POSTERIOR CONSTRUÇÃO PELO PROMITENTE COMPRADOR. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA.
1. Ação de rescisão cumulada com reintegração de posse e perdas e danos pelo uso/fruição do imóvel e reconvenção, ajuizada em 18/6/2020, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 28/8/2023 e concluso ao gabinete em 18/12/2023.
2. O propósito recursal consiste em decidir se é devida a taxa de fruição após o desfazimento de promessa de compra e venda de lote não edificado quando há posterior construção de imóvel pelo promitente comprador.
3. A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de ser indevida a taxa de ocupação ou fruição após o desfazimento de promessa de compra e venda de lote não edificado, uma vez que a resolução não enseja nenhum enriquecimento do comprador ou empobrecimento do vendedor.
4. No recurso sob julgamento, a superveniência de edificação para residência no lote negociado não é motivo suficiente para afastar a jurisprudência uníssona desta Corte. Não se verifica proveito indevidamente auferido pelas promitentes compradoras, as quais arcaram com as custas da edificação, e sequer há empobrecimento do promissário vendedor, o qual retomará o terreno com as benfeitorias acrescidas após justa indenização, nos termos do art. 1.219 do Código Civil.
5. Recurso especial conhecido e provido para afastar a condenação das recorrentes ao pagamento da taxa de fruição do imóvel.
Embora a reflexão aqui trazida seja quanto a resolução em decorrência de culpa do adquirente, negar a existência da fruição em lote, o prejudica. O adquirente poderia, por exemplo, reivindicar a reversão do valor da fruição pelos meses de atraso na entrega do loteamento inadimplência contratual da loteadora. Vemos na ementa colacionada acima, novamente uma interpretação genérica que afastou o direito de fruição requerida por um adquirente sobre um lote, esse edificado, apenas sob argumento de que lote, por ser o que é, não admite indenização pelo período de sua indisponibilidade.
Diante desse cenário, fica evidente a necessidade de um posicionamento uniforme do STJ para garantir a segurança jurídica tanto aos consumidores quanto aos loteadores.
Aos advogados, formadores de jurisprudência com seus insistentes reclamos, quanto à fruição do art. 32-A, I, lei 6766/79, enquanto não unificado o entendimento, sugerimos que demonstrem de forma exaustiva que o fato de inexistir construção no lote, não significa a inexistência de sua fruição pelos motivos expostos e que demandam o pagamento de indenização pelo período da posse.
É valido também demonstrar para o Judiciário como adquirentes tem se beneficiado das infraestruturas existentes independentemente de edificação nos lotes, bem como pela especulação daqueles que compram no lançamento para revenda.
Quanto a especulação imobiliária, não é justo que diante de um cenário desfavorável do mercado imobiliário a aqueles que tenham se aventurado buscando lucro na revenda pela cessão de seus direitos, que descumpram seus contratos sem incorrer nas penalidades da lei.
Nos resta, também, a expectativa e esperança de ver a matéria bem julgada pelo STJ no REsp 2104086/SP, no qual a relatora, ministra Maria Isabel Gallotti, já votou[1] em consonância com o entendimento aqui trazido, conforme veiculado anteriormente pelo Migalhas2.
Finalizando, é imprescindível que a norma seja interpretada e aplicada de forma coerente, seja para confirmar sua validade, seja para discutir sua eventual inconstitucionalidade, mas jamais ser ignorada como temos visto acontecer.
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1 https://www.youtube.com/live/0DQ6NGo7TqQ?t=7195&si=ygu9X-XT8ZtUu91f
2 https://www.migalhas.com.br/quentes/421354/desistencia-de-lote-autoriza-retencao-de-taxa-de-fruicao-stj-julga
Vitor Duarte Gonzaga
Advogado e sócio do escritório Duarte & Escolástico Advogados. Especialista em Direito Imobiliário. E-mail: [email protected]



