Fim da saída temporária e sua retroatividade
O objetivo do artigo é discutir a polêmica em torno do fim da saída temporária e sua aplicação retroativa, independentemente do processo estar em andamento ou já ter transitado em julgado.
quinta-feira, 10 de abril de 2025
Atualizado às 09:11
A lei 14.843/241 (lei sargento PM Dias) foi sancionada no dia 11/4/24 com veto parcial do presidente da República, sendo posteriormente derrubado o veto para entrar em vigor, completamente, no dia 13/6/24.
Alterações na lei de execução penal
A nova lei revogou os incisos I e III do caput do art. 122 da lei de execução penal (lei 7.210/19842), que anteriormente permitiam a saída temporária para visita à família e participação em atividades que facilitassem o retorno ao convívio social. Com a nova redação, a saída temporária agora se destina exclusivamente à frequência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na comarca do juízo da execução, conforme o art. 122, II, da lei de execução penal.
Além disso, a alteração no §3º do art. 122 da lei de execução penal proibiu a saída temporária para condenados que cumprem pena por qualquer crime hediondo ou crimes praticados com violência ou grave ameaça contra a pessoa. Anteriormente, essa proibição se aplicava apenas a condenados por crimes hediondos com resultado morte.
Retroatividade das normas penais e processuais
A questão da retroatividade das normas penais e processuais é um tema complexo e amplamente debatido no âmbito jurídico. A divergência principal reside na natureza da norma: se ela é de natureza material (penal) ou processual.
As normas de natureza material, ou penais, são aquelas que definem crimes e cominam penas. De acordo com o princípio da retroatividade benéfica, previsto no art. 5º, XL, da CF/883, essas normas podem retroagir para beneficiar o réu. Isso significa que, se uma nova lei penal for mais benéfica ao condenado, ela deve ser aplicada retroativamente, alcançando fatos pretéritos e processos em curso, de outro lado, sendo ela maléfica, não retroage aos fatos já praticados.
Por outro lado, as normas de natureza processual são aquelas que regulam o procedimento judicial, como prazos, formas de citação e mandados. O princípio que rege essas normas é o do "tempus regit actum", ou seja, a lei processual aplica-se imediatamente, sem retroagir, mesmo que seja prejudicial ao réu. Essa discussão é especialmente relevante em casos de normas híbridas ou mistas, que possuem tanto conteúdo penal (material) quanto processual. Nesses casos, a parte penal da norma tende a prevalecer, e a norma retroagirá se for mais benéfica ao réu.
Aplicação da lei 14.843/24
Em relação à aplicação da lei 14.843/24, surgiram duas correntes, quais sejam, a primeira corrente entende que a norma é de natureza material e, por ser maléfica aos condenados (restrição da saída temporária), não deve retroagir para os fatos ocorridos antes de sua vigência.
A primeira corrente foi abraçada pelo STJ no informativo 827, de 1/10/24, com os seguintes dizeres:
"O § 2º do art. 122 da Lei de Execução Penal, com a redação da Lei n. 14.843/2024, torna mais restritiva a execução da pena, restringindo o gozo das saídas temporárias aos condenados por crimes hediondos ou cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, não pode ser aplicado retroativamente a fatos ocorridos antes de sua vigência, em respeito ao princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa. HC 932.864-SC, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 10/9/2024, DJe 13/9/2024".
De outro lado, autores da segunda corrente entendem que a norma é genuinamente processual e deve ser aplicada imediatamente para todos os condenados. Isso porque o instituto da saída temporária deixou de existir (como outrora) no ordenamento jurídico e, por isso, não se aplicaria para as execuções em curso, ressalvados os casos de saídas temporárias já deferidas, em respeito ao ato jurídico perfeito.
Nova proposta de debate: A lei execucional
Diferentemente das correntes anteriores, nós propomos outro debate, com soluções diversas para o caso.
Consigne-se que, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, não se aplicam, em regra, os institutos previstos na lei 7.210/1984 (lei de execução penal). Isso ocorre porque a sentença condenatória é uma sentença constitutiva, ou seja, ela constitui uma nova relação jurídica, que se inicia com a execução penal. Por isso, se houver alguma retroatividade das normas execucionais, essa retroação se esbarraria no trânsito em julgado da sentença condenatória, isso porque, antes desse marco, não há falar em direito à retroatividade benéfica, pois a relação jurídica inexiste.
Exceção a essa regra são as execuções provisórias já iniciadas quando o acusado está preso preventivamente ou nos casos de condenação no Tribunal do Júri, conforme entendimento do STF no RE 1.235.340, que teve repercussão geral reconhecida (Tema 1.068). Sendo assim, o marco para o início da execução penal é a decisão de prisão no plenário do júri ou a decisão de prisão preventiva, quando há execução provisória.
Por esse motivo, não há falar em retroatividade benéfica das normas relacionadas à execução penal para fatos praticados anteriormente à vigência da nova lei. Em verdade, é só com a condenação transitada em julgado que há a perspectiva de aplicação de institutos da execução penal. Por isso, a nova lei deve ser aplicada somente para as novas condenações transitadas em julgado em data posterior à sua vigência, ressalvada as execuções provisórias.
A discussão sobre a aplicabilidade de normas relacionadas à execução penal possui um paradigma diferente, pois o marco para a retroatividade deve ser a própria aplicação da pena. Desse modo, não se está falando em normas penais materiais ou normais processuais, pois essas exaurem a sua aplicação com o trânsito em julgado da sentença.
Quando se trata de execução penal, as leis penais ou processuais penais deixam de ser aplicadas e surge uma nova categoria de lei a ser empregada, a lei execucional.
A novel discussão acerca da retroatividade da lei execucional é de grande relevância no âmbito jurídico. Diferentemente das leis penais e processuais penais, cujo marco de aplicação é a data do crime, a lei execucional tem como marco o trânsito em julgado da sentença condenatória. Isso significa que a nova lei execucional deve ser aplicada apenas para as condenações transitadas em julgado em data posterior à sua vigência.
Nesse sentido, é no momento do trânsito em julgado que se constitui a nova relação jurídica base entre o condenado e o Estado, sendo que isso reverberá para todos os institutos de execução penal aplicáveis ao sentenciado.
Tomada por base essa premissa, as leis execucionais se distinguem em leis execucionais materiais, em paralelo às normas penais materiais, e leis execucionais procedimentais, em paralelo às normais processuais penais.
Desse modo, as leis execucionais materiais devem retroagir à data do trânsito em julgado. Portanto, se o trânsito em julgado da sentença penal condenatória é anterior à nova lei, as regras anteriores devem ser aplicadas, pois a relação jurídica já estava constituída, com todas as suas consequências, como progressão de regimes e saída temporária. Entretanto, se o trânsito em julgado da sentença penal condenatória é posterior à novel legislação, ela deve ser aplicada, ainda que maléfica, em sua completude. Isso ocorre porque a nova lei foi criada para ser aplicada na execução penal e, repita-se, a execução penal se inicia com o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Diferentemente, as leis execucionais procedimentais (não podem ser denominadas de leis execucionais processuais porque o processo penal já se encerrou) não retroagem e devem ser aplicadas a todas as execuções penais em curso quando da entrada de sua vigência.
Conclusão
Entendemos que a referida lei é uma lei execucional material, pois se aplica a institutos diretamente ligados à liberdade, ainda que provisória, do réu, como a saída temporária. Nesse sentido, a novel legislação, por ser maléfica, deve ser irretroativa para condenações já transitadas em julgado quando da vigência da nova lei, ou seja, para os já condenados até o dia 10/4/24 não se aplica a proibição da saída temporária para qualquer crime hediondo ou com violência ou grave ameaça contra a pessoa, pois a nova norma insculpida no art. 122, §4º, da lei 7.210/84 entrou em vigor nessa data.
Diferentemente, para os condenados até dia 12/6/24, não se aplicam as novas normas que restringiram a saída temporária somente à hipótese dos estudos e, consequentemente, para as condenações posteriores à 13/6/24, todas as novas restrições trazidas pela lei sargento PM Dias são aplicadas em sua completude, ainda que o fato seja anterior a sua vigência.
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1 BRASIL. Lei Nº 14.843/2024, de 11 de abril de 2024. Altera a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), para dispor sobre a monitoração eletrônica do preso, prever a realização de exame criminológico para progressão de regime e restringir o benefício da saída temporária. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/l14843.htm. Acesso em 14 mar 2025.
2 BRASIL. Lei Nº 7.210/1984, de 13 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em 14 mar 2025.
3 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidente da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 14 mar 2025.


