Interceptações digitais, intimidade e limites das provas no processo
Este artigo analisa o uso de provas digitais e interceptações telemáticas e os limites legais diante da proteção da intimidade no processo judicial.
quinta-feira, 10 de abril de 2025
Atualizado às 11:50
1. Conceito de comunicações telemáticas
As comunicações telemáticas correspondem a toda e qualquer forma de transmissão de dados, mensagens e informações por meio de sistemas digitais, englobando e-mails, mensagens trocadas em aplicativos de comunicação instantânea (como WhatsApp, Telegram, Signal), chats privados de redes sociais e sistemas de comunicação interna de plataformas digitais. A telemática, por sua natureza, envolve o uso conjunto da tecnologia da informação e da telecomunicação, permitindo a transmissão rápida, massiva e interativa de dados, em especial através de redes de computadores.
A lei 9.296/1996, que regulamenta o inciso XII do art. 5º da CF/88, é expressa ao incluir, entre as modalidades de interceptação permitidas, os "fluxos de comunicação em sistemas de informática e telemática" (art. 1º). Isso revela que as mensagens eletrônicas, mesmo que não equiparadas integralmente às ligações telefônicas, são também abrangidas pelo regime jurídico de proteção e inviolabilidade.
A doutrina reconhece a especificidade das comunicações telemáticas enquanto extensão da vida privada do indivíduo. Nas palavras de Gustavo Badaró, "as mensagens trocadas por aplicativos digitais devem receber a mesma proteção conferida à correspondência privada, pois se inserem no âmbito de manifestação reservada da personalidade" (BADARÓ, 2016, p. 104). No mesmo sentido, Alexandre Morais da Rosa salienta que "o direito à privacidade, na era digital, deve incluir a proteção das interações comunicativas eletrônicas, que são muitas vezes mais sensíveis que as comunicações presenciais" (ROSA, 2020, p. 88).
Em face disso, é imprescindível compreender que a comunicação telemática, por ser uma extensão tecnológica da vida privada, deve estar sob a guarda dos mesmos princípios de inviolabilidade que protegem as comunicações postais e telefônicas, cabendo apenas ao Poder Judiciário, e mediante rigoroso controle legal, autorizar sua interceptação ou acesso.
2. Proteção da intimidade e reserva de jurisdição
O direito à intimidade é um dos pilares do Estado Democrático de Direito, consagrado no art. 5º, inciso X, da CF/88. No contexto digital, esse direito assume dimensões ainda mais relevantes, pois envolve a proteção de dados sensíveis, interações comunicativas privadas e conteúdos que revelam aspectos profundos da personalidade humana. A jurisprudência dos tribunais superiores tem afirmado a necessidade de aplicação rigorosa da cláusula de reserva de jurisdição quando se trata da obtenção de dados comunicacionais.
Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet, "a intimidade não é apenas um direito subjetivo individual, mas também uma expressão institucional da dignidade da pessoa humana, sendo inviolável salvo por autorização legal com controle jurisdicional" (SARLET, 2019, p. 217). O autor destaca que a reserva de jurisdição é mecanismo de contenção do poder do Estado, exigível sempre que há intervenção estatal na esfera privada.
A lei 12.965/14 (marco civil da internet), ao regulamentar os direitos fundamentais dos usuários da internet, consagra no art. 7º a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, e exige ordem judicial para fornecimento de conteúdos de comunicação privada. O art. 10 do marco civil é ainda mais taxativo: art. 10. A guarda e a disponibilização das comunicações privadas serão feitas mediante ordem judicial, na forma da lei.
O art. 22 da mesma lei também prevê expressamente que "A parte interessada poderá, com o propósito de formar conjunto probatório em processo judicial cível ou penal, requerer ao juiz que ordene ao responsável pela guarda do registro que forneça os registros de conexão ou de acesso a aplicações de internet."
O parágrafo único do dispositivo exige que o pedido seja instruído com elementos que justifiquem a medida, demonstrando sua indispensabilidade à elucidação dos fatos.
O conjunto normativo revela, portanto, que a quebra do sigilo das comunicações, no contexto da internet, está submetida a rígidos critérios legais e jurisdicionais. A ordem judicial deve ser fundamentada, específica e proporcional, não se admitindo requisições genéricas, automáticas ou em massa. Tal disciplina legal visa a resguardar o núcleo essencial do direito à intimidade, mesmo diante das necessidades legítimas da persecução penal ou da instrução processual em demandas cíveis.
Douglas Fischer observa que "não basta ordem genérica para acesso a dados sensíveis: é necessária autorização judicial fundamentada, com indicação específica dos dados requeridos, a fim de se evitar devassa indiscriminada da esfera privada" (FISCHER, 2021, p. 138).
Assim, a proteção da intimidade na era digital exige não apenas previsão normativa clara, mas também uma atuação judicial comprometida com os princípios da legalidade, da proporcionalidade e da estrita necessidade na intervenção de direitos fundamentais.
3. Limites na obtenção de provas telemáticas
A produção de provas obtidas por meio de interceptação ou requisição de dados telemáticos deve respeitar estritamente os limites constitucionais e legais. A inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos é expressa no art. 5º, inciso LVI, da CF/88. A jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de que o acesso a mensagens privadas sem autorização judicial constitui prova ilícita, devendo ser desentranhada dos autos e desconsiderada.
No julgamento do habeas corpus 598.051/SP, de relatoria do ministro Rogerio Schietti Cruz, a 6ª turma do STJ asseverou: "Não se admite, no processo penal, a utilização de prova consistente em interceptação de mensagens de aplicativo de celular (WhatsApp), obtida diretamente pela parte, sem autorização judicial, sob pena de nulidade e de violação ao sigilo das comunicações."
Guilherme Nucci ressalta que "prova ilícita contamina o processo como um todo, havendo, inclusive, a possibilidade de reconhecimento da nulidade absoluta se utilizada como fundamento para decisão judicial" (NUCCI, 2020, p. 267).
Jorge de Figueiredo Dias vai além, ao afirmar que "a legalidade da prova é condição de validade do processo penal justo, sendo seu descumprimento um rompimento da equidade processual" (DIAS, 2003, p. 89).
Nesse contexto, é essencial que qualquer prova obtida em ambiente digital seja acompanhada dos requisitos legais, como autorização judicial prévia, delimitação temporal, especificação dos alvos e objetivo investigativo determinado. Provas produzidas fora desses limites, além de inúteis, podem ensejar responsabilização civil, administrativa e penal dos agentes públicos e particulares envolvidos.
Contudo, diferentemente do que ocorre com a interceptação telefônica, que somente pode ser autorizada por autoridade judicial competente em matéria penal (art. 3º da lei 9.296/1996), a requisição de dados telemáticos pode ser deferida por qualquer juízo, inclusive cível ou trabalhista, desde que observadas as exigências legais de especificidade, fundamentação e necessidade da prova.
A jurisprudência também reconhece a competência dos juízos não penais para a requisição de dados digitais. O TST, por exemplo, no processo TST-AIRR-10037-57.2021.5.03.0104, assentou a possibilidade de determinação judicial para acesso a dados de geolocalização extraídos de plataformas digitais, desde que respeitada a reserva de jurisdição e observados os princípios da proporcionalidade e necessidade.
O TST também reconheceu a possibilidade de utilização de geolocalização como meio de prova para aferição da jornada de trabalho, desde que autorizada judicialmente e obtida de forma proporcional e necessária. (TST, AIRR-10037-57.2021.5.03.0104, 1ª turma, relator ministro Hugo Carlos Scheuermann, julgado em 5/10/22, DEJT 7/10/22).
O TJ/DFT já admitiu o uso de postagens em redes sociais como prova de conduta ofensiva, apta a ensejar indenização por danos morais. (TJ/DFT, acórdão 1328531, 20180710094842APC, relator desembargador Romeu Gonzaga Neiva, 3ª turma cível, DJe 13/10/21). Embora postagens, a rigor, não se enquadrem no conceito de intimidade. Trata-se, na verdade, de publicidade voluntária que afasta a alegação de sigilo ou de proteção da intimidade, pois o próprio emissor tornou acessível o conteúdo a terceiros.
Ainda, o TJ/SP reconheceu a validade de conversas no Facebook Messenger, acompanhadas de ata notarial, como prova de fraude contratual. (TJ/SP, apelação cível 1001130-16.2019.8.26.0481, relator desembargador Milton Carvalho, 13ª Câmara de Direito Privado, julgado em 22/10/20, DJe 23/10/20).
Por sua vez, o TST já analisou a validade do uso de e-mails corporativos como prova legítima desde que não envolva violação à intimidade do trabalhador. (TST, RR-10775-17.2015.5.03.0010, relator ministro Cláudio Brandão, 7ª turma, julgado em 8/8/18, DEJT 17/8/18).
Conclusões
A evolução tecnológica trouxe profundas transformações nas formas de comunicação humana e, por consequência, nas relações jurídicas e na produção da prova judicial. Diante desse cenário, as comunicações telemáticas, tais como e-mails, mensagens instantâneas e postagens em redes sociais, passaram a ocupar posição central como elementos de prova nos processos judiciais.
Contudo, o reconhecimento da validade dessas provas exige rigoroso respeito aos princípios constitucionais que regem a atividade probatória, em especial os direitos fundamentais à intimidade, à vida privada e ao devido processo legal. A CF/88, a lei 9.296/1996 e o marco civil da internet estabeleceram balizas normativas claras para o acesso a dados e comunicações digitais, exigindo ordem judicial específica, fundamentação concreta e observância aos princípios da proporcionalidade e da necessidade.
A jurisprudência brasileira, tanto dos tribunais superiores quanto das instâncias ordinárias, tem evoluído para admitir o uso de provas digitais, desde que lícitas, autênticas e obtidas com as garantias legais. Mensagens de WhatsApp, postagens em redes sociais, dados de geolocalização e e-mails corporativos têm sido aceitos como meios probatórios eficazes, desde que acompanhados de elementos que assegurem sua integridade e confiabilidade.
Porém, há balizamentos, entre eles a "cadeia de custódia das provas", inclusive no processo civil. Contudo, isto é assunto para um outro artigo!
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1 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo penal: provas ilícitas, teoria dos frutos da árvore envenenada. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
2 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2003.
3 FISCHER, Douglas. Prova penal: limites e possibilidades. 7. ed. São Paulo: JusPodivm, 2021.
4 NUCCI, Guilherme de Souza. Provas no processo penal: teoria geral e exame crítico. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
5 ROSA, Alexandre Morais da. Jurisdicao e processo penal: entre garantismo e eficiencismo. 6. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2020.
6 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 13. ed. São Paulo: RT, 2019


