Críticas à proibição de participação do acusado no depoimento da suposta vítima
Este ensaio critica a aplicação automática do art. 217 do CPP nas audiências virtuais, destacando o cerceamento de defesa gerado ao impedir que o acusado ouça o depoimento da suposta vítima.
terça-feira, 8 de abril de 2025
Atualizado às 11:14
1. Introdução.
A evolução tecnológica trouxe significativas mudanças na dinâmica processual penal, especialmente com a consolidação das audiências virtuais. No entanto, a legislação brasileira, em muitos pontos, ainda reflete uma lógica pensada exclusivamente para o ambiente físico. É o caso do artigo 217 do Código de Processo Penal, que prevê a retirada do acusado da sala de audiência quando sua presença causar constrangimento à suposta vítima ou às testemunhas. Embora a intenção da norma seja legítima, visando à proteção de vítimas e à preservação da verdade real, sua aplicação automática às audiências virtuais revela-se problemática. Ao impedir que o acusado sequer ouça os depoimentos prestados contra ele, mesmo quando sua imagem pode ser ocultada, o Judiciário incorre em evidente cerceamento do direito de defesa, comprometendo a paridade de armas no processo penal.
2. Desenvolvimento.
2.1 O contexto do art. 217 do CPP e sua origem presencial.
O artigo 217 do Código de Processo Penal foi concebido em um cenário no qual as audiências eram realizadas exclusivamente de forma presencial. A principal preocupação era proteger a vítima ou testemunha de um eventual constrangimento direto causado pela presença física do réu, o que poderia inibir ou prejudicar a espontaneidade e veracidade do depoimento. A norma permite, nesses casos, que o juiz retire o acusado da sala de audiência, permitindo que o defensor permaneça no local, garantindo, ao menos formalmente, o contraditório e a ampla defesa.
Contudo, é necessário reconhecer que o referido dispositivo nasceu para uma realidade já superada em parte pela virtualização dos atos processuais. Hoje, a tecnologia permite que o acusado acompanhe a audiência remotamente, sem que sua imagem ou presença seja percebida pela suposta vítima ou testemunha, o que inviabiliza os fundamentos tradicionais do afastamento previsto no art. 217.
2.2 A realidade virtual e as novas possibilidades.
Com a ampliação do uso de plataformas de videoconferência no Poder Judiciário, especialmente após a pandemia da COVID-19, tornou-se tecnicamente viável preservar simultaneamente o conforto da suposta vítima e os direitos do acusado. Ferramentas como o ocultamento de imagem e som permitem que o acusado acompanhe os depoimentos sem ser visto ou ouvido, evitando qualquer risco de intimidação.
Nesse contexto, aplicar de forma acrítica e automática o art. 217 para impedir completamente a participação do acusado, mesmo que silenciosa e invisível, revela uma interpretação reducionista e desatenta à nova realidade. O ambiente virtual, ao contrário do presencial, viabiliza soluções intermediárias que preservam o equilíbrio processual.
2.3 O contraditório como valor constitucional inegociável.
A Constituição Federal consagra, em seu art. 5º, inciso LV, o contraditório e a ampla defesa como garantias fundamentais em qualquer processo judicial. Embora a atuação da defesa técnica seja essencial, ela não substitui a participação ativa do acusado, sobretudo nos momentos cruciais da formação da prova.
Negar ao defendido o direito de ouvir os depoimentos que embasam a acusação, e ainda submetê-lo a interrogatório imediatamente na mesma audiência, sem que tenha tido contato prévio e direto com as declarações, é limitar substancialmente seu direito de se defender. Mesmo com o resumo feito pela defesa técnica minutos antes do interrogatório, essa interpretação transforma a ampla defesa em parcial defesa, subvertendo o direito fundamental.
2.4 O desequilíbrio processual e o risco ao julgamento justo.
A aplicação literal e descontextualizada do art. 217 no ambiente virtual acaba por gerar um desequilíbrio processual. A suposta vítima e as testemunhas são ouvidas sem a presença do acusado, que por sua vez é interrogado sem ter tido qualquer acesso prévio à íntegra dos depoimentos. Trata-se de uma assimetria que compromete a eficácia do contraditório e da ampla defesa.
Além disso, essa lógica (perversa) transfere para o defensor técnico uma responsabilidade excessiva: resumir em poucos minutos os principais pontos dos depoimentos, para que o acusado possa se posicionar no interrogatório. Trata-se de uma expectativa irrealista e desproporcional, que compromete a própria qualidade da defesa e prejudica o direito do acusado de formar sua estratégia com base no que ouviu e sentiu diretamente dos relatos acusatórios.
2.5 A razoabilidade como critério de interpretação do art. 217.
Não se trata, evidentemente, de defender que o acusado tenha o direito absoluto de participar com imagem e som dos atos de oitiva da vítima. Há, sim, situações nas quais sua presença visível pode causar constrangimento e prejudicar a apuração da verdade. Contudo, impedir totalmente sua participação, inclusive sonora e invisível, quando há recursos técnicos que evitam o contato visual e auditivo com a vítima, é uma medida exagerada e desproporcional.
A razoabilidade deve nortear a interpretação do art. 217. Se o objetivo da norma é evitar constrangimento à vítima, mas a tecnologia permite alcançar esse fim sem sacrificar o direito de defesa do acusado, esta deve ser a solução adotada. O Judiciário, nesse ponto, tem o dever de atualizar a aplicação da norma, adaptando-a ao novo contexto das audiências virtuais.
3. Conclusão.
A preservação da dignidade da suposta vítima é um valor essencial do processo penal moderno, mas não pode ser utilizada como justificativa para a supressão de garantias fundamentais do acusado. A aplicação automática e acrítica do art. 217 do CPP nas audiências virtuais desconsidera as possibilidades tecnológicas atuais e compromete o equilíbrio entre acusação e defesa.
A participação do acusado nos atos processuais é mais do que uma formalidade: é uma condição de legitimidade do processo penal. Negar-lhe o direito de ao menos ouvir em tempo real o que é dito contra si, mesmo quando a tecnologia permite sua presença discreta e silenciosa, representa um grave retrocesso jurídico.
É necessário, portanto, que o Judiciário avance no reconhecimento dessas novas possibilidades e cesse o uso mecânico de dispositivos legais pensados para um contexto superado. O processo penal do século XXI deve ser, acima de tudo, um instrumento de justiça - e justiça só se alcança quando todos os envolvidos têm garantido o pleno exercício de seus direitos, inclusive o direito de estar presente, ainda que de forma invisível.


